Eu sou Ayô Tupinambá. Sou uma travesti preta, gorda, bissexual, vinda da periferia, cantora, atriz, indígena em retomada e macumbeira!

Minha mãe conta que a minha primeira experiência cantando deve ter sido quando eu estava com uns três anos. Eu comecei a cantar muito cedo, especificamente porque é isso, né, igreja. 

Desde quando eu me entendo por gente, minha vivência foi muito grande dentro da igreja. Fui apresentada na Assembleia de Deus quando eu tinha 7 dias de vida. Nasci na  Zona Sul de São Paulo. Depois meus pais se mudaram para Osasco e lá eu comecei a frequentar a igreja Quadrangular. E lá dentro da Quadrangular eu acho que a experiência com música foi mais forte. Porque meu pastor pedia pra eu cantar quase todo domingo, eu cantava muito. Naquela época eu tinha uma voz muito aguda para identidade de gênero que as pessoas acreditavam que eu tinha. Então acho que esses são os primeiros contatos que tive de forma orgânica. Só fui estudar música lá pelos 15 anos. Tenho formação na Etec de Artes, em São Paulo, aqui perto de casa, em Santana, no antigo Carandiru. Virou uma escola de artes lá. Fiz curso de um ano e meio, sou formada em canto popular. Então as técnicas eu adquiri lá, mas a vivência de música é isso, desde os três anos de idade. Acho que de uns 6 anos para cima foi mais consciente, de cantar frequentemente, fazer coral. Fiz teatro também. Mas acho que o contato com a música é esse.

Agora o contato da música enquanto artista, trabalhar com música, isso vem depois, bem depois. Passei pela Quadrangular, depois me afastei uma época por causa da questão da sexualidade. Aí descobri as igrejas "inclusivas" e comecei a frequentar uma delas. Cantei muito em igreja inclusiva, fui líder de louvor, mas na última igreja que eu congreguei eu fui mais pelo caminho das missões, do evangelismo. Cantava também, fazia culto na rua. Eu acho que muito da forma como me comunico, a facilidade de falar com multidão, essas coisas, vem da igreja. Acho que vem dessa coisa de ter sido introduzida ao contato com o público, cantar pra muita gente. Apesar de naquela época eu me sentir um pouco tímida às vezes.

Acho que sou uma pessoa no palco, mas fora do palco sou outra pessoa. Eu falo bem - mercúrio em leão, né (risos) -, mas eu sou um pouco tímida quando as pessoas vêm elogiar meu trabalho. Acho que isso também tem um pouco a ver com trauma. Eu escutei muito que eu não fazia as coisas bem, aí é difícil acreditar nas pessoas quando elas falam que eu faço algo bem.

