Eu me identifico como um homem trans, acho que é o termo que eu mais gosto. Eu questionei muito isso na real porque no início eu ficava tipo 'ah mas será que eu quero dizer que eu sou um homem' sabe... Mas eu vejo também que é importante ter homens trans que aceitam que são homens trans até pra galera ir desacostumando da imagem do que é homem. Porque, sei lá, eu pensei 'ah será que eu sou não binário, será que eu quero me afirmar como, tipo, não tenho gênero' mas eu acho que pra mim é importante afirmar que existem outros tipos de homem. Já me falaram que eu pareço meio gayzinho, meio viadinho, mas é só a masculinidade que eu exerço, então eu gosto de afirmar isso, que eu sou um homem trans. 

Isso é uma questão que ainda me deixa muito na dúvida, se eu sou, entre bi e pan por exemplo. Mas eu sou uma pessoa que me relaciono com qualquer pessoa. Depois que eu me assumi trans foi uma questão que me abriu muito mais as possibilidades de bá, se pá na real eu… eu gosto de pau também e não acessava esse lado sabe. E aí hoje em dia me relaciono com qualquer tipo de pessoa, não importa o gênero dela.

Eu me via muito como lésbica e eu era meio rad então eu vivia nessa bolha lésbica onde todo mundo tinha que odiar homem e pra mim era muito difícil assumir que eu talvez gostasse de homem também. Então eu meio que deixei isso guardadinho e veio à tona depois que eu me assumi trans. Acho que foi isso, eu me senti meio reprimido pela minha identidade lésbica talvez.

O 'homem' que eu detestava - e na verdade eu ainda detesto esse homem né (risos) - é o hetero-cis-normativo-escroto enfim, que a gente tá acostumado. Mas eu percebi que existem outras formas de ser homem, que não é só aquela forma. Que eu posso me relacionar com um homem cis e ele ser legal.










Foi pelo meio de 2018 que eu… Eu me identificava como lésbica até então, mas eu sempre quando ficava bêbado chegava em casa e ficava vendo uns vídeos de homens trans no youtube. Eu ficava olhando e gostava, só que eu não aceitava pra mim mesmo que eu queria aquilo, eu só achava legal ficar pesquisando sobre homem trans assim. Só que daí eu nunca falava isso pra ninguém. Aí teve um rolê que eu dei que eu fiquei bêbado e eu resolvi contar pra uma amiga minha que eu tava começando a noiar que eu não gostava dos meus peitos e que talvez eu achava que era trans, mas eu não sabia se eu era trans porque naquela época eu achava que pra eu ser trans eu tinha que querer ter um pau. Tipo, era essa a visão de ser trans que eu tinha. E daí eu pensava 'não, se eu só quero tirar o peito… ter um ombrinho mais largo… sabe, ter um negocinho ali, outro aqui… eu não sou trans, eu sou só uma caminhoneira que não quer ter peito, tudo bem' (risos). E aí essa minha amiga falou 'tá, mas não tem problema se tu quiser tirar teus peitos , quiser ser trans, se tu for trans, não tem problema'. E aí eu comecei a cada vez questionar mais isso, eu comecei a noiar muito.



Foi num outro rolê, depois de um tempo, acho que passou uns dois meses, e eu questionando tudo, não sei nem se questionando, eu só tava com muito medo de tudo, eu não conseguia nem questionar, eu só ficava assustado e reprimia. E aí eu bêbado novamente, com um amigo meu, a gente sentou num bar e eu tava olhando binder pra comprar naquela época e - na época esse meu amigo também era mina assim, ele se assumiu junto comigo - e aí eu falei pra ele 'acho que eu vou comprar um binder'. Eu tava super pensando que ele ia achar estranho e ele só falou tipo 'meu, eu também!' sabe, e daí a gente entrou no teto juntos assim.

E a gente decidiu que a gente ia ser o porto seguro um do outro e que a gente ia começar a se chamar de ele um pro outro e a gente até marcou de ir numa festa e naquela noite a gente ia ser o que a gente quisesse. A gente ia entrar e a gente ia performar a pessoa que a gente quisesse ser por uma noite, eu e ele. E aí a gente entrou na festa e a gente achou uma travesti lá dentro de cara. Ela veio, olhou pra nós e já perguntou se a gente era não-binário. Tipo a travesti nem questionou se a gente era mina, foi tipo 'não-binários?' (risos). E aí eu fiquei 'nossa, mas que fácil, mas já? Dá pra ver?' (risos). A gente inventou uns nomes pra ela e ficou trocando muita ideia com ela e foi perfeito, foi a primeira noite perfeita que eu tive. Quando acabou a festa eu saí meio apavorado porque eu fiquei pensando 'meu deus, eu quero isso pra fora dessa festa também, não quero isso só dentro dessa festa, sabe, foi perfeito, eu quero isso pra sempre'.













