Eu sou Lygi, tenho 25 anos. Me formei em psicologia, mas tentei começar uma residência em saúde e não deu certo, aí agora to meio num momento que to me questionando várias coisas e pra onde quero ir. Então não tô me sentindo muito psicologue agora, mas tenho esse título. Gosto muito de trabalhos artísticos, tento do meu jeitinho fazer algumas produções também.
Assim… isso é uma conversa que tenho muito com amigues, de tipo, ter vários nomes, sabe? O nome que me foi dado é Lígia, que é um nome que eu acho bonito, mas que cada vez eu me identifico um pouco menos, mas que também faz parte de mim, da minha história. E eu não sei se vou deixar de ser Lígia pra algumas pessoas, então tento não me apegar muito a nomes pra isso me ferir menos e por fazer parte da minha história. Só que to passando por isso agora de que eu escolhi Lygi e parece muito Lígia - eu falo "Lygi" e as pessoas entendem Lígia muitas vezes. Também depende muito do contexto, de quem é, talvez o volume que eu falei. Mas isso é uma coisa que eu tenho pensado, tipo, será que eu deveria criar um outro nome? Porque ao mesmo tempo que faz parte da minha história, então teoricamente eu não teria que me importar tanto, isso também reverbera em mim porque eu estou em relação o tempo inteiro com as pessoas. É a única forma que a gente existe.



Essa questão de pensar a não-binariedade começou bem na pandemia, de ter um espaço em que eu tinha amigues que estavam estudando Paul Preciado e discutindo bastante essas questões. Na verdade, no começo eu não dava tanta importância, justo por uma questão mais identitária. Isso é algo que eu venho entendendo mais, o que em mim fez eu me prender a certas identidades e o que em mim poderia fazer eu me prender de novo, sabe? Porque é confortável você ter o seu nome certinho, "eu sou isso" e "isso significa isso". Eu percebo que quando tem uma coisa mais definida ela tem mais jeito de dialogar com o que já tá… é a linguagem hegemônica, assim, você tá no código. Você talvez não seja o padrão, mas você tá no código diante deste referencial. Por isso que é confortável. Às vezes eu tenho até um pouco de receio de passar por situações em que eu vou querer me apegar a alguma identidade porque entendo que tem esse lado, mas também tem o outro lado de você ser mais rígido.


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Agora eu to experienciando coisas no corpo que eu não tinha experienciado antes, tipo uma dismorfia dos seios principalmente. Eu gosto dessa coisa bem coletiva, que a gente constrói, pessoas queer. Eu to conversando com ume amigue que tá meio na mesma. A gente tem uma performance que é feminina e as vezes a gente fica se questionando "será que eu sou trans mesmo?" e o outro tem que ir la e tipo "calma". Pelo menos a gente não passou por isso ao mesmo tempo até agora (risos). Mas é meio nesse lugar. Todas essas questões de hormonização ou cirurgia nunca tinham passado pela minha cabeça até pouco tempo atrás, de poder fazer isso sem precisar chegar em um fim. No momento o que eu sinto vontade de mudar é essa coisa dos seios e da voz, mas não tenho vontade de ter barba ou outros atributos. Uma coisa que me ajuda - e também piora - é o uso da internet. Tive meio esse insight que eu vi uma pessoa trans que eu sigo no instagram que faz conteúdos pornô. E ele fez a mastec mas tem um quadril [mais largo] e não sei se ele se hormoniza. Isso me deu um conforto, assim. Mas ao mesmo tempo tem a vivência da internet que às vezes captura, então, sei lá, você abre o twitter e estão falando de trans fake. Não sei como isso apareceu pra mim, tirei as pessoas que acho que produziram isso, mas começou a aparecer pessoas trans justamente… Era principalmente direcionado a pessoas não-binárias, mas não só. Era algo tipo "você é trava, mas tem uma barba", "você é não-binárie mas ta performando o gênero que foi designado ao nascer", virando meio um esculacho, assim.​​​​​​​



Uma coisa que toca muito nesse discurso é a questão da violência. Isso é algo que passa por mim, assim. Sei que sou lide como uma mulher, que não sou lide como uma pessoa trans, que vão ser essas as implicações geralmente das interações com pessoas que eu não conheço. Portanto, na rua eu não vou sofrer transfobia. Vou sofrer mais no sentido de não me lerem como eu me leio, o que é uma transfobia, mas não vou sofrer violências mais escancaradas. 