Enfim, entrei nas igrejas inclusivas, virei missionária. E aí eu vou pra Fortaleza. Aí entra já na questão da transição. Eu tive contato com as primeiras pessoas não binárias - a Sid e a Maely. A Sid ainda se identifica enquanto pessoa não binária. A Maely hoje se identifica enquanto uma mulher trans. Mas nós, meio que juntas, nos encontramos nesse espaço em Fortaleza, que era a igreja de lá, e meio que nos reconhecemos em coisas que a gente se aproximava. A Sid tava um pouco mais dentro do assunto e foi ela que olhou pra mim e disse "olha, eu acho que você é uma pessoa trans". De uma forma muito cuidadosa. Inicialmente eu falei "ai não, não tem nada a ver". Não falei pra ela, mas fui pra casa tipo "nada a ver, eu não sou uma pessoa trans". E fiquei com aquilo na cabeça, sabe, remoendo. Fiquei repetindo pra mim mesma durante a semana "não, não sou uma pessoa trans". Sabe, aquele pensamento vinha, a frase dela vinha e eu falava "não, eu não sou uma pessoa trans". Depois eu fiquei pensando "gente, será que eu sou uma pessoa trans?" Algumas pessoas já tinham me perguntado "será que em algum momento você vai transicionar, vai ser uma mulher trans?" E eu sempre tive uma identificação com as pessoas trans. Pra mim nunca foi uma dificuldade - que eu acho que as pessoas cisgêneras tem - de entender o que é ser uma pessoa trans. Ainda mais há uns 10 anos atrás, por exemplo. Eu nunca tive essa dificuldade, então quando as pessoas se apresentavam enquanto pessoas trans eu entendia muito bem o que que era e vida que seguia. Tive poucos contatos com pessoas trans na infância, mas tive, no bairro, assim, aquela coisa: a travesti do bairro, a pessoa trans do bairro. Nunca teve um lugar de estranheza pra mim. Era um lugar do tipo "tá, é uma pessoa ali", sabe?
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Mas aí a Sid falou isso e depois eu comecei a estudar, comecei a ler, e falei "caramba, eu acho que realmente eu sou uma pessoa trans", sabe? E aí parece que as coisas vão se encaixando nos desencaixes. Tipo, eu nunca me senti muito acolhida na comunidade gay, eu nunca tive muitas relações com homens gays. Eu acho que eu fiquei com um homem gay. Os homens que eu ficava, até mesmo antes da transição, eram homens hétero cis, assim, sabe? E era uma coisa muito louca. A maioria eram homens casados, homens com namorada. Mas hoje, olhando pra essa correlação, eu falo "caramba, como tá pra além da estética do corpo", né? Tem algo em você que deve, sei lá, atrair. Aí tive essa questão com a Sid, e fui me entendendo, comecei esse processo de transição. Inicialmente nesse lugar da não-binariedade bem andrógina, sabe? Que é isso, criando as experimentações, vendo o que é legal, o que não é, o que eu gosto, o que eu não me identifico. E depois entrando mais nesse campo da travestilidade, nesse lugar de não-mulheridade. Porque quando as pessoas falam "ai, será que você vai ser uma mulher trans?" Eu nunca me vi nesse lugar de mulher. Nas representatividades que eu tinha com minha mãe, minha avó, sabe? Eu não me via no lugar dessas mulheres.

E me identificar enquanto uma travesti me traz essa liberdade de não corresponder às expectativas que as pessoas têm sobre o meu corpo, sobre mim, sobre o meu modo de agir. Eu lembro quando eu já estava em transição e dentro dessa igreja uma pastora falou assim pra mim "nossa, quer ser mulher, então porque você tá com as pernas abertas?" Eu disse "meu amor, eu sou uma pessoa não-binária, não espere que eu vá corresponder às suas expectativas. Não espere que eu seja a reprodução do que você é na sua vida".

A transição foi girando uma chavinha de positividade, de aceitação, de entendimento, para além de apenas ser uma travesti, sabe? Também para a questão do meu corpo, enquanto corpo preto, enquanto corpo gordo, enquanto corpo que vem da periferia. E tendo esse corpo nas múltiplas inseguranças e potências que ele tem também, sabe?

Depois da transição eu me senti atraente. E é muito louco estar nesse lugar de atração. E não digo atração só do tipo alguém querer transar comigo. Alguém que quer trocar afeto comigo, alguém que me acha interessante, não só pra transar, mas pra conversar, pra compartilhar outras coisas, sabe? Uma conchinha… Eu amo conchinha, gente.



O fato de me identificar enquanto uma pessoa trans não-binária e ter corrido atrás da retificação nesse sentido, que era uma coisa importante pra mim, me traz esse lugar de liberdade. E hoje - tem até um cara que eu fiquei que falou "você binarizou, né? Você tá muito binária". Mas eu acho que as pessoas criam essa expectativa de que, sei lá, uma pessoa hiper feminina para a sociedade tá nesse lugar de mulher trans. Tanto que eu me sinto muito incomodada quando as pessoas me chamam de mulher. "Você é uma mulher trans incrível". Eu recebi uma caneca esses dias que dizia "você é uma mulher incrível". Eu não sou mulher. Eu não me vejo nesse lugar de mulher. Mas também não vou ficar discutindo com todo mundo que me chama de mulher, né. Foda-se.

