[ *aviso de gatilho: assédio sexual infantil, distúrbio alimentar ]
Tive uma infância muito explícita que eu era uma criancinha travesti, mas em função de família, de escola, de pressão da sociedade, a minha mãe foi acreditando que ela estava me criando de forma errada e começou a mudar o rumo, tipo "tu não pode mais brincar com tua irmã", "esse tipo de roupa tu não pode". Eu acho que com uns oito ou nove anos eu já tinha entendido que quem eu era, quem eu gostaria de ser, era errado. De ter que ir em psicóloga e "com o que tu quer brincar?" - de ter bonecas e carrinhos, aí eu "eu sei que eu tô aqui porque eu gosto de brincar de bonecas e sempre apanho quando brinco de boneca, então eu vou pegar o carrinho pra te provar que eu não tenho problema nenhum." Às vezes eu fico pensando que nossa, eu era uma criança de seis, sete anos, fazendo esse raciocínio... Então me incomoda muito quando as pessoas entendem que de repente eu transicionei só depois, na fase adulta, que não existiu toda uma trajetória de uma vida, que se houve uma transição foi por uma imposição pra eu viver uma cisgeneridade compulsória, doentia. Inclusive, eu tenho problema de ver fotos deste período específico porque eu olho e tipo, nossa, eu vivi sim muita coisa boa, mas eu não sabia expressar felicidade, eu não sabia me colocar no mundo porque eu não sabia ser, eu não sabia. Foi bem crucial quando eu olhei pra tudo e disse "quer saber? criancinha travesti que ficou lá pra trás, vem aqui que eu tô precisando de ti!" (risos). Estou vivenciando meu eu pleno e feliz e me redescobrindo. Eu brinco, às vezes, que por essas fases eu acho que estou vivenciando ainda minha adolescência trans, eu ainda não sou uma trans adulta! (risos).
Eu tava conversando disso com outra amiga, dessa coisa de sair e "ai, deixa eu ver o que tem de maquiagem nessa farmácia, eu preciso levar isso aqui" - eu não preciso, provavelmente eu não vou usar, mas sabe uma coisa de "eu nunca pude e agora eu posso entrar ali e pegar, sou eu que tô determinando isso"? Umas besteiras, mas é divertido, né? Coisas que em algum momento da vida eu não pude vivenciar. Eu até tava, uma outra vez, conversando com umas amigas - são mulheres cis que se envolvem mais com o movimento feminista, que tem alguns trabalhos que tentam desconstruir essa lógica e essa imposição do que é ser ou se construir mulher e o que é feminino e o que não é - e aí eu tava conversando com elas e disse "eu adoraria participar desse processo, mas eu sinto que tô em um momento em que às vezes eu quero bem o estereótipo." É aquilo que às vezes não me permitiram, e eu sei que eu não vou estar nesse espaço sempre, daqui a pouco eu já vou desopilar disso, mas é esse momento, tipo, se eu for me maquiar eu não quero uma maquiagem diferente, eu quero uma maquiagem pra eu olhar e dizer "ai eu fiquei bonitinha", sabe essa coisa? Eu fiquei pensando assim "o auge da minha preguiça, eu não me arrumei pra te receber", com certeza amanhã eu vou olhar e dizer "ai, o que custava eu só um dia ter acordado cedo?". Eu comprei aquelas vendas pra dormir, dentro veio um troço de gel que dá pra colocar na geladeira, aí eu já coloquei na geladeira porque eu ia acordar cedo e ia colocar pra desinchar os olhos; tem esse meu lado que busca um ideal feminino que é inexistente e ao mesmo tempo eu sou uma pessoa preguiçosa então eu fico entre esses dois universos. (risos) Eu faço o que me deixa bem, me maquiar é uma trabalheira, mas eu escolho me maquiar quando eu tenho tempo e sinto que aquele momento é o momento em que eu tô me curtindo, é uma coisa pra mim. Óbvio que depois eu tiro umas 300 selfies pra registrar aquele momento em que eu estava me sentindo bem - mas ainda tenho um problema, tipo, se tu entrar no meu Instagram tu não vai ver nenhuma foto sem maquiagem. Eu ainda tenho essa dificuldade de socializar isso daqui que você está vendo hoje também sou eu, isso aqui também é trans, isso aqui também é travesti, isso aqui também é feminilidade. Eu ainda tenho que aprender a me ver forte neste lugar também.