Eu pensei que eu ia começar a me chamar assim e não ia dar muita explicação pras pessoas. Eu quero ser chamado de ele e é isso. E aí algumas amigas até começaram a notar, vieram me perguntar, eu fui explicando e tal, mas eu ainda tava muito confuso nessa questão de se eu era homem trans, não-binário... Eu não sabia onde que eu me encaixava na transgeneridade. Eu fiz a minha identidade social, foi a primeira coisa que eu pensei, bom não quero mais esse nome pra mim, eu preciso achar outro nome. Eu entrei num dicionário de nomes e lembro que eu queria um nome com N porque eu queria que fosse um nome fácil pros meus pais continuarem me chamando, não mudar drasticamente de N pra Z. Eu fiquei entre Narciso e Nate (Nãte) e eu gostei assim do Nate porque era um nome curto, eu queria um nome curto, tava cansado de ter um nome comprido. E eu queria um nome simples e diferente, porque eu não queria um nome cis, eu não queria um nome que pertencesse a mim e a um homem cis-hetero-normativo. Eu queria ser único assim, sabe, tipo "o Natê trans". Mas eu pensei 'ah mas eu to no Brasil, eu não vou colocar meu nome de Nate sabe, eu não quero ficar me chamando de Nate no Brasil sabe. Aí uma amiga minha falou 'e se tu colocar um acento e fizer Natê?'.

Eu ficava me olhando no espelho e 'Natê', 'Natê?', 'será, Natê?', 'ô Natê', sabe? (risos). Eu ficava 'me chama de Natê, deixa eu ver se eu escuto'. Daí total eu amei esse nome. Tipo, eu me considero uma pessoa meio fofa assim, simpática, e eu acho que dá pra tu dizer que é uma pessoa fofa e simpática quando tu chama esse nome sabe, daí eu super me identifiquei.













Aí eu fui atrás de mudar meu nome social e eu tava muito assustado porque eu tava fazendo tudo isso escondido dos meus pais, então eu tava 'meu deus, vai que eles olham minha carteira e tem uma carteira com outro nome e minha foto'. Enfim, eu fiz, só que daí eu comecei a pensar tipo qual será o próximo passo, porque eu não quero parar por aqui. Fui atrás de uma terapeuta e cheguei na cadeira dela, ela perguntou porque que eu tava indo lá, e eu chorava falando que eu achava que eu era trans e eu queria ajuda porque eu não tava me entendendo, que eu não tava me aceitando direito ainda, não sabia o que fazer.

Eu nem pensava em tomar hormônio, naquela época eu era meio contra hormônio, eu até seguia pessoas trans que tiraram os peitos mas não tomavam hormônio e aquilo era minha referência na época. E eu olhava umas fotos de trans meio peludinhos, fortinhos e naquela época me dava meio uma repulsa tipo 'não quero ser assim'. Coisa que hoje em dia não é tanto, já mudei um pouco. Eu negava o hormônio, eu pensava 'não quero, vou só mudar meu nome, e eras isso aí, chega, já é demais pra mim' sabe? É uma coisa que eu fui desconstruindo com a terapia assim, tipo, porque eu não quero hormônio? Porque eu tenho essa repulsa do hormônio? Porque eu nego isso? Será que se eu parar pra pensar sem negar direto, será que eu não vou criar uma familiaridade com isso? 












