Eu sou a Tara Perstephonie, sou artista. Eu gosto de pensar imagem, escrever sobre imagem e construir narrativas.
Tarô é um jeito que eu gosto de construir narrativas, entender o que chama na imagem e o que ela nos ajuda a construir como e contar histórias de formas que não necessariamente sempre aquilo é visto. Porque a carta é a mesma, mas dá pra você construir muitas coisas em relação à circunstância. A circunstância organiza muito. O meu processo tem sempre um acompanhamento, tem sempre uns jogos ao lado pra entender os caminhos e o que revela, o que não deve ser revelado. Recentemente eu tava estudando a sacerdotisa e foi um processo bem forte de lidar com a morte, de encontrar com a morte e também de me oferecer para a morte mais uma vez. Meio que pegando também a mitologia de Perséfone e viver um tempo no submundo, viver um tempo no sol e viver esses ciclos de ir e voltar para que as coisas tenham seu tempo.
Muitos tipos de mortes. Engraçado porque eu fico falando de morte o tempo todo, aí hoje eu acordei meio emotiva em relação aos lutos que eu to vivendo desde o ano passado. Uma observação, que achei curiosa. Eu tinha uma gata chamada Plutão e ela foi muito presente durante a minha transição. Aí ela morreu e é meio que… como continuar ou como estabelecer outras relações com a própria morte? Que não seja tendo uma morte rondando o tempo todo. Aí fico sempre nessa “ai minha gata morreu, ah que pena”, mas tem alguma coisa ali que era um pouquinho outra, talvez porque eu sou meio mística mesmo, sabe? (risos) Talvez porque ela é uma gata preta, sei lá. Enfim, muitas dinâmicas, de luto também de familiares, que morreram ano passado. E o luto me traz coisas muito fortes de sexualidade. Tipo, morrer e estar perto de pessoas que morreram. E fazer todos esses processos, os rituais da morte, me colocaram no lugar de ter muito tesão também. E viver o tesão é uma forma de eu conseguir lidar com o luto por um tempo. Então “nossa, eu preciso só transar, não aguento mais pensar, eu preciso transar, sabe, sentir outras coisas”. Uma outra amiga, a mãe dela morreu na mesma época que pessoas queridas morreram pra mim ano passado. Ela também ficou nessa de “sexo é uma coisa muito forte pro meu luto”. E é curioso porque outro dia vi no twitter uma pessoa comentando sobre exatamente essa questão e as pessoas acabando com ela. Enfim, twitter é um lugar tenebroso, né. As pessoas são muito moralistas e horrorosas.
É curioso eu estar aqui nesse momento porque sou uma pessoa muito tímida e que não fala muito. Eu tenho questões em estar em evidência, em estar aparecendo. É algo que luto muito, tô tirando muita força pra fazer isso acontecer porque as vezes eu vejo alguns registros meus e eu lembro do momento que eu não tava registrando quem eu era naqueles anos… aí vejo um registro que fiz em 2021 e penso “nossa, que bom que fiz esse registro”. Entendo que isso é muito importante e quero muito registrar e ter como olhar pro passado e ter alguma matéria, sabe? Materialidade mesmo de “isso existiu”.
Falar também. Fiquei um tempo sem falar, então ser uma pessoa que fala e que também coloca quem se é, os desejos na mesa. [Não falava muito por questões]… de estar fumando muita maconha e estar muito na lombra assim, totalmente em outra dimensão, eu não conseguia sair da minha cabeça de jeito nenhum. E eu tava num momento muito mal, deprê, e aí eu fumava maconha porque pelo menos eu socializava de alguma forma, mas não existindo. Transicionar também foi um lugar de cura pra garganta. Tudo começou quando eu fiz uma tatuagem de cobra. Uma amiga tatuou. Foi algo “não tenho desenho”, aí falei “desenha aí mesmo” e ela desenhou aqui no meu pescoço, aí falei “é isso, vamos tatuar”. Foi minha primeira tatuagem, num lugar que dói muito. Aí falei “é isso”, preciso ter esse símbolo comigo, de trocar de pele e ser outra coisa. Maior. Processo de crescimento.
Texto também começou a ser um lugar que comecei a me comunicar, escrevendo. Nem que seja escrevendo sobre sonhos. Eu sonho muito. Às vezes não consigo acordar de tanto que tô sonhando. Eu gosto de escrever e agora eu trabalho com comunicação. Tudo isso depois da transição. Foi um grande potencializador pra eu estar no meu corpo, entender presença e outros interesses que eu sempre tive e nunca achei que fosse possível estar, que seja tá com o corpo em cena, sabe? Ou estar investigando como a presença se dá, como desconstruir narrativas com o corpo, sem necessariamente ser pela voz, como a gente se comunica de outras formas que não só pela palavra: gestos e musicalidade, ritmo do corpo. Talvez agora sem muita profundidade nisso, talvez agora estar entendendo a comunicação também de outras formas que antes eu achava que era só pela palavra vocalizada. Acho que agora eu me comunico de outras formas.
