Meu nome é Tainã Ribeiro, tenho 19 anos.
Eu me identificava enquanto homem trans, porque era o que fazia sentido pra mim naquele momento. Depois de um tempo eu conversei com pessoas não binárias, pessoas transmasculinas e tal, aí eu peguei e disse assim "não, espera aí. Acho que eu sou uma pessoa não binária". Aí eu me assumi como não binário. Eu conheci muitas pessoas transmasculinas e foi onde eu consegui me centralizar. Agora, ultimamente, eu tenho pensado muito nisso e fico pensando se eu sou gênero fluido, porque acontece de eu fluir pro feminino às vezes. Às vezes, muitas vezes. Então minha psicóloga ter dito isso da confusão - quando ela falou sobre eu possivelmente estar confuso por me expressar de forma feminina às vezes - isso mexeu muito comigo, de várias formas, porque eu achava que eu não me encontrava ou que eu tinha perdido o que eu tinha encontrado em mim antes. Eu tô em descoberta sobre mim mesmo, todo dia é uma nova descoberta e eu acho que isso não é só pra minha identidade de gênero, é pra eu descobrir coisas que eu gosto, tudo. Tudo é uma descoberta nova, cada dia que passa. 

Eu lembro que fiquei me questionando muito, tipo "porque eu tenho que agir de uma forma em que eu seja binário, se eu não sou binário?" Eu não sou binário. Não preciso querer ficar totalmente másculo pra só, sei lá, nem sei explicar... Eu tentei falar pra ela [psicóloga] de várias formas que eu não quero ficar em tratamento hormonal até onde eu não me reconheça, eu não sou obrigado a seguir até atingir um estereótipo masculino. E aí ela ficava meio "tá, mas e aí?", me cobrando um posicionamento que eu não tenho que ter, sabe? Não fazia muito sentido pra mim. Eu ficava com muito medo de mentir [sobre identidade de gênero pra psicóloga], porque não faz sentido... Não faz sentido algum. 

Eu parei pra analisar isso esse ano porque eu passei por algumas coisas onde eu precisava de um reforço positivo, um apoio de pessoas trans nb, daqui de perto, de onde eu pudesse ver de pertinho. Eu notei que não tem muitas pessoas por aqui. Eu ficava na necessidade de "eu preciso me encontrar, eu preciso encontrar semelhantes pra me sentir confortável", porque já tinha passado o tempo em que eu me sentia confortável, sabe? Às vezes parecia que eu tava cercado por binariedade e isso me deixava estranho, porque eu não podia me expressar. Eu ficava com medo de me expressar aqui por causa das pessoas binárias, eu ficava receoso de me assumir enquanto pessoa trans, porque eu só via pessoas padrões. Eu ficava muito receoso, de várias formas, eu tinha receio de dizer que eu era uma pessoa trans porque eu era negro, eu ficava estranho de ser uma pessoa gorda, também. Eu só via padrão antes, sabe? Todo mundo enaltecia o padrão, e eu me sentia estranho por não ser padrão. Depois fui encontrando pessoas semelhantes, as referências foram, de fato, importantes pra mim porque eu pude me sentir leve e poder dizer com todas as palavras e não ficar com medo de dizer, "eu sou uma pessoa trans e eu sou uma pessoa racializada." Eu lembro que a primeira pessoa que eu vi, que era trans e era racializada, eu fiquei muito, muito, muito, muito com vontade de conhecer e entendia sobre o que ele falava, porque era a mesma coisa que eu passava - era o Caleb , ele é incrível, eu não perdi o contato com ele. Sempre que dá eu falo pra ele que ele foi muito importante pra mim, por causa disso. A partir dele eu fui conhecendo várias outras pessoas. Junto com quando eu fui me assumir e tals, junto com o contato com pessoas não binárias... A primeira pessoa não binária com quem eu conversei era indígena e essa pessoa me deu um toque sobre a minha etnia, sobre a não binariedade, e aí essa pessoa é muito importante pra mim. Eu trago ela no meu círculo social até hoje com muito carinho, porque foi uma pessoa que me ensinou coisas. Eu conheci muito de mim depois que conheci essa pessoa e é importante esse contato. Agora, ultimamente, eu tenho entrado em contato com mais pessoas não binárias indígenas; o que é ótimo. 