Eu acho que tem uma expectativa, mas no grupo que eu fui inserida - quando eu voltei pra São Paulo e comecei a conviver com travestis que não tinham essa estética silicone e perlutan - eu não me sentia cobrada. As meninas dão risada da minha cara. Eu falo que eu sou não-binária e elas "uma amapoa dessa!" Mas é nesse lugar de não me sentir mulher, sabe?

Porque quando você fala que é mulher, acho que tem uma expectativa criada. E nesse lugar de travesti eu não me sinto pressionada, porque é isso, eu conheço travestis barbadas, eu conheço travestis que não se hormonizaram nunca, e nada disso diminui a travestilidade delas. Eu prefiro me identificar nesse lugar. Se eu quiser colocar peito eu vou colocar, mas se eu também não quiser, isso não vai diminuir esse meu lugar de travesti. Acho que tem uma expectativa, mas eu não correspondo a essa expectativa. É muito louco. E às vezes a gente cai na falácia, né? Porque eu escutei tanto [que pessoas não-binárias tem que ser andróginas] que às vezes eu entro num discurso, tipo, gente, é isso né, tá lá na minha certidão "não-binárie", mas eu performo uma outra coisa. Às vezes a gente vai se rendendo também à binarização das coisas, mas é porque as pessoas estão enchendo tanto a sua cabeça. Acho que tem gente que se identifica realmente com a androginia, mas tem gente que não, sabe? E tá tudo bem também. Porque é isso, identidade. Como eu falo na música Inteire: identidade, se perceber enquanto uma pessoa trans, não tem nada a ver com roupa, com seu cabelo, com sua voz. Tem a ver com o seu processo interno. Eu entendo a minha travestilidade nesse lugar de não me colocar em caixinhas. E aí percebendo o que me incomoda, o que não me incomoda.

Toda vez que eu vou falar sobre Inteire, sobre a construção da música, eu sempre falo de que nós, enquanto pessoas trans, passamos boa parte da nossa vida não sendo a gente. Então não é ponto final, tipo "transicionei, esse é o último ato da transição". É sempre uma reticências, você vai descobrindo coisas novas, né? Depois que eu transicionei, eu falei "gente, como é bom ficar com mulher, como é bom ficar com outras travestis", sabe? Como é bom também vivenciar o afeto com pessoas transmasculinas, com pessoas não-binárias. Porque era um lugar que  eu não tinha. Primeiro que é isso, eu não me sentia atraente pra ninguém, agora tenho essa atração. E essa atração também me desperta outras atrações por outras corporalidades. A transição não tem ponto final e não tem linearidade, sabe? Não é uma linha reta, eu acho. Sei lá, daqui a pouco tempo eu posso querer voltar a usar a barba, e aí? Isso vai me fazer mais ou menos travesti? Pra algumas pessoas vai, mas eu quero que elas se fodam. É, eu sou uma pessoa que não me... Assim, me hormonizo de forma bem porca, vamos dizer assim. Mas é porque não tenho essa necessidade da hormonização, sabe? Apesar de ser virginiana, eu tenho péssima adaptação com coisas que preciso fazer todo dia. Essa rotina. De todo dia eu preciso tomar esse remédio, todo dia preciso passar esse gel, todo dia preciso bloquear. Eu tenho essa dificuldade.


E eu dou graças a Exu, porque ser artista, ser cantora, é não ter uma rotina. Tem semanas que eu trabalho 4, 5 dias, tem semanas que eu não trabalho nada. Tem meses que tudo é uma loucura, tem meses que eu não faço nada - no sentido de me apresentar, porque eu to sempre fazendo alguma coisa, mas essa rotina é mais caótica. Eu gosto de não ter rotina.

