Bom, eu sou o Flow Kountouriotis. Sou paulistano, mas cresci a minha adolescência inteira em Ubatuba, no litoral. Vivi uma adolescência cisgênera e heterossexual normalmente, feliz e sem questões com a minha sexualidade ou a minha identidade de gênero. Não existia esse assunto. Fui feliz enquanto mulher cis, na época. Penso também que realmente não tinha referências. Era uma coisa muito assim litoral, luau, surf, um mundo em que esse assunto não existia, não tinha gente [trans] e tal. Eu já era ator nessa época, no fim da adolescência já comecei a entender que eu ia acabar sendo artista, isso foi constatado - felizmente, né, mas puts… às vezes, caralho. (risos)

Aí quando eu fiz 18 anos eu acabei o colégio e vim pra São Paulo e comecei a trabalhar como ator, bailarino, performer e fazendo cursos livres. Nunca entrei na universidade, em nenhuma instituição de ensino formal. Foi basicamente uma formação de cursos livres e propostas e aproximações que eu fazia e ia atrás de pessoas, diretores que eu me interessava. Fui me enfiando assim, e de repente tava pagando as contas e tal.

Quando eu tinha uns 20 anos eu fui pra Berlim passar um ano, fodido de tudo, sem dinheiro. Um pouco antes de eu ir pra essa viagem, comecei a aplicar Androgel. Primeiro espaçando por vários dias, com medo de ser muita coisa. Rapidamente fiquei completamente adicto e comecei a passar muito todos os dias. Foi um longo tempo desse processo de gelzinho. Fui pra Berlim e lá eu sinto que algumas fichas sobre gênero começaram a cair, ou pelo menos a serem colocadas em cheque, mais do que me entender como homem trans - pra mim isso é mais como uma pirraça da minha parte, de falar que eu sou um homem, do que realmente me entender como homem. Porque bixa, não é, entende? Eu sou um grande viado. E sou hétero, se for pensar assim, se for querer dizer orientação sexual de pessoa trans, eu sou hétero. Minha companheira é mulher cisgênera. Serei pai inclusive, tô num processo de adoção com ela. Vários medos e questões e ansiedades e felicidades em ser um pai trans jovem. Muita coisa.


SAIBA COMO APOIAR ESSE PROJETO​​​​​​​


Não é que eu queria exatamente uma coisa que o androgel iria me oferecer, que eu tava muito ansioso pra ter uma barba ou pra que eu tivesse um corpo muito mais masculino. A minha ideia no começo era desfazer a imagem que tava. E aí eu achei muito bafo que era sutil, que era devagar, que eu podia escolher a quantidade. Me consultei com médicos no SUS daqui e que me juraram que não ia ser um grande problema se eu usasse muito ou pouco. Então a ideia era um pouco que eu desfizesse de fato aquela pessoa, inclusive fisicamente e bioquimicamente e experimentasse uma outra maneira de experienciar o mundo sem querer que seja um outro jeito que eu estivesse buscando, assim. Começou mais nessa desobediência. Mas é bem bom, né? (risos) Então fui me empolgando e me questionando várias coisas sobre o que esse hormônio traz pra gente, como que a gente lida… enfim, o que ele traz, o que ele só potencializa. Acho que tem facetas subjetivas, principalmente da testosterona, que são complexas de lidar.

Eu tô aplicando testosterona injetável faz um ano, em um acompanhamento muito emocionante no SUS. É bem emocionante, é impecável. Eu sei que não são todas as cidades no Brasil que tem, aliás, são pouquíssimas. Mas é uma diferença bem radical entre aplicar gel e injetar. Eu ainda comecei com meio ml, depois 1 ml, [fiquei] um tempo no 2 ml. Mas é doido porque quanto mais eu aplico hoje em dia, mais viado eu me permito ficar. Isso eu acho muito bom. Bem como umas coisas assim, [por exemplo] esse bigode e essa barba que eu to deixando hoje em dia é primeiro porque eu vou fazer o processo de uma peça que são 8 homens em cena e aí eu queria tirar uma onda. São motivos leves que movem o meu desejo na transição. Realmente a minha transição não tem uma história de dor e de não aceitação de família. Todo mundo aceitou.

​​​​​​​



É claro, sofri algumas transfobias. Fui tirar meu passaporte e tive que ir na junta militar falar “olá, sou um homem” e sofri uma transfobia bizarra de um militar que tava ali me recebendo. Eu vou fazer um trabalho fora, tive que retificar o meu passaporte o quanto antes, e pra polícia federal você tem que ter essa declaração da junta militar de que você se apresentou perante o exército brasileiro. Inclusive tô fazendo todo esse processo na justiça espanhola, no consulado, porque eu tenho os documentos lá também. É bem doido, nos livros do Preciado  ele descreve toda a transformação dele nesse grande teatro que é a justiça e o parlamento espanhol decidindo - na época que ele retificou o gênero que ele tinha que provar psiquicamente, com psiquiatra e medicações, que ele realmente tinha uma questão. Hoje em dia não é mais assim. É basicamente um documento que você assina super rápido.

São várias questões bem complexas, e uma delas é essa coisa do “nasci trans”. Não tenho certeza disso. Eu não acho que é isso. Sinto que tem um multiverso em que eu poderia ter sido uma mulher cis feliz até o fim da vida. E é claro que eu conheço diversos amigos homens trans que não tem essa história, que tem outra. E que realmente sofriam muita disforia desde sempre. São diversas as histórias. Foi um grande experimento meu, que começou a ficar muito legal e muito empolgante. A criança nasce e provavelmente ela continuaria a vida dela, sem existir a palavra cis ou a palavra trans, mas já que existe, esse é meu lugar um pouco de me dizer homem. Já que existe, então vamos estar participando da maneira mais incisiva e caótica que der pra contribuir pra essa discussão. Vai ter que me chamar de homem, “quer a senhora queira ou não! Pessoas que gestam!” 

Eu sinto um peso em relação a imagem que a gente tem. Se eu não deixo esses ínfimos pelos na minha cara hoje em dia, dependendo da roupa que eu tô, eu sou lido como sapatão. Esse bigodinho aqui, já não acontece mais. É muito doido, porque a barba é o símbolo primeiro assim, eu sinto. E que, me dizer ele - eu sou basicamente meio sapatão, meio viado, não dá pra entender direito - esse é o lugar da fricção pra mim.
​​​​​​​




Flow Kountouriotis
1997

Homem trans
ele/dele
@flowkountouriotis

*ensaio realizado em junho de 2024 em São Paulo (SP), Brasil

-

ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro. 
Projeto idealizado por Gabz 404.​​​​​​​
APOIE ESSE TRABALHO

Autorretrato de Gabz revelado por Eloá Souto

You may also like

Back to Top