
Visitei Ventura nesse dia e estávamos conversando sobre como seriam as fotos que faríamos naquela semana. Ela começou a me explicar porque fazer as fotos em Olaria era tão importante para ela, já que algumas semanas antes quando perguntei em que lugar ela se sentiria mais "em casa" pra ser fotografada ela exclamou "Avenida Brasil!". Em determinado momento pedi para gravar a nossa conversa.
.
.
Olha, ninguém mexe no meu subúrbio carioca!
Há uma transformação muito brutal de extermínio desse lazer. Eu tô falando da década de 50, 60, de uma Baía de Guanabara limpa, de uma Praia de Ramos limpa, de uma Ilha do Governador limpa. Eu tô falando de um povo que não precisava se deslocar pra Ipanema pra poder ter acesso ao lazer, pra ter acesso à praia, pra ter acesso a um bom banho de descarrego. Eu tô falando de uma cultura descentralizada. Então se você queria curtir um samba, um pagode, você tinha isso. Tanto que a cultura dos bate-bolas em Olaria é super forte, é super potente. Aí, a partir da década de 70, com a construção da Avenida Brasil e com a construção desse grande centro militar, que é a Casa do Marinheiro, que é a Escola de Marinha Mercante, que são sobretudo esses complexos da Marinha que beiram a Avenida Brasil, isso tudo acaba sendo destruído. E o subúrbio entra numa era de precarização. Vêm as Universais comprando os cinemas de rua, transformando os cinemas de rua em igrejas. Enfim, isso foi algo que começou a se multiplicar. E eu me crio nesse lugar. Eu chego com 12 anos no Rio à borda desse caminhão. Esse momento foi muito difícil pra mim, de muita violência, porque o Rio é esse lugar do culto à imagem, do culto ao corpo. E eu era uma criança super gorda, super afeminada, com um sotaque muito carregado. Meu sotaque era muito carregado e as pessoas riam muito. Lembro de rirem muito de mim quando eu falava "idiota", "igual", porque eu falava "indiota", "ingual", "ingreja", tudo era "in", né? Lembro de rirem mesmo, sabe, minhas amigas, a galera.

Com o tempo, quando eu fui estudar na Adolpho Bloch, que é na Mangueira, eu circulei muito. Meu irmão era muito bebê, então meus pais focaram em criar o meu irmão. Eu já estava com uns 13 anos, aí caí no mundo, ia pro Arpoador, ia pra Tijuca - porque eu fazia curso de informática. Assim eu fui aprendendo a andar no Rio de Janeiro, sempre chegando e saindo pela Avenida Brasil. Eu tinha amigas que moravam em Caxias, na Vila São Luiz, no Beira Mar, então eu vivia indo para lá e ia pela Brasil. Eu conseguia meio que ir embora ou vir com amigas que estavam em outros cantos do Rio, tipo na Baixada ou na Zona Norte ou na Zona Oeste, porque eu descia no meio do caminho, então eu pegava os ônibus com essas pessoas, chegava na passarela 14, descia e ia embora pra casa.
Quando você me provoca a pensar no lugar que eu acho que fala sobre mim, eu penso numa estrada, eu penso numa vida que tá sempre em trânsito. O meu maior conflito é ter nascido na Bahia, ter nascido em Catu, ter me criado em Catu, ter vivido até os meus 11 anos no interior da Bahia, numa cidade pequena, e aí ter sido arrancada desse lugar. Meus pais escolheram vir pro Rio de Janeiro porque eles sabiam que aqui eu teria melhores oportunidades de estudo, de formação, o que eu acho que faz sentido, fez sentido.
No começo eu queria ser carioca, sabe? Eu neguei por muito tempo a minha raiz catuense porque assim, mona, ninguém conhece Catu, ninguém sabe o que é Catu. Catu tem um problema seríssimo, Catu é uma cidade explorada por conta do petróleo, uma cidade muito explorada, muito violentada. Todos os referenciais que existam sobre Catu… Catu não é Salvador, sabe. A Bahia é muito mais profunda e muito maior que Salvador. Eu nasci em Salvador, mas eu fui com três dias de vida pra Catu. A auto estima do povo catuense é muito enfraquecida, não tem nada famoso em Catu, não tem ator famoso de Catu, não tem ponto turístico em Catu, o rio de Catu foi poluído - que foi o rio que os meus pais nasceram, cresceram, meus avós lavavam roupa no rio. Quando eu nasci o rio já era poluído. Então todas as referências de beleza de Catu foram sendo empobrecidas, foram sendo violentadas, foram sendo estupradas, foram sendo exploradas. E aí, quando eu venho pro Rio de Janeiro e me deparo com a cidade: eu sempre falo que o Rio pra mim é o brazilian dream. Eu sempre fui muito essa coisa do tipo "vou ser artista". Sempre que perguntavam eu dizia "quero ser artista", "quero ser atriz", "quero trabalhar na Globo", "quero aparecer na Globo". As minhas amigas sempre falavam "você vai pra Globo", e aí quando eu vim parar aqui eu falei "cara, eu não pareço com ninguém da Globo", sabe? "A minha imagem é desprezível aqui nesse lugar, eu não conheço ninguém, eu não tenho um tio médico, eu não tenho uma tia advogada, eu não tenho uma rede familiar poderosa". Meus tios são analfabetos, minhas avós e meus avôs são analfabetos, todos evadiram a escola. Bem Belchior, assim, tipo, por muito tempo eu sou apenas uma travesti "latino-americana sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior" - sempre falou muito sobre mim.