Por isso que não me dei bem com CLT, eu acho. Sempre fui péssima trabalhadora CLT. Acordar todo dia no mesmo horário, cumprir uma carga horária de 8 horas por dia, sabe? Pra trabalhar pra outra pessoa! Por exemplo, eu jamais daria certo pra ter uma banda, sabe? Eu tenho uma banda que trabalha comigo, mas eu ter uma banda e sei lá, a minha cabeça e mais cinco cabeças pensando, eu não consigo. Acho que tem uma coisa com o meu Odu. Então não dá pra ter outras pessoas mandando junto comigo. E não tô falando que a construção do meu trabalho não é coletiva. Eu gosto muito que as pessoas que trabalham comigo deem ideias, construam junto. Mas eu acho que eu não daria certo se a palavra final não fosse minha, sabe? Por mais que eu ouça conselhos ali, a decisão final precisa ser minha. É porque depois quem tem que arcar com a consequência também sou eu! Não gosto também dessa coisa de tipo, "precisa ser feito assim". Não, acho que todo mundo pode contribuir um pouco.

Mas sabe qual é meu sonho? O que eu almejo enquanto carreira artística? Poder fazer com que as pessoas que trabalham comigo só trabalhem comigo. Não no sentido de exclusividade ou querer mandar na vida delas. É porque eu sei o quão corrido é produção, ou até os musicistas que trabalham comigo, sei lá, durante a semana fazem quatro, cinco shows, sai de um show vai para outro sabe. Então poder proporcionar uma vida tranquila para mim e para essas pessoas seria incrível. Ou pelo menos diminuir um pouco essa rotina. Não faça cinco, faça dois shows de bandas diferentes por semana. Acho que seria muito legal. Poder estar naquele palco e só pensar em cantar, não pensar o que os musicistas vão fazer, como foi a assinatura do contrato, como é que tá o som, a luz, se vai ter água para as pessoas no palco. É muito bom poder se concentrar na arte só.

Vai fazer dois anos agora que eu vivo de arte. Eu comecei minha carreira em 2021, algumas músicas foram escritas na pandemia: Canto para sobreviver, Inteire, Ancestravas. Cabrera tem quase 10 anos, foi escrita na ETEC de Arte quando eu estudava lá, é uma canção da Denise França. Mas aí eu lancei Canto pra Sobreviver em 2021, depois foi Ancestravas, depois foi InteireCabrera. Dona Maria Mulambo foi a última.





Acho que hoje eu vivo melhor do que eu vivia antes ou eu sobrevivo melhor do que eu sobrevivia antes. Eu acho que eu nunca ganhei tão bem como eu ganho com música. Ponto, isso é fato. Isso é fato. E aí é isso, quando eu voltei para São Paulo – porque eu morei em Fortaleza, depois em Natal – eu vendi bolo, por exemplo, eu trabalhei numa torteria. E depois eu consegui estágio numa agência de publicidade. Aí 2021 lancei Canto pra Sobreviver, e as músicas foram indo, até um ponto em que eu falei assim: olha, eu tô ganhando muito mais com música do que no estágio da agência. E aí vai fazer dois anos isso. É isso, tem meses que são bem perrengados. O limite dos cartões são estourados, aí vai entrando os cachês, a gente vai se organizando financeiramente. Mas eu sou muito mais feliz trabalhando com arte. Eu nunca me senti tão próspera.

As possibilidades de sonhar, de poder pagar meu aluguel, ter minha casa com as minhas coisinhas, poder receber pessoas, poder se alimentar bem. Acho que enquanto pessoas trans a gente tem esse lugar meio insalubre e inseguro. Às vezes você tem uma casa, mas não tem uma alimentação muito boa. Às vezes você tem uma alimentação boa, mas você passa perrengue em casa com seus pais, com pessoas que não te respeitam. Então poder ter um lugar seguro para me receber e para receber outras pessoas é muito positivo, muito bom. E tudo isso com a arte. A arte tem me possibilitado tudo isso. A arte tem me possibilitado viajar pelo Brasil, sabe? A arte tem me possibilitado trocar com outros artistas. Foi a melhor decisão que tomei até hoje.