Como eu canto eu tinha muito medo de estragar a minha voz. Isso foi a pior coisa. Tinha dias que eu tava tão mal que eu pensava tipo 'ai deus, porque tu me fez trans e cantor? Não dá pra ser uma coisa só? Que difícil cara!' É bem foda. Eu chegava a botar na balança assim: eu quero ter ombro largo, eu quero ter gogó, eu quero que a minha voz fique mais grave - porque era uma coisa que eu não conseguia ver vídeo meu falando, eu não conseguia ouvir. Mas também eu gostava de cantar porque é o que eu quero trabalhar, é o que eu amo fazer. Então eu ficava tipo, quero tudo isso mas isso aqui pesa muito. E aí a minha terapeuta começou a me ajudar, tipo, 'mas tu já pesquisou homens trans que cantam?', 'tu já viu se isso é possível?', 'vai atrás dessa informação, antes de só negar ela.' Eu comecei a pesquisar e encontrei muitos cantores trans da gringa, brasileiros alguns bem poucos, e comecei a ver que a galera tomava hormônio há cinco anos e cantava super bem. Eu pensei: tá, eu não vou estragar minhas cordas vocais sabe, só vai mudar. Resolvi marcar consulta com o tal do endócrino e falei que eu cantava e ele falou 'se tu sabe cantar, tu não vai desaprender. Só vai mudar, tu vai cantar mais grave, vai mudar tua musculatura, tu vai ter que provavelmente fazer uma fono pra acostumar o músuculo novamente, mas se tu sabe fazer tu não precisa se preocupar que tu não vai acordar num dia e não saber cantar mais' e daí tá, eu aceitei. E comecei a querer tomar hormônio, o que foi uma coisa que por um lado foi muito bom, porque eu tava muito de boa comigo, mas também já tava chegando na hora de eu ter que contar pros meus pais, porque eu moro com eles então não tinha como eu tomar hormônio e eles não saberem, porque eu ia mudar. E essa parte foi me apertando, me deixando meio angustiado, meio ansioso. Eu ficava na frente da minha mãe quase cuspindo e guardava sabe, tanto é que eu contei pros dois bêbado. (risos)











Daí eu contei pra eles pelo Whats, porque eu não consigo contar coisas sérias pessoalmente, eu começo a chorar. Eu sou muito sensível, eu começo a chorar muito fácil e eu não queria chorar sabe.. Então eu pensei, vou contar pelo Whats. Eu mandei pra minha mãe primeiro 'preciso falar contigo' e ela respondeu 'que que foi?'. Eu falei 'eu acho que eu sou homem'. E ela 'tipo trans assim?' Aí eu 'é'. E ela me mandou 'e o que tu quer fazer? Quer mudar teu nome?' E eu 'quero' e ela 'tá, vamos mudar teu nome então'. Foi meio que essa a conversa, ela entendeu meio que por cima mas beleza, contei.

Mas meio que nada mudou, tipo.. Porque a questão que ia mudar real era eu falar do hormônio e tal e daí já que ela não perguntou eu pensei 'não falei que merda, agora vou ter que achar outro momento pra falar disso'. Eu resolvi contar pro meu pai primeiro, aí com ele já foi meio diferente, eu mandei pra ele 'pai, acho que eu sou homem' e ele mandou pra mim 'sério? Nossa, sempre achei' (risos), 'e tu quer tomar hormônio, é isso?'. Eu mandei 'sim' e ele 'tua mãe já sabe?' e eu 'sim' e ele 'tá, vamos ver com calma um médico, vamos pesquisar com calma o que a gente pode fazer' tipo super me apoiando. 'Pior que eu sempre achei, tu usava minhas roupas', falou assim pra mim, 'eu dizia pra tu tirar foto e tu ia lá pegar minhas calças'. Não que ser trans se resuma a isso.

E enfim, marquei endócrino, peguei uns exames pra fazer. Na outra consulta eles foram comigo, porque o endócrino perguntou se meus pais me aceitavam eu falei que sim e ele disse 'traz eles então, porque a melhor coisa é ter o apoio deles e eles ouvirem tudo que eu tenho pra falar'. Daí eles foram junto, eles foram muito queridos, o meu pai queria que eu montasse um armário pra deixar estoque de hormônio pra faltar, porque o endócrino falou que às vezes nas farmácias falta e ele já ficou apavorado tipo 'meu deus,  meu filho vai ter que tomar isso todo mês, então não pode faltar, vamos comprar um lote já, deixar tudo estocado'. Minha mãe também foi super querida, a maior preocupação dela foi se eu ia ter câncer, tipo, preocupação muito de mãe, quais os riscos pra saúde.