Peixes e Escorpião: Essa força que me domina. Essa cobra fica sussurrando aqui, no pé do meu ouvido. É um lugar visível, mas ao mesmo tempo ela se esconde em alguns momentos, sabe? Talvez você só veja uma linguinha. Eu sou muito regida por Júpiter, então também tem esse lugar da expansividade, ainda que pelos mistérios.
Voltando um pouco sobre o processo de luto. No começo da minha transição, quando eu já não usava mais o meu nome que os meus pais colocaram, meu nome era Luty, fazendo muita referência a luto e à luta. Então esse lugar também de ação e substantivo mas também estar nesse processo ainda de sentir, mas encarando um pouco. Aí depois de encontrar com Tara é muito esse lugar do desejo. Dependendo da circunstância às vezes é um nome meio infeliz, que as pessoas “ai, é Tara de tarada?” Mas não é um peso. Porque é outra coisa. Mas eu também… chega uma hora que é exaustivo ficar pensando só em luto e só em morte. Não apenas pensando, mas sentindo, vivendo, experienciando. Quero outras coisas também, sabe?
Tem me aparecido muito vulcão em sonhos e símbolos por aí. E eu fiquei pensando… Como que se cria um terreno, um solo, um território, em um oceano. E aí vulcões podem criar essas ilhas, esses arquipélagos. Então to meio que nesse lugar. Saturno está no meu ascendente agora. Quando as coisas saem da casa 12 e entram na 1 você fica “ai meu deus, muita coisa tava acontecendo que eu não tava conseguindo ver” porque fica fora do ponto de vista, da visão periférica. Então esse período de Saturno no ascendente tá pesado. Bem intenso, muitas mudanças. Entendendo também como diminuir as responsabilidades pra conseguir expandir enquanto ser, enquanto pessoa. Visões. Uma curiosidade. Quando minha gata e quando minha avó morreram ano passado - porque foi meio que muito perto [um evento do outro] - tava tendo uma oposição de Saturno com minha lua na progressão. Grandes mudanças.
Eu tava pensando muito ontem no objeto que eu ia trazer. E eu tava “nossa, não queria ficar levando as coisas pra falar sobre morte” (risos) Mas eu não consegui, porque quando a minha vó morreu eu fiquei com algumas coisinhas dela, enfim, o vermelho voltou pra mim de uma forma muito forte. Tenho uma relação de apego e muita intimidade com o vermelho. Falei “ah não vou levar nenhuma dessas coisas, não quero falar de morte nem nada disso”. Mas aí eu escolhi um sino que a gente usava num altar que os antepassados - e agora que eu to me deparando que de fato tem a ver com morte também, de ter esse cuidado com os antepassados e todo dia servir uma refeição pra eles absorverem aquela energia, colocar flores e chamá-los com sino. Isso vem de uma prática espiritual da minha mãe, em que ela cultuava os antepassados do meu pai, que é assim a regra desse costume. Se você casou e pegou o sobrenome da outra pessoa, então você não é mais da família que você veio e sim da família de quem você casou. Então você tem que cultuar os antepassados da pessoa que você casou e pegou o sobrenome. E aí meus pais se separaram em 2017 e tinha todo um ritual de desfazer o altar e queimar onde codificava qual antepassado estava ali. Porque tinha os antepassados que, se não me engano, se morreram há mais de 15 anos conseguem unificar em um único totem. Os que morreram há menos de 15 anos precisam ter um totem sozinho e nunca com o nome da pessoa enquanto viva. Tinha que escolher um outro nome pra ter no altar, um nome que significasse aquela pessoa - tipo você joga no google “qual o significado do nome Yudi” (risos) Foi quando meu vô morreu e, como meus pais se separaram, acabou sobrando pra mim queimar esses totens, enterrar e toda a estrutura de madeira do altar eu guardei pra mim, desmembrei e fiquei pintando. E o sino também ficou comigo.
Pós-vida. Curioso que quem define esse seu novo nome ainda continuam sendo outras pessoas. Porque não necessariamente esse meu avô fazia parte dessa prática espiritual que a minha mãe fazia. Se fosse o pai dela que tivesse morrido ou a mãe dela, que já morreu, não entraria no altar, porque tinha que ser por parte do meu pai. É uma devoção assim por aquilo que nem é teu, nem passa por você… não que precise passar, mas falo em algum tipo de relação, não por questões de matéria corporal.
*ensaio realizado em junho de 2024 em São Paulo (SP), Brasil
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