Foi uma infância muito feliz, eu fui uma criança muito feliz só que eu sabia que eu tinha que dar o truque o tempo inteiro. Fui compreender que isso não era nada saudável depois, no final da adolescência, fase adulta. Acho que com uns 24, 25 anos é quando eu começo a estudar e pesquisar essas coisas muito de forma individual, sozinha, pra tentar trazer uns elementos disso pra dramaturgia. Nessa época eu já trabalhava bastante com teatro, dava aula, gostava muito e ainda gosto de escrever. Teve algum momento em que eu percebi que era um absurdo eu, com aquele espaço que eu tinha, podendo produzir, criar histórias e muitas vezes criar histórias das quais eu não me via ali, em nenhum lugar, uma peça com 15 atores e atrizes e não tinha um... E era eu quem tava organizando aquilo.
Eu percebi, em algum momento, que o meu trabalho com a arte era muito mais corajoso do que eu enquanto pessoa, que eu falava o que eu queria dizer, eu vivia o que eu queria viver. E aí, acho que foi no início da faculdade de dança, que foi em 2013, que eu disse "deu! Agora eu quero equalizar isso daí, então não me importo se eu não vou dizer tudo que eu quero dizer nos meus trabalhos artísticos, eu vou dizer o que eu consigo dizer hoje". Essa coisa da cara limpa, saindo da ação performática, da coreografia, da apresentação, enfim, eu queria me ver tão potente quanto aquilo que estava em cena. Aí eu comecei a vivenciar socialmente a minha identidade de gênero, que antes, por um bom período, vivia escondida, de noite, só em relacionamentos escondidos... Existia aquele território de chegar, sei lá, meia noite "ok, agora posso ser quem eu sou, sair com a pessoa que eu tô gostando." Tudo no submundo mesmo - eu não diria submundo porque nele também existe muita potência, e que bom que eu tive esse espaço - vamos chamar de penumbra, não de submundo, de penumbra. Eu até tava lendo um texto outro dia, agora não vou lembrar a autora, e ela falava sobre isso, de que muitas vezes pessoas querem jogar luz nas nossas vivências e experiências trans para mostrar a importância da nossa existência de uma forma geral, mas na verdade as pessoas deveriam jogar penumbra nas nossas existências pra permitir que a nossa própria luz ilumine e brilhe; eu achei isso tão poético, tão lindo, tão verdadeiro. E eu percebo que nesse momento era muito disso também: eu podia estar vivendo na penumbra mas foi algo que precisei vivenciar pra encontrar minha luz e minha forma de brilhar no mundo.
Eu me lembro também, teve uma época que eu via as pessoas falando muito da solidão das pessoas trans na questão de relacionamentos afetivos e tal e isso me congelava, porque eu pensava, naquela fase do início dos vinte e poucos anos em que a gente pensa ainda muito no que o outro tá pensando sobre nós, eu me lembro que eu tinha estes freios de pensar "não sei se eu conseguiria bancar isso e viver sozinha, sem ter afeto, sem ter..." Em algum momento isso muda de uma forma tão drástica que... Sem meu amor próprio nunca vai existir uma troca real e verdadeira com outra pessoa e, nossa, eu tô solteira há muito tempo e não sinto - acho também que porque eu ainda sou uma adolescente, eu não posso namorar. (risos) Mas não é uma coisa de vivenciar a minha transgeneridade, não tem absolutamente nada a ver com o outro, é meu, é pra mim, é bem... eu ia dizer que é bem egoísta, não sei se é egoísta a palavra, mas é algo pra mim - talvez mais pra frente, mas hoje não sinto falta de relacionamento físico, afetivo, até porque a gente tá vivendo em uma pandemia, então nem sei como seria. É como se fosse tipo assim "ok, agora eu tomei um banho que me limpou de tal forma e só vai encostar em mim quem eu realmente quiser, sabe?"