Óbvio que tem a questão do talento, da dedicação, de pessoas que foram olhando pro meu trabalho, investindo, se dedicando, né? Como a entrada do Lucas, da Dana, da Rafa. O Lucas é meu produtor e empresário, a Dana é quem cuida de stylist e a Rafa é minha maquiadora. Foram as primeiras pessoas que investiram na minha carreira. O Lucas foi a pessoa que olhou pra mim e falou: poxa, você pode vender seu trabalho por muito mais. Eu vendia show a 600 reais. E era 200 reais pra mim, 200 reais pro violão e 200 reais pro cajón. E quando o Lucas propôs o primeiro cachê, eu falei "ninguém vai querer pagar esse cachê". E as pessoas pagavam! Eu falei "caramba!" E aí os cachês foram aumentando, a equipe foi aumentando, teve a possibilidade de ter o primeiro show com banda completa. Eu lembro que o primeiro show com banda foi através da Biblioteca Mário de Andrade. Porque eu tinha fechado um cachê nessa vibe aí, pra fazer parte de um sarau. E o diretor da biblioteca enlouqueceu quando ele me ouviu. E aí ele lembrou de mim num festival que eles iam fazer e foi meu primeiro show com banda. Cinco musicistas em cima do palco, sabe? Acho que foram essas possibilidades de sonhos que foram sendo agregadas. É pouquíssimo tempo pra conquistar muitas coisas, sabe? Porque eu vejo que tem gente que tá na correria há muito tempo e que não rolou.​​​​​​​


E aí eu acho que entra um pouco da espiritualidade pra mim. Falando especificamente da macumba, esse lugar de reconexão ancestral, e nesse processo de transição, que muitas vezes a gente cai num processo de solidão. Porque é isso, relações são quebradas e outras relações vão sendo estabelecidas. E aí ter espiritualidade nesse lugar de que, tá, às vezes eu tô sozinha fisicamente, mas meus ancestrais estão comigo. A macumba é "tá dando errado? Vamos fazer um feitiço". Tem jeito até pra morte, né? Na igreja se ouvia isso "só não tem jeito pra morte". E na macumba se tem jeito até pra morte. A pessoa tá morrendo, tá no hospital, tá nas últimas, mas às vezes você faz um feitiço e a pessoa sai daquela situação. Que dirá trabalho! Que dirá possibilidades artísticas. Então, acho que tem a qualidade do meu trabalho, meu empenho, essa vontade de que as coisas sejam excelentes – e aí trocando perfeição por excelência, porque eu não vou chegar nesse lugar da perfeição, mas da excelência sim – de olhar e falar "porra, esse trabalho é bonito, vale a pena." Sempre tem algo para melhorar, claro.

E acho que a espiritualidade entra nesse lugar também de me sentir potente. Desde quando eu pisei no meu terreiro do qual eu sou filha hoje, eu sempre saio mais potencializada de lá. Eu sempre saio ouvindo o quão potente eu sou, o quanto eu posso, o quão grande eu sou. Que era uma sensação que eu tinha diferente dentro da igreja, sabe? Na igreja eu sempre saía... me sentindo meio acusada. No terreiro eu me sinto potencializada.

E não tô falando que não tenha puxão de orelha, não tenha correções, coisas que precisam ser feitas. Eu lancei um show chamado "Ayô canta Cartola" e meu pai de santo foi assistir e depois o Seu Ganga, que é meu padrinho, que é o Exu da casa, veio falar comigo. Seu Ganga disse "você sabe que o seu show podia ser melhor, você sabe que tinha agudos que você podia ter feito melhor". E aí eu fiquei muito mal, engoli seco e falei "pois eu vou fazer esse show ser o melhor show da minha vida". Estudei, melhorei. Por mais que seja uma coisa que naquele momento parecesse ruim, quando você entrega lá na frente, você fala "caralho, ele tinha razão. Podia ser melhor".