Eu acho que a sociedade, em si, tem um rótulo - algo parecido com um rótulo - onde parece que invisibilizam tudo. Parece que uma pessoa indígena não tem espaço pra ser outra coisa, a não ser aquilo que a sociedade pensa que ela tem que ser, e, com isso, dá pra pensar muito no rolê de que tem pessoas que acham que pessoas indígenas não podem ser trans ou gays ou lésbicas; eu já vivi isso e eu ficava pensando em como isso poderia estar acontecendo, é uma pessoa, como qualquer outra. É estranho pensar nisso de rótulos e tal. É mais fácil eu me sentir acolhido por pessoas que também são indígenas e trans, eu sei o que elas passam junto comigo - aí eu consigo me sentir um pouco mais livre.


fotografia analógica - dev/scan lab:lab


Eu acho que por a gente ter tocado nesse papo de ser indígena eu me sinto confortável pra falar um pouco sobre a minha retomada [ancestral], porque, tipo, eu iniciei minha retomada no ano passado e isso ajudou com que eu me encontrasse mais enquanto pessoa. Tudo muda depois da retomada, tu tem contato consigo mesmo e tu consegue te perceber enquanto pessoa, entender teu propósito, o que tu é. Eu não digo só retomada ancestral, eu digo retomada de si mesmo, também. Eu acho que por não ter uma oportunidade de me conhecer conforme o tempo foi passando, parece que eu só tô tendo acesso a isso agora e aprendi sobre o que gosto, aprendi sobre mim mesmo, aprendi a me amar, sabe? Isso tudo veio muito com a minha retomada; eu pude separar um tempo só pra mim e descobri muita coisa sobre mim. Coisas que, se fosse a um tempo atrás, eu estaria me sentindo inseguro e estaria com vergonha de dizer ou de fazer ou de mostrar. Junto com a retomada, eu voltei a tocar, por exemplo. Eu voltei a focar em mim, a gostar de mim e entender porque eu gosto de mim. Perceber meus traços, perceber meu corpo e gostar dele - eu não tinha isso antes, me sentia... Às vezes, eu sentia nojo de mim mesmo. Conforme o tempo foi passando, com isso também, eu fui parando, percebendo tipo "mas como eu achava isso? Como eu achava isso feio se isso é lindo?" E, sei lá, não sei muito bem explicar... Foram conexões intensas, foi como se eu tivesse a oportunidade de me conhecer por dentro e trazer de dentro pra fora. 

Hoje eu tenho orgulho de mim mesmo, eu consigo me olhar no espelho e dizer "nossa! Como eu sou bonito!" (risos), ou "como eu acho isso bonito em mim." Aí, com minha retomada eu aprendi a gostar do meu corpo e focar nele, dizer "nossa, que gordurinha bonitinha" ou "que pelinho bonitinho", e, tipo, às vezes eu sei que não dá, ou às vezes acontece de não acontecer isso, de eu estar muito mal e aí ficar "ah, não tem condições", mas depois eu consigo perceber e era só paranoia, não era nada muito grave. Hoje em dia eu tenho orgulho de dizer que eu me amo e que eu gosto de mim, que eu gosto do meu corpo, que eu gosto do que eu faço e de como eu me expresso.




Eu sou uma pessoa meio que conectada à arte desde novo, e isso é interessante, mas eu tive que retomar isso também, porque aconteceram coisas e eu fiquei parado por bastante tempo. Foi todo um processo de voltar, um caminho pra eu entender o que eu gostava porque antes eu não cantava e não tocava muito, eu não tinha muitas oportunidades - depois de um tempo fui perdendo as oportunidades - e ninguém botava fé que eu cantava; aí agora tô produzindo meu ep, trabalhando nas minhas coisinhas, criando um certo amor pela minha voz, coisa que eu não tinha antes.

Eu consigo me adaptar a coisas novas e a vários lugares da arte, em si, não só na música; isso foi vindo com o tempo, é muito de percepção, eu ficava "hum, mas eu faço um desenho aqui e acho legal, vou virar desenhista", depois eu ficava "não, não vou fazer só isso". Quando eu vi eu tava em vários lugares, tinha um pouquinho de mim em cada canto e isso é tão bom! É bom pensar que eu não parei em nenhum momento, aconteceu uma coisa ruim, passou e aí eu voltei com tudo.

Eu canto, toco, atuo, faço performance, escrevo... Ah, acho que é isso, basicamente (risos). E tá sempre tudo conectado. Assim como eu sou muito misturado (risos) e eu gosto de experimentar várias coisas, eu queria muito que meu ep não fosse de uma coisa só e aí ele tem muita referência: mpb, jazz, soul, samba... e aí é isso, basicamente. Onde eu me encontro, assim. Esse meu ep tá saindo bem de improviso - acho que eu sou mais improviso. Eu toco, eu criei as bases, eu criei a música e tô fazendo isso aos pouquinhos. Eu acho que esse ep vai... Não digo que vai mostrar pras outras pessoas o que eu sei fazer, mas eu tinha muita vergonha e é a primeira vez em que eu vou estar abrindo isso pra mais pessoas; eu sou bem tímido. Eu parei pra me encontrar em várias músicas de outras pessoas e aí eu quero que eu consiga fazer isso também: eu quero que alguém se encontre no que eu canto ou no que eu falo. 