Isso foi outra coisa louca. Aquilo que eu tava falando de... eu só tenho essa noção hoje, mas, na minha infância, tudo que diziam que era errado que eu gostaria de ser, era colocado sobre a perspectiva do ser gay. E tu vai ouvindo isso muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes. Eu acho que eu nunca cheguei a dizer "eu sou gay", teve muita gente que disse isso pra mim e chega uma hora que tu diz "ok, acho que eu sou então. eu sou e eu não posso ser", porque as pessoas dizem que tu é e que tu não pode ser. Então principalmente na adolescência, início da fase adulta, eu achava que essa era uma das minhas questões de vida, viver neste mundo sendo um menino gay. Por isso eu digo da importância de ter vivenciado períodos na penumbra. Eu lembro umas vez que eu tava... Tinha um namorico com um rapaz e logo em uma das primeiras vezes em que a gente saiu ele disse "tu gosta de usar coisas femininas?" e imediatamente eu disse pra ele "não! Imagina!" Aí ele respondeu "eu acho que ia ficar bonito em ti" e aquilo me desmontou porque eu passei a vida inteira ouvindo "não, não pode, isso é errado".
Então que bom que eu tive esses momentos de penumbra porque me experienciaram afetos que em outros lugares eu nunca ia ter. Ainda no início da minha adolescência, de novo, as coisas tidas como femininas, que não deveriam pertencem ao meu corpo, seja por comportamento, atitudes, mas, também, no meu corpo tinham coisas que denunciavam isso antes de eu me manifestar, que eram uma voz, naquela época, extremamente feminina. As pessoas ligavam aqui pra casa e me confundiam com minha mãe. Meu irmão que tem dois anos a mais e primos da mesma idade tudo já tinham feito a mudança de registro de voz e eu lá com aquela voz, que era uma voz linda - queria saber como seria ter aquela voz hoje. E o corpo que quando dava uma engordada, e aí quando falo uma engordada é assim dois, três quilos a mais, vai engordar onde? No peito. Aí era sempre escondendo, sempre tentando emagrecer ao máximo pra... Porque era outra coisa que denunciava, tipo "olha ainda tem peitinho". Na escola tiravam sarro, tentavam ficar puxando meu sutiã que não existia. Aí uma vez saiu um monte de alergia, eram umas bolinhas d'água na mão, e nos exames que fui fazer pra tentar descobrir o que era, além de descobrir o que era e tratar, nos exames deu a denúncia de que pra idade eu já deveria ter parado de produzir muito hormônio feminino e ter começado a produzir mais hormônio masculino e isso ainda não estava acontecendo, estava produzindo os dois mais ou menos na mesma quantidade. E era então por isso que eu não tinha mudado a voz, por isso que o meu corpo não tava atendendo as demandas de um corpo de um ideal masculino. E sem ninguém me perguntar, sem nem eu entender o que tava acontecendo, eu fiz um tratamento com testosterona nessa faixa de idade ali dos 12 até os 15, eu acho. Foi quando a minha voz começou a modificar. Aí eu vivenciei isso, me foi dito que eu tinha um problema e que isso ia corrigir o problema, beleza, assunto encerrado.