Teve uma época em que eu não queria ser essa pessoa. Eu não queria ser catuense, eu queria ser carioca, então eu comecei a ser muito mentirosa. Porque eu comecei a inventar ficções sobre essa Ventura carioca mesmo. Comecei a forçar meu sotaque, a mudar, a manipular a maneira como eu falava, a querer matar o meu sotaque baiano. Tanto que hoje tenho um sotaque carioca muito carregado. Eu fui passando por essas transformações até o momento que eu entendi que era uma ficção, que realmente eu não tinha nascido aqui, eu não tinha esses parentes, eu nunca tinha ido na Disney, eu não tinha esse acesso. Porque eu convivi muito com os patrões do meu pai e, de certa forma, os patrões do meu pai eram um espelho daquilo que eu não era e daquilo que eu precisava ser. Durante a minha juventude, durante a minha adolescência, isso foi muito violento. Era aquele papo do tipo "você é da família". Só que eu não era. Eu não era branca, eu não era magra, eu não era rica, eu não era porra nenhuma. Até que, graças a Deise, eu fui entendendo, eu fui me re-apaixonando. Porque isso gera um sentimento de revolta muito profundo, tu começa a se odiar. Você odeia a sua história, você odeia a sua trajetória, você odeia a sua família. Acho que eu vivi muito esse momento de auto-ódio, de ódio a minha raiz, de ódio a minha família.
Isso foi em 2004, não tinha internet, não tinha computador. Era tudo muito doido. Quando eu ganhei meu primeiro celular, que era aquele Nokia que parecia um caixão, foi uma festa, eu fui no Cristo Redentor no meu aniversário. Eu lembro que queria muito ir no Cristo Redentor, quando subi, cheguei lá em cima, tipo, dois minutos você roda aquilo e fala "pf, que merda, poderia ter feito qualquer outra coisa, não adiantou nada vir aqui nessa merda".
Depois eu inicio uma jornada que acho que é a jornada que vai desembocar em quem eu sou hoje, que é o que de alguma forma tá escrito no meu primeiro livro, que é um livro chamado "A Cor de Catu", que é quando eu vou recuperando e cuidando dessa memória, falando sobre as pessoas de Catu, lembrando da minha bisa, lembrando da minha avó, lembrando da minha tia, lembrando de Nizu, que era nossa vizinha - que era uma senhora, uma pomba-girona assim, tinha sido garota de programa por muitos anos. Só que a Dona Nizu era mãe de uma das grandes amigas da minha mãe e era avó de uma irmã minha, uma afilhada do meu pai, que foi criada como minha irmã. E eu vivia na casa dela. Minha família é toda evangélica, lógico, mas ao mesmo tempo tinha uma relação ali em que ninguém era separado, tudo era muito intrínseco, então eu vivia na casa de Nizu. Ela tinha um problema já nas pernas, e a cena que eu lembro - eu vejo enquanto falo - é de uma casa pequena rosa, do lado tinha um pé de Ingá muito frondoso e ela sempre tava fumando cigarro e jogando buraco com homens. A gente ia lá tomar banho de tonel, na caixa d'água. Eu fui me lembrando dessas histórias, me lembrando da minha avó Regina, das histórias que a minha avó Regina contava que eram super fantásticas, lembrando do meu avô. Lembrando da minha história verdadeira, que é mágica, que é fantástica, que é muito rica, muito poderosa, com pessoas muito especiais. Lembrando das minhas tias, dos meus tios, das minhas primas, das minhas brincadeiras... e "A Cor de Catu" é o lugar onde toda essa memória tá registrada.