fotografia analógica - dev/scan lab:lab



A minha família é algo complicado. Eu sinto que só agora tô passando a ideia de certeza do que eu quero pra minha família; minha família é minha mãe e minhas irmãs. Minha irmã me respeita, minha mãe fica com um pé atrás, tipo "mas tu tem certeza?" ou ela fala "eu tenho muito medo que tu passe dificuldade por isso", aí, às vezes, também não dá pra entender ela porque ela vem com uma ideia muito, sei lá... preconceituosa. Mas é só comigo e isso me deixa estranho, porque ela sai do portão pra rua e diz assim "eu aceito todas as pessoas trans e entendo elas", mas, quando entra pra dentro de casa, ela fica tipo "tu não". Quando eu tinha uns 17, 18 anos, eu conseguia dizer que eu só me sentia livre depois que eu saia do portão da minha casa, que era o único lugar onde eu me sentia livre, onde eu ia pro colégio e me chamavam pelo pronome certinho e falavam meu nome social. Com o tempo minha casa foi se tornando um lugar seguro também. A minha mãe dá uns passinhos que me deixam orgulhoso, com certeza, mas, às vezes, não é suficiente. 

[Me percebi uma pessoa trans] eu era bem novo, tinha 6, 7 anos. E me assumi com 16, porque fiquei muito tempo assim "tá, mas será que é isso?" e tentando conhecer pessoas pra saber que eu não tava sozinho. Eu acho que ela [mãe] fica muito me perguntando se eu tenho certeza por eu ser novo, acho que só tem a ver com isso, tipo "mas tu é novo, tu tá conhecendo uma galera do movimento, tu tem certeza disso mesmo? Tu tá fazendo por que tu quer?" Ela já me perguntou isso e eu fiquei muito sentido, porque parece que, na cabeça dela, eu tava sendo influenciado por outras pessoas, e isso me deixa muito estranho em relação a ela. Ultimamente eu tenho visto que minha mãe cobra muito posicionamento da minha parte, tipo "tá, e a faculdade? E isso? E aquilo?", ela tá sempre me cobrando algo e eu fico meio estranho com isso. Ultimamente ela tem demonstrado mais apoio e, às vezes, ela fala "tô feliz por isso, tô feliz que tu tá bem, que tu tá encontrando teu lugar", mas aí, depois, ela fala alguma coisa que me deixa muito triste, mas... Eu acho que é um processo pra ela, também. Espero que ela consiga entender tudo sobre mim e seja de boa com tudo sobre mim. 




Eu acredito que a minha vivência enquanto pessoa trans em Pelotas é bem baseada numa busca, sabe? Uma busca de pessoas semelhantes a mim, parecidas comigo, que tenham passado pelas mesmas coisas que eu e que entendam o meu local de fala. É meio difícil encontrar o que a gente busca em Pelotas, mas também não é impossível. Eu, por questões de defesa mesmo, entrei em uma bolha pra me encaixar. E aqui não foi muito diferente. Hoje em dia eu prefiro ficar sozinho pra me manter melhor da cabeça. Porque… eu não conseguia encontrar com frequência o que eu procurava aqui em Pelotas. Eu queria encontrar pessoas semelhantes a mim - fisicamente semelhantes a mim. Eu queria encontrar uma pessoa racializada, gorda, não binária. Conforme o tempo foi passando, parece que foi ficando mais difícil de encontrar isso, sabe? Num nível que eu mesmo fui me reprimindo, a um nível de tipo [ficar] só eu, assim, na minha cabeça, e comigo. Eu não vou dizer que eu não sofro por me sentir só às vezes aqui em Pelotas.

É uma cidade incrível. E calma, sabe, pra gente. Mas não tão calma também. E é uma busca, sabe? Uma busca de se encontrar. E se sentir bem. E confortável. Só tem que ter ânimo.

[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]






Rapo Oregui M'bya Guarani
2002
Sou uma pessoa trans de bucet*, neurodiversa, multiartista e indígena em retomada.

Pessoa transmasc
ele/dele/elu/delu
@criadosol_


*ensaio realizado em Capão do Leão (RS) em novembro de 2021
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Esse projeto foi idealizado por Gabz, trans não-binário e multiartista. Ser Trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemens, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. 
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

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Autorretrato de Gabz  revelado por Eloá Souto, digitalizado por Lab:Lab

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