Acho que isso foi um negócio, quando eu falo que eu consigo identificar o que me capta pra me prender ou não a uma identidade… acho que isso é uma das coisas. Às vezes tem esse discurso que o que vai definir é a violência. E é muito difícil, porque de certa forma vai definir também. Vai definir a vivência da pessoa. O corpo da pessoa. Mas como tentar produzir sem desconsiderar isso? Então reconhecer que tá, eu estou no mundo situade desse jeito, acho importante saber desses privilégios que eu to falando, mas também não se apagar frente a isso. 

E também outra coisa, que eu tava falando antes, tipo do nome, de eu me importar que entendem "Lígia", que cada vez mais eu me importo com essa leitura como mulher e eu não sei muito bem lidar. Porque não sei se cabe ficar o tempo inteiro se afirmando, porque é cansativo. Às vezes realmente dependendo da pessoa você pode se importar menos, mas é uma coisa que fica meio… sei lá eu fico tentando elaborar eternamente sobre isso. Eu sinto que esse se afirmar enquanto pessoa não-binária pressupõe uma… tipo é melhor você fazer se você tiver a vontade de ser um pouco didático. Você vai ter que explicar pra muitas pessoas, você não pode só chegar e falar, você vai ter que explicar. E como fazer ser legal conversar sobre isso e não algo que vai distanciar a pessoa, que ela não vai querer mais falar com você porque sei lá, você é esquisito. Apesar de que eu gosto um pouco de ser esquisite. 

De certa forma é uma faca de dois gumes, tipo você querer se afirmar mas você tá se afirmando como uma negação de uma identidade. Talvez você não queira uma identidade, mas é importante se afirmar. Eu sinto que tem muitas vias na não-binariedade, e que eu to meio que descobrindo, testando. Esse é o jeito que to entendendo que é o melhor, ir testando, "tá eu gosto de ficar explicando pras pessoas ou não gosto?" É tentar ir identificando, sentindo. Acho que é uma coisa meio intuitiva. Isso tá me fazendo passar por eu tentando entender melhor por onde eu quero percorrer, não é tão fácil. 

Uma figura que eu gosto é a de monstro. Os monstros são muitas vezes caracterizados por serem uma deformação de um formato referencial ou a mistura de seres diferentes… que nem vampiro, que é morcego e humano. A gente é justamente uma mistura. No final das contas somos feites de bactérias, fungos... E estamos sempre em relação com seres diferentes também, o que faz parte de nós. Não se referenciar nas identidades, querer criar nossos próprios referenciais, tem a ver com encarnar essa monstruosidade.

 Minhe amigue esses dias me contou sobre a etimologia da palavra monstro: vem de lembrar, advertir, instruir. Diz sobre o ato de transmitir uma mensagem. Essa mensagem tá mais pra uma pergunta, e não pra uma sentença significativa [que estabelece um significado], já que a palavra se transformou num nome pro indefinido, híbrido. Tô fazendo o exercício de carregar essa pergunta comigo pra me lembrar de não viver baseade num fim pré determinado, mas em farejos que vão me guiando… sem deixar de carregar o que já juntei até aqui, também.







Lygi Barbosa Perez
1999

não-binárie
elu/ele/ela
@l_ygi_


*ensaio realizado em maio de 2024 em São Paulo (SP), Brasil

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ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro. 
Projeto idealizado por Gabz 404.​​​​​​​
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