Começo a perceber que, porra, não tem como matar isso, isso não pode ser morto, isso não pode ser violentado. Eu não troco isso por nada. Mas ao mesmo tempo, o que eu vivi aqui e o que eu vivo aqui... Eu neguei muito. Teve um momento que eu me revoltei com o Rio de Janeiro por conta de tudo isso, por conta dessas violências. Eu comecei a ficar com ódio, comecei a odiar o Rio de Janeiro. Eu também queria voltar a ser integralmente baiana e integralmente catuense, tipo "sempre vivi na Bahia". Só que isso não é real. Eu me criei aqui. Então falar sobre mim é falar sobre esses trajetos, é falar sobre minha Bahia-Rio, é falar sobre esse trânsito, é falar sobre a estrada, é falar sobre não pertencer a nenhum lugar completamente. Porque é isso, eu chego na Bahia, eu acho que tem algo muito profundo, que é algo que me constitui profundamente, mas ao mesmo tempo a minha vida é completamente diferente dos meus primos, das minhas primas. As minhas experiências são completamente diferentes, meu destino acabou sendo outro.

Por conta de ser uma pessoa trans, eu fui banida de Catu. Então por muito tempo meus pais não me deixavam voltar pra Catu, eu não podia aparecer lá. Era como se eu tivesse morrido, ninguém sabia de mim. Ao mesmo tempo, pras pessoas daqui, Catu não existe. Então é como se a minha infância fosse borrada. Quando eu tava na oitava série eu até mentia, falava "eu estudei em tal escolinha ali em Olaria", mas eu estudei em Catu.
Eu sempre vivi uma vida muito muito múltipla. Porque eu morei por um ano com a minha vó no norte do Espírito Santo antes de vir pro Rio. Foi o ano que marcou essa mudança. E que me marcou muito também. Eu tenho um carinho muito grande pelo Espírito Santo porque eu sempre passei muito por lá e foi um ano muito importante, foi o ano que morei com a minha vó, o ano que me transformou pencas. A estrada, o caminho, o trajeto, essa peregrinação. Eu acho que eu sou uma grande peregrina. Se tem um lugar que me cabe é o lugar de peregrina, ou seja, uma pessoa que não pertence a nenhum lugar e ao mesmo tempo pertence a todos. É lógico que eu sou de Catu e que Catu é minha da mesma forma que eu sou do Rio e o Rio é meu, e ao mesmo tempo eu não sou do Rio, o Rio não é meu, e eu não sou de Catu e Catu não é minha. Tem um lugar de profunda e extrema contradição.
Aí comecei a me obcecar com estrada. A ter medo de fincar as minhas raízes em um lugar, e isso provocou mudanças em mim, acho que um poder de adaptabilidade absurdo. Então eu consigo me adaptar. Eu já morei em Belo Horizonte, se você me soltar lá eu me localizo, sei onde é a Lagoinha, sei onde é Santa Teresa, sei onde é o Belvedere, sei onde é a Guranis. Eu sou uma caminhante, uma peregrina, eu gosto de andar, e aí eu saio doida andando. Sempre falo isso: se eu estiver bonita eu saio andando até a puta que pariu. Se eu tiver me sentindo bonita e tiver com um fone, eu ando até a casa do caralho, eu vou embora. Se eu tiver me sentindo feia eu não saio de casa. Mas essa lua em leão faz isso comigo, eu saio doida. Desfilando, lógico, eu amo! Eu me criei descendo a Riachuelo de calcinha, literalmente. Eu tenho pernas muito longas, então ando muito rápido sempre. Eu amo andar rápido, eu amo ser notada. Eu não me chamo Ventura à toa. Quando eu caminho eu sou quase como o vento: eu passo, as pessoas percebem a minha brisa, mas eu já to lá embaixo, já fui.
Morei em São Paulo, me viro super bem, já morei no Butantã, já morei na República, já morei no Jardim Apurá. Depois voltei pra Salvador nessa tentativa de me reconectar com algo que eu sentia que tinha perdido. E depois eu entendi que não tinha perdido coisa nenhuma, que tem coisas que você não consegue recuperar, mas ao mesmo tempo eu me sinto em casa como em nenhum outro lugar, então eu amo. Amo viver na Saúde, desço a Barroquinha, vou até a Castro Alves, pego a Avenida 7, volto ela toda, depois vou passar lá no Nazaré, entendeu? Andando. Desço ali a Lapa tranquila, desfilando, me sentindo muito bonita e volto pra Saúde. E vou me encontrando.
Eu sinto que quando eu caminho, eu me encontro. Acho que é por isso que eu gosto tanto de andar. Hoje eu falei "tenho um monte de coisas pra fazer, mas preciso sair pra andar". Porque eu vou andando, vou olhando, às vezes me sinto mal com os olhares, às vezes me sinto poderosíssima com os olhares. Me sinto mais poderosa do que mal. É esse o lugar que eu me encontro mesmo: no meio do caminho.