A minha mãe depois que eu falei que eu era trans eu chegava em casa ela tava vendo filme de trans na TV. Tem um que a gente viu junto, que é aquele 'Meu nome é Ray'. A gente viu junto, sabe, ela tipo... Ela super me ajudou muito a fazer o corre de mudar o nome também, eu acordei cedo, ela que me apoiou a grana pra fazer o corre de mudar, tanto é que eu consegui fazer em um dia. Mas ela viu que era meio urgente. Acho que também o filme assustou um pouco ela, porque o guri era meio, tipo, surtava, e daí ela tinha medo que eu fizesse isso também. Tipo ah se eu falei que eu sou trans e 'olha ali o trans na tv tá surtando, então meu filho não pode fazer isso, meu deus'. Eu não sei da onde eles tiraram tanta informação. Meu pai acho que por causa do Thammy [Miranda]. Mas eu ajudei bastante eles depois, expliquei e tal. Sempre fui muito parceiro deles também e eles também. Eu sempre fui amigo dos meus pais. 


Eu comecei a tomar o hormônio dia 2 de abril de 2019. Então em um ano eu tava me entendendo e buscando referências e terapia e essa questão da voz também. Então durou uns 6 meses esse processo de 'quero tomar testosterona ou não quero?'. Eu me assumi no Natal de 2018, eu lembro que eu passei o Natal já assumido, eu tava recém fora do armário. Eu lembro que até isso era uma coisa que ia me incomodar, de eu ir pra uma festa em família e as pessoas não saberem. Eu pensava 'não, eu preciso me assumir antes do Natal'. Foi o prazo que eu dei. Eu ia me dando prazos. Em janeiro, fevereiro e março foi o processo de ir no endócrino, fazer exames, voltar lá, durou três meses isso. E em abril eu consegui tomar a primeira dose.

As festas da minha família são bem rápidas, porque a minha família não é grande, e Natal geralmente eu passo com meu pai e alguma namorada dele, porque a minha mãe geralmente trabalha no natal. E aí eu passo com ele pra ele não ficar sozinho, e nem lembro muito, mas o meu pai saia contando pra todo mundo 'tu sabe que a Natália é trans né, e agora é Natê' e ficava falando assim, meio que me apresentou na festa assim. Eu meio com um sorriso de 'que? Não precisa fazer isso', sei lá (risos). Mas enfim, foi fofo. Meu pai é muito fofo ele já fez post no Facebook falando que tinha orgulho de ter um filho trans. Acho que foi quando eu, ah, porque minha terapeuta propôs de eu fazer uma sessão com meu pai e uma sessão com a minha mãe pra perguntar se eles já tinham noção disso, se eles entendiam o que era transição, etc. Aí meu pai chorou na sessão dele e saiu muito orgulhoso da sessão porque ela tinha dito que ele era um ótimo pai e ele tinha ouvido várias coisas assim. E daí ele colocou no Facebook 'eu tenho orgulho de ter um filho trans,' e meu pai tem vários amigos bolsominion no Facebook.  Meu pai é de direita, na real, mas ele sempre fala que ele é de direita mas não é de direita extremista. Por exemplo ele nunca apoiou o Bolsonaro sabe, ele acha o Bolsonaro um retardado. E aí enfim ele sempre me apoiou apesar das questões políticas dele, das amizades dele. Que ele tem amigos bem escrotos. E aí eu achei muito foda ele querer compartilhar no facebook dele uma coisa dessas pra mostrar pros amigos dele escrotos que ele tem isso, ele vive isso, ele aceita isso, sabe. Achei massa esse lado.
E depois que eu me assumi trans pra ele, ele sempre me pergunta o pronome dos meus amigos tipo sempre que eu apresento alguém ele pergunta tipo "ah, mas é O ou é A?" sabe tipo 'tu é o que?' do jeito meio grosso dele, mas perguntando. 
Eu sou umbandista. E sempre que eu ia em sessão no meu terreiro, as entidades falavam pra mim 'tal coisa, quando tu descobrir quem tu é', 'tu só vai conseguir tal coisa quando tu descobrir quem tu é'... Sempre aquela maldita mensagem de 'descobrir quem tu é' e eu tipo 'tá, eu sou músico!', sabe, achando que sei lá, era sobre profissão… E eu nunca pensava que era sobre trans. E aí quando eu me assumi as entidades pararam de falar isso. A última vez que eu fui a entidade falou pra mim '...agora que tu sabe quem tu é,...' e eu fiquei tipo 'caralho' tá ligado, tipo, bizarro assim, como a gente não percebe que algumas coisas podem ser outras. Nunca pensei que eu ia ser trans, sério, é… gosto muito de ser hoje em dia, mas eu nunca pensei que eu ia ser tipo.


