Me chamo Pietro, sou Barcarenense, que fica no interior, em uma ilha próxima de Belém, a capital do Pará. Atualmente eu moro em Belém, há uns 6 anos já. Saí da casa de minha mãe com 18 e vim me aventurar na cidade grande. 

O interior é muito pequeno pra gente que vive da arte, então eu vim pra capital pra tentar ter uma vida estável financeiramente, correr atrás das minhas coisas. Só que antes de chegar nessa conclusão eu passei muito tempo da minha vida indo e voltando da capital, 1h de lancha pra lá e pra cá.

Sempre fui banhado em água doce. Eu morava no interior onde tem uma praia próxima, que é o Caripi, onde de frente já é a Baía do Marajó. Então a minha infância era voltada a estar próximo do rio, a estar próximo da água doce. E que nessas fotos que a gente fez, que me deixa muito feliz e confortável, é dizer o quanto essa paisagem, essa água que eu tanto me banhei, a vida toda, que me deu paz, que tira a minha angústia quando eu necessito pensar - porque também a gente que toma hormônio né, é uma loucura a nossa cabeça. Então eu sempre tinha esse refúgio, que a água doce me banha, eu consigo mergulhar, eu consigo ter paz. E nessas idas e vindas de lancha, observando a paisagem, pensando na minha vida, ou acalmando meu coração. Muitas coisas a gente passa e no final de tudo é a gente procurar a paz em pequenas coisas que às vezes pode não ser significativa para outras pessoas, mas você também colocar sua fé ali. Eu tenho fé que essas águas doces vão me levar para outros caminhos, são outras portas que vão me abrir. E que continue a minha fé, que continue a minha vontade sempre de viver, que sempre que eu tiver angustiado, pode ser no mar ou pode ser no rio, pode ser no igarapé, onde que for, onde tenha uma água corrente pra só sentar lá e pensar um pouco. O resumo de tudo seria tipo, além das dificuldades que todo mundo já passou por ser transexual, mas acima de tudo tentar não desistir, colocar sua fé em alguma coisa, algum objeto, alguma paisagem, ou algum trabalho, mas continuar sempre estar vivo. Ser feliz por estar vivo ainda nesse mundo.

Navegar em um lugar bem distante, grande, uma imensidão, que eu sei que eu tô seguro de mim. Se eu afundar, eu tô feliz. Se eu boiar, eu tô feliz. Estar sempre por aí, deixando que o rio me leve para onde eu desejo e para onde são meus caminhos. E deixar com a vida, não pensar no futuro, não pensar no passado. Ficar sempre no presente. De onde eu estou indo, de onde eu tenho que caminhar, onde eu tenho que errar, que acertar, onde eu tenho que aprender. Ainda mais a gente que mora próximo de rios, que são os ribeirinhos, que também já é de ancestrais, então tem uma ligação próxima, sabe, ao se sentir confortável próximo da natureza. 

Rios representam essa ancestralidade pra mim, ainda mais que eu sou ligado a umbanda, então tenho muitos caboclos que são da mata, que eu consigo ficar mais em paz. Então o rio sempre foi isso, uma imensidão pra eu me banhar, pra procurar paz, pra estar seguro. Tudo que me molha, mas me molha pra minha felicidade.

Eu sou fotógrafo autônomo já faz uns 8 ou 9 anos. Trabalho muito com retratos, porque gosto muito de mostrar a delicadeza, a aparência da pessoa sem nenhuma modificação, os traços, que acho magnífico. Então o meu portfólio é de retrato, que é o que gosto de trabalhar. Porque é o que tu mostra por primeiro: a pessoa vai olhar pra ti, é o seu rosto. E atrás daquele rosto pode ter uma história magnífica, pode ter uma história triste que pode ser também o recomeço para algo novo, ou também tipo assim dar força para o próximo, que tá passando por uma situação que pode ser parecida ou não.

Na arte eu sou mais chegado na fotografia. Faço um audiovisual de vez em quando, trabalho autônomo com atendimento ao público, que seria atendente ou garçom. E tô me formando em técnico de enfermagem, que já é uma outra área que ultimamente pessoas trans estão atuando confortavelmente em alguns ambientes. Eu gosto de conquistar espaços diferentes. Gosto da área da saúde. Eu quero também tentar conectar a fotografia com essa área, fazendo ações. Por exemplo, tem pessoas que ficam na quimioterapia que às vezes se sentem muito feias, então assim.. trazer uma felicidade, bater uma fotografia, mostrar que a pessoa é bonita, porque todo mundo também tem sua disforia. E a gente vive também na pele a disforia, então a gente sabe como é. As crianças também, fazer workshop, colocar as crianças pra fotografar, ter momentos diferentes do que ficar enfurnado no hospital. Tentar trazer um pouco de felicidade, que a vida me deu um pouco. Pegar o que eu tenho e transferir pra outras pessoas, que às vezes podem olhar pra gente com preconceito, mas a gente tá fazendo a nossa parte no mundo. E lá pra frente as pessoas podem pensar assim “égua, aquela pessoa que eu tanto julguei, mas acalmou meu coração, me trouxe paz, foi ouvinte pra mim”.