Então Olaria é um bairro que por conta dessa movimentação se tornou um bairro-dormitório. E a Avenida Brasil acabou concentrando muitas empresas. Os primeiros quarteirões, não só de Olaria, mas da Penha, Bonsucesso, Ramos, Olaria, Benfica, todos os bairros que beiram a Brasil são zonas de galpões, transportadoras, empresas que de alguma forma se relacionam com o mundo automobilístico, o transporte, o caminho. Meu pai trabalha numa transportadora, então acho que ao mesmo tempo, quando eu falo da estrada, tem um pouco disso. Eu cresci com meu pai liberando carro. Meu pai não dirige, mas libera carros, faz a logística, conhece as estradas, porque ele envia os caminhoneiros pelo Brasil. Então meu pai, eu amo muito, ele é muito safo, conhece as estradas do Brasil inteiro, sabe onde tem pedágio, onde não tem, sabe quantos quilômetros separam Fortaleza de Recife, Recife de Belém do Pará, conhece o fluxo das BRs. E o comércio local é todo pautado nisso, lojas de pneu, lojas de sinalização, de farol. É muito doido, porque desde criança eu ia trabalhar com meu pai lá em Camaçari, porque é isso, meu pai trabalhava em Camaçari por conta do polo petroquímico de Camaçari, trabalha hoje na Washington Luís por conta do polo petroquímico de Caxias, eu sei que existe o polo petroquímico de Cubatão, que é um dos maiores. E Catu é uma cidade petrolífera. O primeiro posto petrolífero do Brasil foi perfurado em Salvador, lá no Lobato. Acho que o meu trabalho tem um pouco a ver com o petróleo e os processos de exploração petrolíferas, que eu acho que isso se conecta com uma série de outras coisas, que a indústria do petróleo é bizarra, surreal. Fico pensando nos processos e no maquinário de perfuração de águas e terras super profundas, isso me emociona num lugar horroroso e num lugar igualmente poderoso. Isso me seduz, me atrai.
Aí eu lembro de trabalhar com o meu pai e lembro dos calendários pornôs nas borracharias. Eu lembro dessas imagens, da graxa, das texturas dos pneus. Eu lembro dessa iluminação de borracharia. Meu primeiro trabalho foi na transportadora - eu trabalhei um mês, né, só que aí que comecei a barbarizar com os ajudantes de caminhoneiro, aí fui logo despedida. Porque eu barbarizei mesmo, eu fiz pegação com um ajudante de caminhoneiro que se chamava Miltinho. Eu era novinha, eu era impossível. Isso pra mim sempre foi muito próximo, essa imagem dos galpões das empresas. Ih, mamei todos os seguranças de todos os galpões de transportadoras, acho que de toda Olaria. Como eu morava numa rua perpendicular à Avenida Brasil - existe uma rua que é paralela, ela é retona, e aí são várias encruzilhadas. A Avenida Brasil é paralela à linha do trem, do ramal Saracuruna, e aí é muita encruzilhada. Essas ruas próximas, são ruas que eu andava muito e às vezes pra me esconder.
Na época que eu era adolescente, eu era muito zuada na rua, sempre me chamavam de viado, bicha, de tudo o que não presta. E pra fugir desses coiós, principalmente da minha rua, eu ia andando pelas ruas que eram mais desertas, justamente as que não eram residenciais. Eram as ruas dos grandes galpões. Inclusive quando eu ia pra igreja. Eu preferia não pegar a minha rua, porque era mais familiar e tal, e ia pelas ruas desertas dos galpões. Aí nessa eu era assediada pelos seguranças, às vezes eu entrava, fazia, mamava, barbarizava. Tipo assim, sexualmente, eu acho que eu fui iniciada nesses lugares, nesses caminhos. Por muito tempo eu achei que era isso que eu merecia, sabe? Que essa era a única coisa que eu tinha, esses eram os únicos homens que eu tinha. Então eu registrava muito as portas desses galpões. Sempre gostei muito dessa estética mesmo, dos paredões, dos galpões, das portas, das pinturas, das transportadoras, dos caminhões, dos carros, dos ferros-velhos, das latarias, dos carros abandonados, das latas abandonadas, dessa imagem de beira de estrada, das borracharias. São imagens que eu amo. Quando eu penso em um lugar que eu me vejo, eu penso nesses lugares assim, sabe?
.
.
.

Eu sou completamente obcecada pelo deserto. Eu acho que eu tenho uma obsessão tão forte pelo deserto quanto pelo oceano, sobretudo pelo Mediterrâneo. Acho que o lugar que mais me chama no mundo é o Oriente Médio. A Tunísia, Jerusalém, Gaza, Etiópia, Egito. Quer dizer, eu acho que essa esquina ali, que pega a Eritreia, Etiópia, Egito, Catar, Kuwait, Emirados Árabes, Síria, Palestina... eu sinto como se eu fosse desse mundo. Sabe a sensação de que você veio desse lugar? Eu me sinto de lá. Eu me sinto extremamente e estranhamente familiarizada com esse território, os conflitos desse território. É um lugar que me chama.