Um dos remédios que eu tinha que tomar era feito com testículo de boi e tinha um gosto de sangue podre horrível! Era horrível tomar aquilo, eu tinha que tomar todos os dias. Nessa época, também, eu fui em um médico que tinha em Ana Rech - um bairro mais afastado, ainda faz parte de Caxias mas é quase outra cidade - e diziam que ele era como se fosse meio espiritual, além de ser médico também tinha esse plus. Esse médico, nossa! Eu tinha muito medo de ir nele principalmente porque ele era um homem gay, e como ele atendia os homens? As mulheres tinham que sair da sala, os homens ficavam e aí ele sabia o que os homens tavam precisando apalpando o saco e o pênis, era assim. O senhor, homem, dito como o meu pai - deixa eu ver se tem alguma foto dele aqui... Não tem, que bom! - permitia que esse homem fizesse isso com ele, comigo e com meu irmão mais velho. Era horrível, era horrível. A primeira vez que ele me atendeu ele disse, eu lembro bem assim, aquele homem abaixado na minha frente, pegando e dizendo "tá vendo? hoje teu pênis é desse tamanhinho, mas a partir de agora tu vai tomar uns remédios e vai crescer e tu vai ser muito mais feliz!" Ai, o nível de nojo que eu passei a ter pelo meu próprio corpo a partir daquele momento, pelo homem, por ter uma pessoa me tocando, inclusive, e com pessoas adultas vendo, ai! Aquilo foi assim, traumático. Tinha vezes em que eu tinha que ir lá só com meu pai, não tinha nem meu irmão junto - porque com meu irmão tava tudo bem. Pra ver o andamento do tratamento, e como ele via o andamento do tratamento? Vendo o meu órgão genital. Aí é outra camada de violência, de toque, de ai... Era horrível. Acho que até hoje eu não sei dizer o quanto aquilo me deixou mal inclusive pra permitir que outras pessoas me toquem. Aí era um desses remédios que eu tinha que tomar - aquele que tinha gosto de sangue podre, era esse homem que receitava.
Aí quando a voz fez a mudança de registro, nesse meio tempo, eu, inconscientemente, comecei a desenvolver um distúrbio alimentar para que meu corpo não mostrasse nenhuma curva. Então, tinha isso, eu tomava hormônios que daí foram engrossando, mudando o registro da minha voz e eu fui parando de comer pra o meu corpo secar, aí, "beleza, tá tudo resolvido. Não existe mais problema nenhum com este filho, vamos olhar pra outro."
Eu só fui voltar a olhar pra isso de novo acho que faz uns três anos, eu fui fazer uns exames no endócrino e surgiu essa alteração. Eu não tava tomando nenhum tipo de medicamento, de hormônio, nem nada, e acusou de novo essa alteração - e sendo colocado sempre assim "é uma alteração, o teu corpo não deveria estar assim, temos que corrigir isso". Só que neste momento da minha vida eu já estudava muito essas questões de gênero e sexualidade, eu já tinha estudado muito questões de corpo intersexo, às vezes eu tinha umas questões assim "hum, essa história tá muito parecida com coisas que eu vivenciei, mas imagina, não. Capaz, não tem nada a ver. Já tô querendo agora ser fominha de achar que tudo..." E não, aí eu conversei um monte com ele, tive que inclusive trazer muita informação pro próprio endócrino e aí que tive a confirmação de que de fato...
Mas aí nesse momento eu já me identificava como uma pessoa trans, então tive aquele momento de ser um corpo denunciado como gay, até eu me entender como uma pessoa trans e depois me descobrir um corpo intersexo também. Aí eu acho que daqui a alguns anos eu vou descobrir que... Tô brincando! Não quero descobrir mais nada (risos). Pra um percurso de vida já tá mais do que bom toda essa viagem. Mas acho que o que eu falei era isso, de como também é interessante e bonito ir se conhecendo, se permitir modificar, mudar, aceitar coisas diferentes e novas. É óbvio que teve alguns períodos em que com certeza eu vivi tipo "não, imagina! Eu não posso ser uma pessoa trans. O que é uma pessoa trans? Uma pessoa trans é uma pessoa que tá na rua se prostituindo, é aquela pessoa que todo mundo tira sarro, que se aparece na TV é ridicularizada... Não, não existe qualquer possibilidade de eu ser isso, mas, meu deus do céu, lá no fundo eu acho que eu sou isso." E aí entender que "eu sou isso", não é aquele estereótipo que tá sendo imposto, eu sou a minha versão dessa experiência, mas até entender isso tem um período de negação, de medo, de receio.