E eu tenho até uma tatuagem no peito que tá escrito 'OLHE-SE'. E eu lembro que era quando eu... na verdade me assumir uma lésbica radical foi meio que uma imposição das pessoas que eu andava, porque eu não sei se eu queria ser aquilo sabe, eu não sei se essa identidade me representava tanto. Porque eu me olhava no espelho e eu não… eu lembro do momento que… até uma entidade falou pra mim que eu tinha que me olhar no espelho e me olhar nos olhos. E quando eu fiz isso, eu me olhei nos olhos e comecei a chorar. Foi a primeira vez que eu parei pra me olhar nos olhos e chorar. E eu tava sem camisa, comecei a olhar pro meu corpo e fiquei… 'não sei se eu gosto disso…' e daí eu pensei vou fazer uma tatuagem em cima do meu peito pra ver se eu gosto dele sabe, transformar ele em um pouco mais meu sabe, ficar um pouco mais íntimo desse corpo. Aí eu fiz a tatuagem mas, até me enganei por um tempo, mas hoje na real ela faz mais sentido, agora que eu tirei os peitos. Mas eu acho que o primeiro estalo foi esse, tipo, quando pediram pra eu me olhar e eu me olhei e pensei 'não sei se é isso', porque eu nunca tinha me olhado, nunca tinha parado pra me olhar. 






Acho que a primeira pessoa, idéia, referência de pessoa trans que eu conheci foi o Tarso Brandt. Foi num programa do Pânico. Ah, sério, muito escrotos assim, foi uma brincadeira 'o menino-menina entrando no banheiro das mulheres', que daí era o Tarso - que era Tereza Brandt, que na época era um homem trans que continuava se chamando no feminino, agora já mudou, agora é Tarso. Mas era uma brincadeira do Pânico assim de assustar as mulheres com o 'homem de buceta' sabe. E foi aí a primeira vez que eu tive contato e fiquei tipo 'meu deus, como que a pessoa fez isso?', eu fiquei meio assustado tipo 'meu deus, como que isso existe' sabe? 'Era mulher e virou homem', eu fiquei apavorado assim, mas eu acho que isso foi, a primeira vez que eu tive contato.
[Nota do editor: esse programa foi ao ar em 2013. Natê tinha 13 anos]


Eu lembro de uma figura trans na época da minha escola, que tinha uma travesti que estudava lá. Ela era do ensino médio, ela era bem mais velha. Eu nunca falei com ela, mas eu lembro que era uma coisa que ainda assustava muito a galera sabe, a galera ficava tipo 'ah tem uma travesti na escola'. Não era muito falado, sei lá, na minha bolha era uma coisa meio estranha, 'meu deus as pessoas fazem isso', sabe, não tinha muitas pessoas não.

Eu era um adolescente bem escroto, eu olhava uma mina de short curto e ficava 'ah, puta'. Não são coisas que a gente tem que ter vergonha de falar porque enfim, a gente muda. A gente tem que falar. Eu não preciso esconder que eu olhava pras meninas e falava 'puta' porque eu falava mesmo. Mas, enfim, hoje em dia, graças a deus, já mudei muito.​​​​​​​













Depois que eu comecei a fazer terapia eu comecei a lembrar de tudo. Eu lembro uma vez que eu tava no condomínio que eu morava e eu descia sempre umas 6 da tarde pra brincar com os amiguinhos do condomínio. A gente sempre fazia umas brincadeiras de família e coisinha assim sabe e eu sempre era 'os meninos'. Eu lembro desse dia porque eu falei que eu queria ser o irmão e uma guriazinha olhou pra mim e falou 'porque tu quer ser sempre os meninos nas brincadeiras?' e tipo, aquilo era tão natural pra mim que me fez pensar 'ué será que tem alguma coisa errada comigo? Porque aquela menina não quer ser o menino da brincadeira e eu quero'. E aquela pergunta daquela menina que começou a me travar a querer ser o menino da brincadeira depois. Daí eu comecei a forçar de querer ser a menina, mesmo não querendo. E eu vi que é uma coisa que a gente nasce com, que é super natural, ninguém nunca botou na minha cabeça que eu deveria ser o menino da brincadeira e eu sempre me enxerguei assim, eu sempre me enxerguei como um menino.