A esquina do mundo. O centro do mundo na verdade, Jerusalém sempre foi conhecida como centro do mundo. E quando a gente pára para observar, de certa forma, é. Porque se você pega o centro-oeste de Jerusalém, você vai cair na África, pega o Egito e segue a África abaixo e vai dar no Saara, que depois vai continuar ali em Serra Leoa até chegar em Angola, vai descer e tá África do Sul. Ou você pode pegar pela costa oriental ali, África Oriental, vai descer, vai pegar Moçambique, Madagascar. Se você pega pelo sudeste de Jerusalém, você vai pegar o Paquistão, que vai dar na Índia, que vai dar no Sri Lanka, que vai dar na Indonésia, que vai dar na Austrália. Se você sobe pro Nordeste, você vai pegar a Mongólia, você vai chegar na China, subindo você vai pra Rússia, você vai pegar a Turquia, a Europa. Então se você pega a Rússia, você vai chegar no Estreito, você vai pegar o Alasca, aí desce e cai pra cá pra essa bagunça que é a América. Então faz sentido que Jerusalém seja o centro do mundo. Considerando o velho mundo, de fato é o centro do mundo. Porque África, Europa e Ásia estão extremamente conectadas e é uma interseção esses três continentes.
E é uma rota, quer dizer, tá ali na boca do mar, tá na quina do Mediterrâneo. Do Mediterrâneo você consegue ir pra qualquer canto. Na verdade, Jerusalém sempre foi uma cidade muito cobiçada politicamente e economicamente por conta da geolocalização. Ela está resguardada por determinados montes, tem uma cadeia montanhosa que protege ela, tem um solo fértil. Então sempre foi muito disputada por todos os impérios, né? O império Assírio invadiu Jerusalém, o império Babilônico invadiu Jerusalém, o Império Romano invadiu Jerusalém. Todos os impérios invadem. O império norte americano destroça e é obcecado por aquela região. A questão Israel-Palestina é inegavelmente uma questão central no mundo, mas quando a gente observa a maneira como o Estado de Israel é financiado na mesma medida que o Estado Palestino é apagado, é morto, é retirado dos mapas, é banido e é punido de todas as formas possíveis, é esquecido. Acho que a dinâmica do esquecimento, da morte, é aplicada naquela região... É surreal. Eu vejo palestinas em vários cantos. No Rio de Janeiro existem palestinas, no Nordeste existem inúmeras palestinas. O que eles tentam aplicar naquele território serve como modelo de violência a ser replicado em todo o globo.
Eu sou completamente apaixonada por geografia. Porque tem a ver com isso que eu estava falando da peregrina. A peregrina precisa saber onde ela pisa. A física me causava desinteresse e hoje eu sou obcecada. Ao ponto de, assim, eu vivo falando que se eu fosse fazer uma formação superior eu ia meter uma física quântica, um babado assim, uma engenharia mecatrônica. A matemática é espiritual. A espiritualidade tá extremamente conectada com a matemática. Acho que a matemática tá presente em absolutamente tudo, né, a vida é completamente matemática.
A colonialidade, a era cristã chega massacrando e destruindo isso. Eu fico pensando nessas sabedorias, por exemplo, na Arca da Aliança. A Arca da Aliança foi uma indicação divina: "onde a Arca da Aliança estiver, Deus está". E aí vêm as indicações: ela precisava ser construída com ouro maciço e as bordas precisavam ser feitas de madeira de acácia. O principal milagre da Arca da Aliança é que ela fulmina as pessoas. Se você tocar na Arca da Aliança sem permissão, sem saber, você morre. E as pessoas morriam. Só que, o que acontecia: o ouro é um dos maiores transmissores de energia, eles levavam a arca pro alto do monte, ela voltava sobrecarregada à beça, por conta dos raios, quem sabia do mistério carregava pela base de acácia e que não sabia e vinha com sede ao pote e tocava nela, levava um superchoque e morria. Então tinha uma noção, uma sabedoria física. Divina, mas completamente física. E aí você tem uma escolha. Você pode achar que aquilo é Deus milagrosamente manifestando o seu poder, lógico. Só que quando eu penso nas manifestações divinas, no poder divino, de fato eu penso enquanto domínio vital, eu diria, um domínio vital da matemática, da física, da química, da alquimia. Pra mim, Deus é isso. Deus está conectado a essa realidade. E a Igreja Católica, o cristianismo vem construindo uma ficção bizarra, cruel e estúpida sobre tudo isso e nos distanciando da verdade, que é matemática. Da verdade, que é física, que é quântica.