Agora eu não saberia dizer exatamente o que, mas sempre teve alguma coisa que me fez tipo "não, deixa meu machismo pra lá, deixa eu desconstruir isso", porque também tem muito disso, de eu amar ver a feminilidade em pessoas trans e achar isso corajoso. Aí, no início assim, quando eu tava começando a vivenciar socialmente a minha transgeneridade, eu me via em foto ou até no espelho e a primeira reação era sempre "ah! não, não pode, que feio! como que eu tô..." Sabe? Ainda tinha aquele impulso que foi colocado lá atrás de tipo "não, não pode. vai brincar de carrinho". Quando a gente fala de desconstrução, eu não sei se essa palavra não fica assim um pouco batida, porque eu não quis me desconstruir, era algo necessário pra eu viver, pra eu seguir... É, pra eu ser feliz. Eu associo muito estas mudanças com "é pra eu ser feliz, é pra eu voltar a ter prazer na vida, em ter realizações e saber como celebrar" Sabe? Fazer aniversário e ficar feliz, de querer celebrar meu aniversário porque durante muito tempo assim "aniversário, o quê? nem falem, nem façam nada." Aí minha mãe fazia alguma coisa e eu "eu pedi pra não fazer, eu pedi pra não ter nada." Porque era um corpo que eu não sabia... Que que eu quero celebrar naquele corpo? Naquela vida?
Que bom que eu tive uma estrutura familiar, observando ainda essas interseccionalidades, o privilégio de ser uma pessoa branca, de não ter sido exposta a outros tipos de violência, e de não ter sido retirada outros acessos, outras vivências, anh... Que bom que eu tive alguma estrutura pra conseguir compreender isso e estar bem hoje. Até o próprio fato de tipo, quando eu percebi que eu precisava de ajuda psicológica, psiquiátrica e que não necessariamente tinha a ver com essas vivências, mas era coisas geral da vida, questão de trabalho, de relacionamento com pessoas da família, estas questões que acabam se misturando com tudo. Só o fato de pedir ajuda e ter como ter acesso a isso, observo muito nas histórias de outras pessoas trans que isso também... Eu não diria, eu não sei se é um privilégio... É um privilégio em relação a outras vivências mas não é como se eu estivesse tendo algo a mais, eu só tô tendo oportunidades que deveriam ser normais; não que sejam privilégios em relação a todo mundo, tipo "nossa, olha...", não. São coisas básicas na verdade e que infelizmente a maioria das vivências trans ainda não possuem.
Eu percebi que era uma coisa que eu não esperava, que era uma coisa que nunca passou pela minha cabeça que eu pudesse vir a ajudar outras pessoas, porque do momento em que eu começo a me apresentar enquanto Márcie... Como às vezes é importante eu me apresentar e dizer "eu sou uma pessoa travesti", em alguns lugares isso cria um ruído absurdo - eu não faço isso de propósito, pra provocar. É essa coisa das histórias diferentes, de observar que uma travesti também pode estar apresentando uma comunicação oral em um congresso acadêmico. Aí, de repente, pessoas começam a me escrever, pessoas aqui de Caxias, da região, às vezes pessoas que eu nem conhecia, tipo "fulano de tal me indicou conversar contigo porque eu acho que sou uma pessoa trans, mas eu não sei o que fazer". Daí tipo, poder dizer "ó, tu pode procurar ajuda, a ONG..." - eu vivo indicando os trabalhos da ONG Construindo Igualdade -, "ó, enquanto não tiver atendimento, assiste esse vídeo, assiste esse documentário", "como é que tu tá?" Aí, de repente, a pessoa "olha, a minha nova certidão". Surgiu isso também que é algo que é muito sutil e existe na nossa comunidade, a gente sabe que a gente tem que se cuidar porque se não a gente... Não é todo mundo que tem outras pessoas pra cuidarem. Eu tive, graças a deus, a minha mãe, que muitas vezes eu tive que olhar pra ela e dizer "bah, me segura porque eu tô precisando", e muitas pessoas não tem, então eu percebo que na nossa comunidade trans existe este afeto e esta vontade de ver que o outro brilhe também, que o outro tenha sucesso, que o outro... Como é gostoso referenciar pessoas trans em trabalho acadêmico, escrever um artigo inteiro só com referência trans e não precisar mencionar isso, mas tá lá. Talvez o trabalho nem seja sobre vivência trans, às vezes é sobre educação, sobre arte, enfim, mas como é importante, é gigantesco, ao mesmo tempo é sutil.