Eu lembro também um pouco mais velho, com uns 10 anos, que eu ia na piscina com meu pai e como a minha imaginação de criança era muito mais fértil e eu conseguia brincar muito mais e tornar aquilo realidade. Eu lembro que eu andava na piscina assim de biquíni e eu olhava pra mim e a minha imaginação fazia eu enxergar um menino. Eu lembro que eu enxergava um menino no meu corpo. A minha brincadeira na água era imaginar que eu era um menino. E daí depois eu fui perceber que eu sempre fui um menino. Eu nunca não fui um menino, sempre foi muito natural pra mim. E eu só fui perceber depois, analisando a infância mesmo. E todas aquelas coisas clichês: berrava quando queriam colocar vestido em mim, em todos aniversários minha mãe gastava uns 300 reais num vestido, vinha querer colocar, eu saia correndo, vinha prender meu cabelo e eu começava a querer morder a mão dela. E isso foi uma coisa que pra minha mãe marcou muito, até na terapia ela falou 'a Natália não queria colocar vestido, sempre achei que tinha uma coisa estranha'. Minha mãe e meu pai falavam sobre eu talvez ser homossexual - na época eles usavam esse termo - desde que eu tinha 7 anos… Eu tinha 7 anos e eles já conversavam 'será que a Natália não vai ser meio.. gay? Não vai tender pra esse lado? O que vamos fazer se ela for?' tipo, eles já debatiam e eu tinha 7 anos de idade. Olha aquela foto lá. A verdadeira criança viada, sabe.













Eu sempre fui trans, esse sempre foi o meu jeito. Na verdade nem precisaria de um termo pra explicar o que eu sou, eu podia só ser normal assim pra sociedade. Porque eu nasci assim. Hoje em dia eu vejo assim. Só que daí pra sociedade cis isso é ser trans, isso é ser diferente. Na verdade eu sempre fui normal. Ser hetero cis é muito chato, as pessoas ainda usam isso? (risos)












Ser trans em Porto Alegre... Olha, acho que quando eu tinha peitos era um pouco mais difícil. Eu acho que eu nunca sofri real discriminação por ser trans. Eu sofria bem mais quando eu era sapatão, eu acho. Quando eu era sapatão já quase me agrediram no ônibus, era bem trash. E aí quando eu me assumi trans parece que ficou um pouco mais de boa, pelo menos pra mim. Mas não sei se é porque eu escondia bem os peitos e tal.. Mas a minha voz sempre me entregava e, agora lembrando de quando a minha voz era fina, de quando eu não usava hormônio, era bem ruim assim porque enfim, eu abria a minha boca e as pessoas já me invalidavam. Aí sempre que eu ganhava uma passabilidade eu ficava 'tá não posso falar', 'tá não vamos falar', 'vamos trabalhar o aperto de mão… não vamos usar a voz, vamos usar outro método de comunicação'. Mas tipo, agora tá bem mais de boa. É que ainda tem várias experiências que eu vou viver ainda, mas agora com a cicatriz vai ficar mais visível que eu sou trans em função da cicatriz. As pessoas vão me perguntar talvez porque eu tenho ela. Por enquanto eu não tenho sofrido tantas coisas como eu pensei que eu sofreria, mas enfim... Eu sou branco, no meu recorte [social] não me lembro de maiores dificuldades. Também eu ando numa bolha bem massa, tem bastante galera trans, então cada um se dá força.

O maior problema que eu tinha era em questão de me relacionar sexualmente e afetivamente com pessoas, porque eu sempre me identifiquei como lésbica e aí eu ficava com mulheres lésbicas. Só que quando eu me assumi como trans eu fiquei tipo… tá, com quem eu vou ficar sabe? E agora como cada vez mais eu pareço mais homem parece que vai dificultando mais sabe, tipo mulher cis lésbica … será que elas me querem? Pra mim tá sendo muito mais fácil e mais agradável ficar com pessoas bi, tanto homens cis bi quanto mina cis bi, ou ficar com pessoas trans mesmo. E eu curto ficar com pessoas trans, eu acho que ser um pouco mais trans-centrado não faz mal a ninguém (risos). 