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Disforia ao meu ver, como transexual, é se sentir desconfortável com as mudanças do corpo ou quando o corpo não tem mais mudanças e aquilo você tem que aceitar. E também tentar se olhar no espelho e ver traços femininos que acabam dando aquela angústia, que parece que não vai mudar, e as pessoas ainda vão me chamar no feminino. Eu já passei por uma disforia imensa. Hoje em dia eu amo o meu corpo, aceitei como é, se mudar ou não, tá ótimo. Mas acima de tudo ter na minha cabeça que eu me amo. Estar confortável na minha mente já tá ótimo. 

Acho que tudo tá interligado: a sociedade, a família, o hormônio. Tudo vira uma bola de neve. Saber respirar. A gente fica muito agoniado com tanta testosterona, a gente acaba se perdendo em muitos pensamentos, se auto sabotando. A gente fica “ah, não to conseguindo emprego, então eu não sou uma pessoa digna pra aquilo”, a gente fica se rebaixando. Então comecei a aceitar na vida que se não deu certo, ok. Eu já espero pelo não. Porque eu já recebi muito não da vida. O que é um não pra mim? “Não deu certo, ok, vou tentar outra coisa”. Não me desanimo mais como antigamente de ter aquele desespero. Então foi tudo um processo pra eu conseguir ficar confortável. De cada dia eu começar a aceitar e aprender a viver com isso, que tem coisas que não dá pra mudar e ok.





No meu processo de transição teve momentos que fiquei bem sozinho e momentos que tive presença de pessoas trans que são amigos próximos de mim. E a minha família também. Passei um tempo recluso, sozinho, vendo como funciona minha vida só, depois fui me aproximando, depois me afastando. E hoje em dia eu já sou aproximado de todos. Porque eu já me sinto bem com a minha vida, já me sinto bem comigo. Então por que não estar bem também com outras pessoas que querem me ajudar? Então me aproximei de todo mundo de volta.

Meu laço com a minha família hoje em dia é muito bom, porque eles quiseram participar da minha vida. Antigamente era muito questionamento, mas hoje em dia a minha mãe quer participar da minha vida e quer ser minha amiga. E a partir desse momento que ela quis isso, ela conseguiu se aproximar mais de mim. De dois anos pra cá eu consegui ter uma amizade maravilhosa com ela. Com a minha família, meu pai, minha irmã, todo mundo da minha família já tá ok, mas o começo é foda. É tudo uma desconstrução, é tudo um processo, tem que ter calma, segura aí que as coisas vão melhorar. 

A minha mãe vê o conforto que eu levo... pela depressão que eu tenho. Antigamente eu queria me suicidar, eu realmente atrasava a minha vida com a depressão. E hoje em dia a minha mãe me vê tipo “égua, zero depressão, ele consegue as coisas e às vezes ele tem ansiedade mas é mais controlável do que era”. Tem aquele desespero de mãe de “se meu filho tá feliz eu to bem, é isso que importa. Se ele quiser fazer aquela escolha e isso fizer bem então tudo bem, eu apoio ele”. O que a minha mãe não quer mais é ver eu deprimido.





Atualmente não rola muito preconceito aqui em Belém. No governo eles fizeram o Casulo, que é um espaço dentro do SUS para pessoas transexuais. Gratuito. Você faz o cadastro e vai pro projeto Casulo. Tem psicólogo, tem endócrino, tem psiquiatra, tem nutricionista, tudo pelo SUS, pelo governo do Pará. Atualmente temos isso. De uns dois anos pra cá que a visibilidade trans aqui aumentou, tem muitas pessoas trans aqui, e tem muitas pessoas trans que agora tem um auxílio né, tipo, você tem o seu hormônio, você tem gratuitamente sua consulta com psicólogo ou endócrino, já ajudando mais a comunidade. 