Nunca é numa perspectiva de dizer que foi ruim. É sobre como pode melhorar. Já tá bom, mas você pode mais, você pode entregar mais, sabe? Então eu tenho saído de lá muito potente. E aí eu vejo duas mudanças: a chegada do Lucas ao dizer que é um trabalho de qualidade que rende e que pode vender mais, e também com o terreiro, com o Seu Ganga falando que eu posso mais, que juntos a gente pode fazer mais. Esse show da Casa Natura teve várias intempéries, mas a Casa Natura queria muito e o Seu Ganga queria muito. E aí as coisas foram acontecendo de um jeito que eu nem imaginava. E aquele resultado é o resultado de toda uma comunidade de fé, de vivos e mortos, de todo o meu trabalho, o trabalho da minha equipe, que se junta e se forma naquilo que é tão potente, que é tão bonito, que é tão leve. Esse foi o primeiro show onde eu consegui curtir, porque a minha cabeça durante o show fica borbulhando com várias coisas, tipo "eu preciso acertar essa nota", "preciso alcançar isso aqui", "não posso errar essa letra". E ali eu não tava sentindo isso. Ali eu só tava vivendo esse momento incrível, que em algum momento eu plantei, as pessoas que estavam comigo toparam também fazer com que aquilo acontecesse. Eu não consigo olhar pra aquilo e não ver um trabalho coletivo muito bonito e muito potente, sabe? Que deu aquele resultado.

Eu estava muito emocionada. Antes do show eu também estava muito emocionada. Chorei no camarim… Coisa que eu nunca fiz, nunca tinha chorado na frente da minha equipe. E eu acho que eu tenho conseguido desaguar um pouco mais com essas pessoas que eu convivo tanto, que eu quero que elas se partilhem também dessa emoção, que elas saibam o quanto elas são preciosas pra mim.

Eu acho que te receber aqui em casa também é uma coisa muito preciosa, por isso que eu queria te receber com comidinhas, porque acho que é uma coisa da minha linguagem de afeto. Queria já te conhecer há muito tempo.

Eu sou metódica. [A rotina com a religião] não é uma coisa que eu me cobro. Tipo, eu quero fazer todo dia, mas eu não quero entrar no limbo do que acontecia na igreja, onde eu me sentia cobrada em fazer. Que também tinha uma rotina de espiritualidade, mas eu me sentia cobrada e não conseguia fazer, me sentia culpada. Na macumba eu não me sinto assim.

Eu quero fazer as coisas. Eu quero cultuar Exu todo dia. Eu quero cultuar meu Ori todo dia. Porque eu sei que essas coisas me fazem bem. Quando eu não consigo fazer - e às vezes é isso, às vezes a rotina vai me engolindo, e tem vezes que eu não consigo fazer todos os dias, que faço duas ou três vezes na semana -, eu sinto que a minha semana começa a ficar meio arrastada, sabe? Então cultuar o Ori, cultuar a minha cabeça, me faz ter um pouquinho mais de sanidade mental, sabe? Parar. Né? São Paulo é esse lugar que não para. Parar, sentar na frente daquela quartinha ali, acender uma vela, trocar a água, falar… Falar "que esse dia seja bom, que esse dia seja tranquilo, que o meu Ori me dê solução pra todas as coisas" é muito bom. Olhar pra Exu, falar com Exu, despachar a porta, esfriar os meus caminhos na rua, alimentar a rua...