Sempre falo que o sistema capitalista e o sistema da branquitude rouba tudo que vê, mata tudo que toca e destrói tudo que sente. Primeiro há uma estratégia, que é a disseminação de uma ficção de que tal coisa é má, de que tal coisa é diabólica, de que tal coisa é impura, de que tal coisa é criminosa. Ele difama, criminaliza e aí rouba. Re-assimila, assimila de outra forma e aí lança como "a grande coisa", "a grande ideia". Porque aí ele apaga o que foi feito antes, que já tá ali há séculos, há milênios, e consegue se estabelecer como o grande criador. O grande truque da branquitude é conseguir implementar no coração do mundo a ficção de que esse homem branco cisgênero é Deus, que é quem tudo cria, que é quem tudo pode, que é onipresente, onisciente, onipotente. Todo o esforço do sistema e da colonialidade é para a manutenção dessa ficção, quando na verdade Deus é a vida, é aquilo que vive, é aquilo que vive desde sempre, é aquilo que vive inevitavelmente, é aquilo que vive abundantemente em tudo o que vive. E que transforma e cria de uma forma incontrolável, ou seja, isso não se controla, a vida não se controla. A vida é incontrolável, a vida é insondável, a vida é onipotente, onipresente, onisciente.
E eu questionava muito isso, porque eu cresci numa cultura, numa cosmologia, numa cosmogonia cristã, então, quando eu pensava Deus, eu olhava para cima, pensava em um Deus que vinha das nuvens, que era um velho branco, que hoje eu sei que era um senhor bizarro, maldito, abusivo, violento, desgraçado.
Eu precisei me desvencilhar, eu precisei derrubar ele nesse altar, desse púlpito, eu precisei destruir ele. "Traquejos Pentecostais para Matar o Senhor" é isso, é quando eu falo "não meu amor, eu vou acabar contigo" - eu não né. Nesse sentido eu sou só mais um instrumento da vida no cuidado com e para a própria vida. Eu não sou nada além disso. Eu sou uma filha da vida, um instrumento da vida, nas mãos da própria vida, fazendo e cumprindo um trabalho da própria vida, em função da própria vida. E o trabalho que eu desenvolvo é um trabalho de vida para que a vida se multiplique, para que a vida seja glorificada, para que a vida possa ser amada, para que a vida possa ser multiplicada, para que a vida possa ser abundante.
E esse senhor, esse homem, esse Deus tão frágil, tão pequeno, tão inútil, tão abusivo, tão delirante é o grande inimigo da vida. É bizarro, porque a gente tá chegando num ponto em que isso parece que já foi longe demais. Eu sinto assim, às vezes "caraca, isso já foi longe demais". Porque eu cresci às margens da Guanabara e quando você vê o mangue, que é um dos lugares onde a vida mais se multiplica, onde a vida mais se desdobra... quando você vê uma mangue num processo pesado de asfixia, de violência, de poluição, aí você começa a perceber que isso tá indo longe demais, né? E que a gente precisa de fato permanecer firmes nesse trabalho.

A travesti é uma peregrina por excelência. Naturalmente uma peregrina. Uma peregrina convicta. Eu acho que todas as pessoas, todas as vidas têm o potencial de serem trans, eu acho que isso não é privilégio exclusivo de ninguém. O que nos diferencia é a nossa coragem de matar e de morrer. É não ter medo da morte. Isso é o que nos diferencia. Ao mesmo tempo, a confiança na vida. Pra matar e pra morrer, você precisa confiar muito na vida, no poder da vida. Você precisa se alinhar muito ao poder da vida, você precisa estar muito íntima da vida ao ponto de ser tão radical. E eu acho isso lindo.
Ser peregrina é ter a consciência de que cada parada, de que cada metro, de que cada canto, de que cada centímetro, de que cada milha, de que cada polegada, de que cada passo é diferente. Nenhum passo é igual. O tempo todo da caminhada você está sendo transformada e transformando. Se você pisa, tudo reage, é uma onda, é um movimento, é um gesto que transforma. Se você pisa na areia, aquela areia tem uma pegada, tem uma impressão. O vento vai transformar aquilo, as águas do mar, o suor vai transformar aquilo. Um vento vai soprar, uma folha vai cair. O tempo todo tudo está se transformando, a vida tá em movimento, a vida não pára. A gente tá aqui, a gente tá girando, o planeta tá girando e amanhã não vai ser igual a hoje. Tudo muda o tempo todo.
