Esse processo veio de uma forma muito dolorida, acredito que a única forma que poderia vir. De me perceber tão moldado pela violência e medo que não saberia nem pra onde fugir se de repente fosse solto. Me questionei desde que ponto isso me forma e entendi que essa pergunta vai ficar sem resposta. Enquanto criança já sabia que era diferente, cresci em ciclos de rebeldia e contentamento do que não me cabia. Ou de onde eu não cabia. Performava feminilidade e acreditava que era normal do "ser mulher" se sentir quase que constantemente desconfortável. Enquanto sapatão escondia meus afetos, ou então gritava tão alto até ficar exausto. A constante luta de ou se esconder e ou aparecer demais. Fui me entendendo enquanto uma pessoa transmasculina e veio a invisibilização. Quando comecei a ganhar passabilidade, principalmente depois da mastectomia, acessei finalmente um nível de conforto que nunca tive: simplesmente estar ali. Ir ao mercado sem medo. Sair pra correr na orla sem medo. Andar à noite sem medo.  Agora saio na rua e acham que eu sou um cara branco qualquer, com umas tatuagens, meio estranho, mas dentro de uma performatividade aceitável. Mas eu não sou. Eu sou uma pessoa não binária de gênero fluido. E me vi então em outro dilema: eu performo masculinidade para além do que eu gostaria. Eu performo masculinidade para não apanhar. Porque tenho medo da violência física (mas não só). Enquanto mulher tinha medo do assédio, mas era tão familiar que eu muitas vezes nem percebia. A gente aprende a deixar quieto, a seguir adiante. Às vezes parava pra revidar, trocava uns xingamentos. Seguia. Mas não cresci acostumado com a violência a que corpos masculinos se colocam o tempo todo. A cisgeneridade tem essa divisão de violências e invasões: à mulher pode-se tocar, ao homem deve-se brigar. Mão aberta e punho fechado. Não quero hierarquizar as experiências. São diferentes. Mas essa violência física eu não me acostumei, eu adentro em território desconhecido, eu não saberia me defender. Performo masculinidade para além do que eu gostaria porque é onde eu me sinto seguro. As roupas que eu tanto gosto não uso mais na rua. O que era natural deixou de ser. Quanto mais a testosterona penetra em mim, mais camisetas se somam no meu guarda-roupa. Os discursos que faço na internet muitas vezes tem que ser guardados numa gaveta a 7 chaves enquanto coloco minha bermuda e boné para ir no centro sozinho (porque acompanhado dos meus, das minhas e des minhes é diferente). No início da minha transição eu tinha tanto medo de ter minha transgeneridade apagada que eu conscientemente "forçava" uma masculinidade para que respeitassem meus pronomes. Para que me vissem como não-mulher tive que exigir ser visto como homem. Então parte do medo vem também desse lugar em que já estive, o medo do silenciamento da minha transgeneridade.

O processo para produzir uma resposta a essa pergunta vem daí. Dos questionamentos. Entendi que precisava fazer o que tanto venho suprimindo. Saí na rua vestido exatamente como eu queria, como se não existisse LGBTQI+fobia. Como se minha identidade não pudesse ser apagada. O ensaio foi pensado na questão da cinesia: do poder se movimentar, do poder estar livre, do poder ir e vir sem medo. De um lugar de não paralisia. Também de um lugar de sinestesia: esse cruzamento de sensações emocionais e físicas. Sentir a liberdade na pele. Mesmo que imaginada, mesmo que por um segundo. A cinestesia é essa percepção de movimento e sensações. É o estar tão imerso no oceano que não se percebe o oceano. Quando respirar embaixo d'água é algo natural, feito sem esforço. Foi amedrontador e libertador fazer o projeto. As fotos foram pensadas nesse movimento também ao meu redor, quase como "vida que segue", essa experiência de não ser notado como não pertencente. Enquanto fazíamos as fotos no mercado, o gerente e alguns funcionários se aproximaram para nos informar que não tinha problema fazermos fotos ali, e ao se dirigirem a nós nos chamaram de "meninas" ainda que perturbados olhando para o meio peito liso. As palavras e frases foram extraídas de um texto que escrevi durante o processo, onde destaco o seguinte trecho:

É difícil pensar em algo que nunca se teve
Ter sua existência moldada
Como rochedos que seguram um lago no topo de uma montanha...
O que aconteceria se as rochas cedessem
E não existissem de repente?
Para onde iria essa água contida?
Correria tão livre que dissolveria no tudo?
Se tornaria o tudo?






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◾ Obra: Cinestesia
◾ Ação: A Utopia do Mínimo
◾ Projeto: E SE: um diálogo sobre como seria
◾ Artista convidade: Gabz 404
◾ Fotografia do projeto: Eloá Souto
◾ Artistas idealizadorus: @gus_deon e @_lukkam


◼️ “A UTOPIA DO MÍNIMO” é uma ação de registros artísticos através da escrita e e de recursos visuais e audiovisuais de corpos trans a partir de uma provocação: “O que você faria se acordasse e não existisse mais LGBTfobia?”. Essa ação tem como propósito trazer a sensação da utopia de um mundo sem violência contra a existência LGBTQIA+.

As obras foram apresentadas na íntegra durante a exposição “E SE: Um diálogo sobre como seria”, ação parte do projeto que aconteceu no dia 24/04 pelo Google Meet, com a presença des artistas.

Projeto idealizado pelo casal de artistas trans Gustavo Deon e Luka Machado, realizado com recursos da Lei nº 14.017/2020 – Lei Aldir Blanc, na cidade de Bom Princípio.

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