Hoje é um dia estranho, nostálgico, saudoso. Faz calor, um calor abafado, igual fazia ano passado na zona norte. Não era a mesma época. Fui tomada de um sentimento invasivo, sentimento que não quero pra mim, memória. Não quero, rejeito. Você era tão diferente, eu também. Deve ser porque a gente não se conhecia, tinha tanto querer - nó na garganta - tinha tanto riso, carinho. Tanto a descobrir, explorar, corpo e mente, conversas sem fim - que sentimento horrível. É como subitamente lembrar carinhosamente de alguém que já morreu. Não é nem meio dia, acordar as 5h não faz bem pro cérebro, não faz mesmo, não faz bem pros sentimentos e eu li, eu li hoje de manhã que a lua entra em câncer, minguante. Minguante como a gente, ou o que foi a gente, no fim. Começou tão cheio. E minguou, murchou pra nunca mais. Nunca mais… Às vezes eu duvido mesmo sem duvidar sabe. Não, a gente eu tenho certeza, certeza que não existe mais, não tem como existir. É algo que já acabou. Não existe nós, nem você. Você já foi, é como escrever carta pra um fantasma, pra um espírito, não, nem pra um espírito, nem fantasma, só pra um corpo deteriorado em memória. Você existe sem existir, é tão estranho, às vezes você surge na minha cabeça e tenho vontade de saber como você está, e às vezes até te procuro pela internet mas aí olho pra você, olho bem. E não é. Não é você, sabe. Assim como se eu pudesse olhar bem pra mim, pro eu daquela você, eu sei que não sou mais eu. Por isso eu duvido sem duvidar. Não sei quem você é, sei quem você não é. E faz calor, calor abafado, nó na garganta, cólica, dói, algo dói mas não consigo achar, porque o que dói é uma parte morta, parte daquela vez, daquele tempo, parte que não faz mais parte de mim, mas dói entende, e não tem como curar, tem que esperar apodrecer e cair mesmo, é dor de algo morto por algo morto. É lua minguante com paixão minguante que já foi, paixão morta. É carinho por saber que faz parte da minha história mesmo sem ser eu, foi trampolim, foi intensidade. Intensidade hoje morta.
Eu levei um tempo até me dar conta uns meses atrás que não vale a pena, não vale a pena insistir em tentar ver algo morto, algo que pulsa, mas não existe mais, corpo desfigurado, substituído. Ainda mais se fosse lá, se fosse daquele jeito, daquele jeito mesmo da única vez que te vi, metade apodrecida sem chance nenhuma de se salvar, eu não podia pegar aquilo pra mim, era contagioso. Te vi de longe só e era reflexo meu, reflexo de algo meu que morria, por isso doeu e depois nunca mais, porque depois já era você, que não é você, que é só alguém qualquer, alguém qualquer que conheceu alguém qualquer que me ajudou a chegar onde cheguei, alguém que custo a acreditar mas sei que fui, fui e alguém qualquer sabe que fui mas hoje sou eu e eu você não conhece. E eu não te conheço. É o brilho eterno de uma mente sem lembranças. Porque morreu.