O ano começou e eu falei: eu preciso de uma casa, eu não aguento mais andar, eu não aguento mais rodar, eu não aguento mais ser caminhadora, eu preciso de um solo firme pra me estabelecer, vou comprar panelas, vou comprar talheres, vou comprar botijões de gás, vou comprar bacias, vou comprar lençóis, vou comprar toalhas, vou comprar violões, vou comprar cestas, vou comprar potes, vou comprar formas, vou comprar absolutamente tudo. E eu recebi um dinheiro e eu comprei uma casa inteira. Até que o Espírito Santo falou "vai pra outro lugar". O meu contrato era de seis meses e o Espírito Santo não deixou nem completar três meses. Com um mês mesmo já falou "agora é a hora de você partirem" - menos de um mês, literalmente 15 dias. A gente foi para essa segunda casa e a gente sabia que essa segunda casa só ia durar mais um mês. A gente teve que encontrar um lugar em uma semana. Durante toda essa jornada nós fomos sendo transformadas, fomos nos encontrando, nos achando e aprendendo a cuidar, na verdade, de uma casa que é a casa que nos acompanhou durante toda a nossa vida. Então sim, sempre foi sobre essa primeira casa, sobre o templo, que é o Espírito Santo.
Não acredito em santidade, acredito em profanação. Então, quando falo Espírito Santo, lê-se o Espírito Profano. Chegou o momento em que o nosso deslocamento era muito grande. Não era mais um deslocamento de uma hora, era um deslocamento de cinco horas. No começo nós éramos quatro, nossas duas amigas voltaram pro Rio, nós conhecemos Grazi e Gabi, então permaneceu sendo quatro, mas chegou uma hora que só tinha eu e a Eloá. E éramos só duas e aquela casa toda, as panelas, a despensa. Foi muito bom montar a mala nessa hora porque a gente olhava, tinha muitas malas, muitas malas, e cada mala era uma parte da casa. Tinha uma sacola que era a cozinha, que tudo que era da cozinha estava nela. Tinha uma outra sacola que era o banheiro, com tudo o que era de banheiro, de higiene pessoal. Tinha o quarto, que eram os lençóis, as roupas. E tinha outra que era a sala, que aí eram os jogos, dominó, os livros, os lápis de cor, as fitas, e eram muitas malas, infinitas malas. O ventilador! A bacia, era babado. O ventilador com uma bacia de alumínio gigantesca. E quando a gente olhou as malas reunidas, a gente falou "a gente não tem nem braço para carregar essa casa". Aí a gente foi se lembrando da caminhada toda. Quando a gente chegou no meio do caminho, eu lembrei de uma casa que eu tinha e que eu sei que eu tenho, e liguei para uma amiga companheira de caminhada e falei "amiga, vem aqui buscar a gente, que tem um monte de coisa que eu quero deixar contigo". E aí foi metade, foi ventilador, foi bacia, foi panela de pressão, foi pote, foi tempero. Ficou um monte de coisas. A primeira sacola ficou em Itacaré, a segunda sacola ficou em Itaparica, uma parte ficou em Salvador e aí Eloá trouxe uma parte e eu trouxe outra parte depois pra cá pro Rio, aí a gente foi para essa outra casa. Em tal hora eu me liguei que o que me fazia perceber que eu estava em casa era o cheiro de uma essência que a gente tava usando, que eu tinha comprado na Feira do Malhado, em Ilhéus e em todo o lugar que a gente ia, esse cheiro acompanhava. Então onde tinha esse cheiro, tinha uma casa, tinha a nossa casa. Acabou que eu deixei essa essência lá na casa do meu irmão, mas ao mesmo tempo a gente foi encontrando outros cheiros, outras essências. Tal hora a minha vó me ligou perguntando onde eu estava, eu falei que tava em tal canto e ela disse "você parece uma tartaruga, vive com a casa nas costas". Eu acho que é isso mesmo. É sobre ter a casa nas costas, é sobre entender que o nosso corpo é uma morada, não só nossa, mas uma morada acessada por muitos e muitas. A gente escolhe compartilhar essa casa. Quando a gente ama, a gente abre essa casa pra quem a gente ama. Literalmente, essa casa é acessada por várias outras energias. Então a gente precisa aprender a ter uma casa, a cuidar de uma casa.

Moradia é um assunto muito delicado pra travestis, porque nós somos expulsas de casa, nós somos expulsas das nossas famílias. Uma casa custa caro, um aluguel tira a nossa paz, ter conforto em casa é super difícil, nós somos violentadas dentro da nossa própria casa. Por isso que eu amo o trabalho daquela artista contemporânea, psicóloga e super importante, né, a Castiel Vitorino Brasileiro, porque acho muito simbólico quando ela parte do quarto de cura, quando ela traz o quarto de cura, quando ela se desafia a construir um quarto de cura, uma cura que começa no quarto.