Espiritualidade se não for feita no dia-a-dia não vale a pena. Por exemplo: se tem gira aberta e vou lá, vivo a minha espiritualidade só naquele espaço e vou embora, e só vou praticar na próxima gira aberta, não tem constância, continuidade... se for para ser assim eu volto pra igreja, entendeu? Que era o que eu fazia. E é essa a sensação de não estar sozinha. Por isso que eu não falo "depois que eu entrei no terreiro", porque pra mim não é o espaço físico do terreiro. Também é. Mas é para além daquilo ali, é a sensação de comunidade para além do espaço físico, e essa sensação de que a espiritualidade está dentro do meu dia a dia, sabe? No meu dia a dia eu vou cultuando essa espiritualidade, ela vai me movendo. Então tem uma rotina. E é isso, às vezes não dá pra fazer a reza inteira, mas eu acendo a vela, troco a água, faço a saudação e vou, sabe? Segunda-feira costuma ser o dia onde eu renovo todas as firmezas, faço todas as oferendas e tal e vou me sentindo mais próxima. E eu tenho essa coisa do ver também, né? Eu sou muito visual. Há uns 30 dias atrás eu tava muito apertada de grana e não conseguia comprar vela, então era muito difícil sentar ali na frente da quartinha pra falar com Exu, e não acender a vela. Você vê que todo canto da casa tem um lugar ali pra eu lembrar que tem a espiritualidade. Do mesmo jeito é esse grande mural de afetividade - de pessoas que me deram coisas, de coisas que eu comprei, de coisas que eu ganhei. E eu lembro das pessoas quando eu olho pra aquilo ali, então pra mim o visual é importante.



Eu tenho resgatado um sonho de infância, tratado isso em terapia, que é o sonho de, em algum momento… ó a demora pra falar… 

O sonho de ser mãe, sabe? Eu acho que eu tenho... Eu acho que eu tenho esse desejo. Depois da transição ele ficou meio incubado, do tipo "ah, isso não é possível, não vou fazer a criança passar por uma situação de transfobia sem necessidade". E acho que também tem essa coisa do afastamento da família e das coisas que eu passei dentro da minha família de eu não querer reproduzir. Mas acho que eu tô admitindo coisas, sabe? Pra mim mesma.

Eu acho que eu criei uma casca. 

Por exemplo, tenho uma percepção meio torta de mim, às vezes. Eu não me acho uma pessoa carinhosa, não me acho uma pessoa afetuosa. E as pessoas falam "mas é ao contrário, eu vejo muito isso em você". E agora eu tô aceitando que eu sou uma pessoa afetuosa, eu sou uma pessoa carinhosa. Mas parece que a vida me fez criar uma camada de ter que fingir que eu sou durona, mas eu não sou nada durona, eu sou hiper mega emocionada, apaixonada, sabe? Trouxona, mesmo. E acho que essa coisa de ser mãe foi uma coisa que eu fui meio que incubando e agora eu tô admitindo pra mim que quero ser mãe. Não sei se vou ser, mas tenho uma vontade. Não pra agora, mas pra daqui uns 8, 10 anos. Como uma boa virginiana, tenho meus métodos e meus processos. Mas não é uma maternidade que eu quero viver de ter alguém pra gestar. E também não quero viver compartilhada com alguém. A ideia é ser mãe solo.

Também tenho admitido pra mim que eu quero viver grandes amores. Essa possibilidade de viver amores. E não tô falando de, tipo, casar e viver com essa pessoa pra sempre, mas que seja bom, positivo e bonito, o tempo que for pra durar. E é bom poder separar essas coisas também. Porque parece que pra ser mãe tem que estar casada com alguém. E não necessariamente. Eu queria separar bem essas coisas – virginiana (risos) – botar as coisas na caixinha pra vivenciar. Mas acho que hoje se eu pudesse falar de sonho para além da minha carreira - eu quero ser muito bem sucedida na minha carreira, não só eu, como as pessoas que trabalham comigo também. Mas um sonho pessoal talvez seja ser mãe em algum momento.






Ayô Tupinambá
1992

travesti
ela/dela
@
ayotupinamba


ensaio realizado em julho de 2024 em São Paulo (SP), Brasil




ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro. 
Projeto idealizado por Gabz 404.​​​​​​​
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