Eu fui entender a importância de mencionar ser intersexo - e eu ainda estou aprendendo, porque tem coisas que eu também não sei ainda bem como colocar, por exemplo, será que além de me apresentar como uma travesti, também é importante eu me apresentar enquanto corpo intersexo? Mas ao mesmo tempo tem coisas relacionadas a vivência intersexo que é tão do campo do subjetivo, da minha experiência particular, que eu ainda tenho que, talvez, estudar mais, ter um pouco mais de consciência mesmo da importância disso, pra saber me colocar de forma mais assertiva em relação a ser um corpo intersexo. Porque pelo que eu observo, a maior importância de falar sobre é evitar que experiências de violências absurdas - como a que eu vivenciei com aquele médico - não ocorram com outras pessoas, porque ainda é algo que a medicina controla muito, que a gente ainda vive sobre estigmas e ideias. E o simples fato de não falar muito sobre, tem muita gente que nem sabe o que é o "I" da sigla LGBTI. Se fala, se escreve, se coloca ali, mas o que exatamente é.
Eu percebo que, às vezes, em formulários mesmo, eles querem fazer um traço do público alvo que tá indo e a questão de ser intersexo não é colocada junto com as identidades de gênero. E às vezes naqueles formulários em que tu só pode optar por uma dessas experiencias eu fico "tá, eu coloco que eu sou uma mulher trans, uma travesti ou um corpo intersexo?" Só que a intersexualidade não tem nada a ver com a minha identidade de gênero. Tem muitas pessoas intersexo que se identificam como cisgêneras, que se identificam como heterossexuais, que vivem uma vida completamente héterocisnormativa e que, devido a forma como foi conduzido na infância pela medicina, essas pessoas não admitem nem falar sobre, elas não aceitam nem dizer que elas são uma pessoa intersexo, elas preferem utilizar a denominação da medicina. Por exemplo, é como se eu não aceitasse dizer que eu sou uma pessoa intersexo mas eu entendo que tenho a Síndrome de Klinefelter. "Eu tenho uma síndrome, mas eu não sou isso aí que tão falando". Principalmente a questão absurda das cirurgias mutiladoras nos genitais, a quantidade de experiências que eu já ouvi, de pessoas dizendo que médicos falam "é mais fácil cavar um buraco do que construir um poste" - eu acho até que eles devem aprender isso em algum lugar, porque eu já ouvi isso diversas vezes.
Então, se de repente o bebê nasceu com uma genitália ambígua, e não pode viver isso, aquilo nada mais é do que uma cirurgia estética pra garantir que aquela vivência seja de um corpo cisgenero - tirando casos de, tipo, não vai afetar em nada no sistema urinário. Então é mais fácil transformar aquilo em uma vagina do que em um pênis. Tem um documentário muito forte, ele é um documentário curtinho, que é do Amiel Vieira, ele é um homem intersexo. Lá na infância ele tinha sofrido essas cirurgias mutiladoras, mas ninguém da família nunca contou, ele não sabia que tinha vivenciado isso, não fazia ideia de nada. E depois, já na fase adulta, tava mexendo em uns documentos e começou a encontrar uns documentos que eram da época quando ele tinha feito cirurgia ainda bebê, e aí foi perguntar ainda pra mãe. A mãe não entendia o que era aquilo porque os médicos disseram que era algo necessário e foi feito. Aí que na fase adulta ele vai entender que, no caso dele, ele não era "ela", que ele era "ele", intersexo ainda. Então, muitas vezes, é negar a própria história da pessoa, o direito de ter acesso a história. Tipo, se eu não tivesse estudado um monte... No caso com meu corpo, uma coisa que foi me privada, eu posso colocar assim de concreto, é a questão da minha voz, que de fato eu não diria que eu gosto da minha voz. Mas é algo que eu também sou. Por que eu tenho que ter a voz mais fina e feminina, sabe? Não preciso. Mas tem vezes em que eu gostaria também de ter... Em algum lugar do meu corpo, talvez essa fosse minha voz, e eu não tive o direito a continuar tendo essa voz. Mas no meu caso é só minha voz, no caso de outras pessoas é o corpo físico mesmo, é o direito de se olhar no espelho e dizer "eu não sei o que fizeram com o meu corpo, eu não sei como um dia foi o meu corpo". Existe algum território em que a não binariedade - mas que daí é uma questão de identidade de gênero - vai se aproximar da questão intersexo por romper com essas questões das normas binárias. É errado que no quinto ano, em ciências, a gente ainda ensine pras crianças que existe o corpo masculino e o corpo feminino e ponto. Sendo que existe uma variação enorme entre um e o outro. A gente seguir ensinando isso na escola é seguir perpetuando que essa variedade que existe na própria biologia humana não é correta, precisa ser corrigida. E não, não precisa ser corrigida, não é errado, ninguém precisa alterar o seu corpo. A diversidade existe inclusive na natureza.