Eu não tive quarto por muitos anos, eu acho que ainda não tenho um quarto, tipo, eu sempre dividi quarto - com meu irmão, com minha tia, com meus primos, com Eloá, com Verônica Valentino, com Bianca Kalutor. Chegou um momento em que eu tive um quarto e eu não sabia ter quarto, e eu fui morar com a Castiel. E a Castiel sabe ter um quarto, ela tem um quarto de cura, pra ela é inegociável ter um quarto de cura, ela precisa mesmo. Pra viver nesse mundo, ela precisa estabelecer um lugar de segurança e um lugar de cura íntima. Foi quando eu entendi a importância de um quarto, de um lugar para você. Foi quando eu entendi a importância de construir altares íntimos, de conseguir elaborar um espaço onde você se sinta bem, o que acaba sendo um grande desafio artístico pra mim também, porque eu percebi que eu não sabia cuidar e criar esses espaços, porque o tempo todo eu tava peregrinando, muito mais preocupada em conseguir abrir caminho do que cuidar do caminho. A Bianca Kalutor com "um chão para Bia" sempre foi muito importante para mim também, a campanha da Bianca, viver com a Bianca, acompanhar a Bianca. E é muito engraçado que fomos morar as três juntas ao mesmo tempo, o que parecia impossível, e o que de certa foi impossível. Foi uma brecha impossível - eu, Ventura Profana, Castiel Vitorino Brasileiro e Bianca Kalutor morando juntas na mesma casa. Foi um inferno. Foi uma fenda no tempo, foi o impossível. Quer dizer, de um lado "um chão para Bia", de outro "Quarto de Cura" da Castiel, e eu ali no meio sendo ensinada. Acho que eu tava sendo ensinada [substituir ultima parte por: Acho que eu aprendi] a ter um chão, a cuidar do meu chão, a cuidar do meu solo, a cuidar da minha terra, ou seja, a cuidar do meu corpo, a cuidar do meu espírito, a cuidar da minha alma, num momento que eu estava extremamente fragilizada, porque tem uma hora que você precisa descansar, tem hora que você precisa assimilar de que forma você marcou todos esses lugares e de que forma todos esses lugares te marcaram. Tem uma hora que você já passou por tantas transformações e você precisa fazer um balanço. Esse balanço aconteceu no meu retorno de Saturno. Foram esses dois últimos anos, eu fiz 30 esse ano. E eu fiz 30 exatamente nesse ponto em que eu falei "preciso de um lugar fixo, preciso construir uma casa".
Quando eu falo em ter me tornado uma especialista em adaptabilidade - acho que é muita presunção da minha parte falar que sou especialista em adaptabilidade, porque, né, eu não sou especialista em porra nenhuma, mas eu sou uma pessoa que tem uma pré-disposição em me adaptar, porque eu sempre passei por isso. Por exemplo, se eu vou pra Belém, eu quero aprender a dançar Carimbó como uma nativa! Acho que até hoje não conheci Recife porque eu estou preparando os meus joelhos pra conseguir dançar brega funk bem, sem passar vergonha. Pra mim isso é fundamental, dançar a dança como se dança no lugar onde eu estou. Dependendo da nossa disposição, todo lugar pode ser mágico, todo lugar pode ser horrendo, pode ser aterrorizante. Todo lugar tem maravilhas e todo lugar tem maldições. Eu sempre brigo com o Rio de Janeiro, mas assim, eu amo andar no Rio de Janeiro, amo andar no perigo do Rio de Janeiro! Com meu bom top, com meu bom short jeans. Eu sei me comunicar aqui, eu também grito, eu rio. Ao mesmo tempo eu fico "odeio o Rio de Janeiro". Só que acho que quando você tá bem consigo, você consegue entender a sua levada. Quando você consegue estabelecer seus limites, sua levada, seu ritmo, e equilibrar com o ritmo do lugar, mona, você vai tá em qualquer canto do mundo e você vai curtir. Tipo, São Paulo pode ser ótima, pode ser incrível, pode ser mágica, pode ser horrorosa, você pode escolher ficar puta com São Paulo o tempo todo, por causa dos prédios, por causa da distância das pessoas, por causa da comunicação, por causa de qualquer coisa. Mas você pode encontrar ilhas, Oásis em todos os desertos. E isso vai depender de você. Depende do lugar? Depende. Mas também depende de você. E se você consegue se ajustar de uma forma confortável, você facilita sua vida. Se alguém falasse pra mim há um ano atrás que eu viria morar aqui, eu ia dizer que claro que não. Agora estou vivendo bem no Rio de Janeiro, estou amando morar no centro do Rio de Janeiro.

*ensaio realizado em julho de 2023 no Rio de Janeiro (RJ), Brasil
-
ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro.
Projeto idealizado por Gabz 404.
APOIE ESSE TRABALHO
Autorretrato de Gabz revelado por Eloá Souto