Também temos editais culturais, projetos pelo governo daqui. Temos pessoas transexuais trabalhando dentro da área da cultura daqui do Pará, também tem pessoas trans vereadoras. Aqui em Belém já tem um conforto melhor para a gente. Com uma parte do governo ajudando, já dá um up melhor. Porém, a cultura daqui ainda é um pouco machista. Eu tive poucas experiências com preconceito, mas eu sempre meço aonde eu vou, então sempre evito. Violência aqui não é todo dia, mas o importante é a questão de o governo ajudar a gente em relação a você ter um espaço ali no SUS gratuitamente, todas pessoas trans estão lá, e você tem total conforto, porque não vai ter preconceito ali… nunca rolou preconceito com nenhum trans ou travesti fazendo consulta lá.
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Eu to querendo viver um pouco a minha vida. Tô esperando a COP 30 porque vai ter muitos projetos aqui, muitos editais, é para a cidade ganhar dinheiro na COP 30. Então vou dar uma segurada aqui, fazer um dinheirinho e ir pra outro estado tentar. Porque aqui em Belém, por mais que esteja tendo editais, não é totalmente valorizada a arte. Então vou fazer a experiência depois do COP 30, porque vai viralizar o Pará, o Norte. E tendo essa experiência de fora, pode ter outras pessoas querendo contratar, colocar a arte mais lá em cima. Porque a gente tem um meio cultural muito bom aqui. A Bienal abriu anteontem, são quatro andares em um antigo supermercado. São quatro andares só de arte de pessoas do interior, do Peru, São Paulo, Curitiba. Todo mundo tá ali. E também tem o Festival do Psica, que reúne cantores do Norte, incluindo pessoas trans, e também tem ingressos gratuitos pra pessoas trans. Então você entra de graça em um festival que é de três dias, que trouxe já Elza, Chico, Chico César. Então pra cá já tá acessível, vamos dizer assim, pra pessoas trans. Na maioria das vezes tem eventos que entra de graça. De uns dois anos pra cá que tá melhorando a situação. Já foi pior.




Lendas são uma coisa cultural da gente. Belém é construída em cima de uma ilha. E essa ilha foi colonizada pelos portugueses. Eram indígenas e portugueses. E os indígenas já trazem a cultura deles, as lendas deles, que fez a cultura de Belém. Todo paraense conhece a lenda do açaí, que foi um menino bonito que morreu e depois nasceu o açaí. Ou a história da igreja que eu te falei, que tem uma cobra lá embaixo, que é interligada a outra igreja quando vem o Círio de Nazaré. Aí quando essa cobra acordar Belém afundará que nem Veneza (risos). É uma grande loucura, mas são lendas culturais daqui mesmo. A Amazônia em si, como a Matinta Pereira, o Curupira, que são daqui e são lendas nacionalmente conhecidas. A lenda do Boto todo mundo conhece também, que era um rapaz que se transformava em boto e quando saía da água tava todo de branco. Entre outras. É nosso patrimônio cultural. Porque mesmo que você nasça aqui e não tenha muitos traços indígenas, você carrega a cultura daqui. Se você for criado em Belém você é Belenense, então você tem o patrimônio cultural daqui. 

Belém tem muita história. Belém tem 400 anos. Como eu falei, Belém foi construída numa ilha onde vieram os portugueses, depois os franceses, aí teve o tempo da borracha, entendeu. A gente tem também uma rica cultura daqui sobre vegetais, frutas. A nossa terra é muito rica. E tem outros interiores que são bem mais velhos do que Belém. A primeira cidade do Pará foi Bragança. Depois de Bragança veio Belém. Depois veio Marajó, que todo mundo conhece. Alter do Chão, onde teve a novela. Mas é isso. Aqui somos muito ligados à natureza. E a gente que é mais nativo, a gente é mais sensitivo com a cultura, com a natureza, com a comida daqui. Eu fico pensando que quando eu for pra outro estado, meu deus, como vai ser? Porque eu amo a cultura daqui, a comida, que é bem temperada, que é gostosa, o peixe fresco. 

Mas… seria boa a experiência, que eu ainda quero viver mais. Ainda estou vivo, né? Novo. Eu gosto de aprender novas coisas, gosto de conquistar coisas. Tô dando o meu tempo, de organizar minha cabeça e enfrentar, fazer o meu nome. 

Como eu falei no início, por mais que tu estejas passando por um momento delicado, e tudo mais, tem que colocar tua fé em alguma coisa que faça você estar vivo, sabe? Porque tem muitas pessoas que não tem um teto, que não tem o que comer, que não tem apoio da família ou que não tem amigos… mas mesmo assim às vezes elas se encontram felizes por estarem vivas. Então por que eu não posso pensar sobre isso? Eu estando vivo, eu estou feliz. Se eu tenho um teto na minha cabeça, se eu consigo correr atrás da minha vida, ver pessoas me valorizando, eu estou feliz. Se eu estou fazendo alguma coisa nessa vida que tá somando, então eu estou feliz. É sempre colocar “se eu estou vivo, então eu estou feliz”. Tem muitas pessoas ingratas que ficam reclamando da vida 24h mas tem tudo acessível. Então é ser humilde e ser feliz. Ainda mais sendo trans, se eu estou vivo, então eu estou feliz. É isso que importa pra mim.






Pietro Lemos
2000

homem trans
ele/dele
@
pietrolgph


*ensaio realizado em abril de 2024 em Belém (PA), Brasil

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