Biológicos somos todos. As pessoas dizem "ai mas tu não é uma mulher biológica". Aí tem esse leve traço, que às vezes me preocupa, que algumas pessoas intersexo utilizam disso "ah, mas eu nasci assim, meu corpo biológico é assim", mas antes de eu saber que eu era um corpo intersexo eu continuava sendo um corpo biológico, eu também nasci assim. Existe ainda na própria comunidade algum território onde as pessoas vão querer colocar uma experiência como sendo mais válida do que a outra - aquilo que a gente tava brincando do sofrimento, "quanto tu sofreu? Eu sofri mais do que tu, então eu sou mais trans, eu sou mais intersexo do que você". Me aproximar da ABRAI (Associação Brasileira de Intersexos) que me abriu o olho pra essas coisas, porque aí quando eu entendi que "ok, eu sou um corpo intersexo", a primeira coisa que eu fiz foi precisar ouvir pessoas falando sobre isso, querer ler sobre isso. Eu não quero só ler tipo "ai na legenda tem isso: corpo intersexo", não, eu quero ler só sobre isso, eu quero entender sobre isso. Aí que eu encontrei a ABRAI através da Carolina Iara, hoje ela é co-vereadora em São Paulo, ela se apresenta como uma mulher negra, travesti, intersexo, soropositivo; eu vi ela falar e a história, principalmente da vivência dela enquanto um corpo intersexo, na primeira vez que eu ouvi ela falar eu fiquei tipo "mulher, eu preciso andar no recreio contigo! Tem muita coisa que eu preciso saber!" Aí eu fui atrás dela, eu ficava com vergonha de dizer que "ai eu também sou intersexo, me ajude", eu só dizia "ai eu achei muito importante o que tu disse, queria saber mais sobre isso, onde?" Ela me indicou a ABRAI, porque ela faz parte da ABRAI, aí que eu comecei a entender que meu deus, tem muita história, muita vivência, assim sabe, como a variação é muito grande mesmo do que pode vir a ser um corpo intersexo - a minha variação é cromossômica e hormonal, eu tenho cromossomo XXY, que vai criar essa alteração hormonal, eu sou uma pessoa estéril, eu não teria como ter filhes biológicos.
Eu acho, não tenho certeza, que se resume a ter afetos trans e travestis, conviver com pessoas trans e travestis e intersexo. Primeiro, a gente já vai tá rompendo com uma noção de que essas vivências são estereotipadas - eu posso trocar afeto de amizade, de confiança, de conviver, de aprender, com essas vivências, com essas pessoas. E se, por algum motivo, você tá se questionando sobre se faz parte daquilo ou não, já vai ficar muito mais simples, porque tu já admira pessoas, tu já tem contato com pessoas, tu já... Aquilo, de alguma forma, já faz parte do teu dia a dia, da tua vida; mesmo que seja a partir da experiência do outro. Eu acho que pra algumas pessoas, ainda, se torna um grande desafio porque não nos ensinam a admirar pessoas trans, travestis, intersexo; não nos ensinam a consumir produções intelectuais, artísticas, qualquer coisa que venha... E que se a gente consome, a gente não pode falar, a gente tem que deixar isso escondido.
Às vezes tem gente que me escreve dizendo "ah, queria ver se tu topa participar da minha pesquisa, é sobre vivências trans, eu sou da faculdade tal e tô pesquisando isso", eu sempre pergunto "você é trans também?", aí "não, não! Eu tô pesquisando porque acho que isso é importante", aí eu "ah, e você já entrevistou seus amigos, suas amigas trans, travestis?", "não, é que eu não conheço ninguém", "então, se não conhece ninguém, se tu não é próxima dessas vivências, destes corpos, porque tu tá querendo pesquisar isso? Se tu acha importante, por que tu não tem amigos? Por que tu não convive com pessoas trans, travestis, intersexo?" Porque aí, ainda é esse território esquisito em que a gente vive, de pessoas que nos veem como objeto de pesquisa, como... Tem ali um pequeno território acadêmico que tá meio que na moda pesquisar sobre; "ai eu faço uma pesquisa sobre isso, mas só faço porque..." sei lá, é uma lacuna que tu encontrou e que tu tá querendo ocupar porque tu não... Gentilmente, em alguns casos, eu já disse "desculpa, eu vou te indicar outra pessoa" (risos) Já passei esses rojões pra outras pessoas, tipo "eu não vou nem querer conversar e dizer que isso é meio questionável". Às vezes eu não tenho muita paciência, porque eu poderia também dizer "ok, então vamos...", e aí na conversa, na pesquisa dizer "tá vendo? Tem aí uma coisa muito estranha que pode ser melhor", mas nem sempre a gente tá disposto - isso cansa também. Eu gosto da educação, eu sou pedagoga, eu me interesso pelos estudos de gênero, eu me interesso por esse espaço de acreditar na educação como uma ferramenta gigantesca de transformação humana, de forma geral, mas também pra tentar, de alguma forma, equalizar essas diferenças absurdas que a gente ainda vive, de falta de informação, de conhecimento; mas nem sempre eu tô afim de ficar ensinando o tempo inteiro.
Eu percebi muito isso agora porque com a ONG [Construindo Igualdade] a gente vai começar a fazer o PreparaEnem, que a Cléo [Araújo] me convidou pra coordenar, aí eu me senti "meu deus, que responsabilidade, que coisa chique!" E precisava de professores voluntários para todas as disciplinas e tiveram algumas que foi difícil conseguir profes, aí a gente teve que divulgar, fazer uma chamada pra quem tinha interesse. E o que surgiu de pessoas, que com certeza estão se sentindo melhor porque disseram "ai... eu me voluntariei" e aí na hora que eu ia conversar com a pessoa, a pessoa não tinha horário, não tinha como se comprometer com aquilo.
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Márcie Vieira
1984
Artista e pedagoga. 37 anos. Humana da Sookie. Filha da Gladis.
"Fiz as fotos 2 dias após retirar um ciso inflamado. Literalmente acordei inchada e fui fazer as fotos. Busquei me sentir vulnerável no processo, mas o exercício de me ver sem poses bonitinhas de selfies, demonstra o quanto ainda tenho pra me conhecer."
Mulher trans e travesti, intersexo XXY
Ela\Dela
@marcievieirar
1984
Artista e pedagoga. 37 anos. Humana da Sookie. Filha da Gladis.
"Fiz as fotos 2 dias após retirar um ciso inflamado. Literalmente acordei inchada e fui fazer as fotos. Busquei me sentir vulnerável no processo, mas o exercício de me ver sem poses bonitinhas de selfies, demonstra o quanto ainda tenho pra me conhecer."
Mulher trans e travesti, intersexo XXY
Ela\Dela
@marcievieirar
*ensaio realizado em Caxias do Sul (RS) em agosto de 2021
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Esse projeto foi idealizado por Gabz, transmasculino não-binário e multiartista. O Ser Trans é um projeto que retrata e também abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-bináries possam ser protagonistas da sua própria história. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; e Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista.
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com - Qualquer Valor é bem-vindo. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Saiba mais no link abaixo. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3