Eu acho que agora tá rolando bem mais visibilidade pra galera trans. Na cena mesmo, até a questão das festas de ser trans-free, sei lá, eu não frequentava as festas há muito tempo atrás, mas agora quase todas tem trans-free. E até vários restaurantes também estão fazendo isso. Eu acho que tá se criando uma visibilidade maior, a galera tá começando a aceitar um pouco mais. Boto muita fé que 2020 vai ser o ano das travestis mesmo, porque estão cada vez aceitando mais e isso é foda.
A galera tá se assumindo, tá se sentindo mais confortável. É que também é um peso tu guardar isso por muito tempo, mas é um peso também tu soltar isso. É difícil. E eu acho que quanto mais gente vai ser assumindo, mais gente vai se assumindo, porque vai vendo que não é tão pavoroso assim. Acho que desde que eu me assumi trans eu conheci muito mais gente trans, não sei se a galera tá se assumindo agora ou se estavam só escondidos e eu por ser trans comecei a buscar essas pessoas e encontrar elas sabe. Mas eu lembro que quando eu tava me assumindo trans eu só tinha tipo real uma referência que morava aqui em Porto Alegre. Eu lembro de acompanhar uma referência que eu até perguntava e tal e o resto era tudo da internet. E acho que até por isso eu fiquei muito assustado assim, porque eu não tinha muitas [referências], todo mundo era cis na minha volta. E agora eu vejo muitas pessoas trans na minha volta, tipo… enfim, tu é um deles (risos) porque tu não era trans quando eu me assumi. Isso é legal, porque tipo é massa sabe, um ser referência pro outro, porque daí a gente vai todo mundo saindo do armário junto, aloka (risos).










A internet também cria uma idealização, né. Tu não vê a pessoa ao vivo, ela parece um… parece que tu é fã dela, parece que tu cria um sentimento de fã sem tu nem pensar que tá criando isso, sabe. Sei lá, eu sigo pessoas da gringa que as vezes eu fico pensando: tá, essa pessoa existe, eu não preciso ficar criando esse sentimento de que tipo meu deus parece que eu sou fã da pessoa. Eu tenho várias pessoas trans também que me seguem, me mandam mensagem tipo muito me idolatrando e eu fico tipo.. Calma (risos). 

Eu tento usar por exemplo meu Instagram mais pra passar um pouco assim da questão da transição. Porque eu conheço dois trans brasileiros que cantam e postam vídeos, mas nenhum que eu vi que postava todo mês. Eu só via posts de depois de um ano de como que estava a voz. E isso meio que faltou pra mim, saber como é cada mês, aí pensei: ah então vou fazer isso, vou gravar um vídeo cada mês cantando pra galera trans que me segue ver que rola, que rola cantar todo mês, talvez um pouco desafinadinho em um mês, mas rola, vai. Tá sendo um projeto que tá fazendo bem pra mim e eu recebo vários feedbacks muito massa, às vezes vejo a galera comentando em vídeo anterior 'já to esperando o próximo', sabe. Tenho amigos que ficam tipo 'ah, só to esperando o dia 2 porque sei que vai sair vídeo do Natê', então tá tendo um alcance que tá sendo bem massa. Os primeiros vídeos alcançavam, sei lá, 300 visualizações. Agora os últimos já tá em 1000, 1200, tá aumentando cada vez mais. Tá sendo bom, acho que tá fazendo bem pra galera que me segue também. 









Na verdade a minha família já é de músicos, então eu tenho isso desde o berço. A minha avó era cantora lírica e pianista, ela quebrava vidros dentro de casa (risos), ela tinha um vozeirão. E o meu pai também é metido a músico, toca vários instrumentos, sempre encorajou esse meu lado. Quando eu tinha 7 anos ele me deu um violãozinho. Eu até nem lembro a primeira vez… realmente não lembro quando eu aprendi a tocar violão porque ele sempre me ensinou desde cedo, então meio que apagou da minha memória eu aprendendo. Mas eu sempre tive muita sensibilidade pra música, eu sempre gostei. Tem uma história que o meu pai sempre conta que é quando eu fui com ele e com essa minha avó que era cantora assistir um concerto da Ospa e aí ele sempre conta pra todo mundo que quando a galera tava afinando os instrumentos eu tava muito agitado, gritando, querendo ir embora, chorando, e aí quando eles começaram a tocar aquele sonzinho aveludado eu só me debrucei na cadeira da frente e fiquei quietinho o concerto inteiro olhando. E ele achou aquilo muito lindo, acho que ele ficou o concerto inteiro me olhando e ele ficou encantado pensando 'nossa, como o Natê tem sensibilidade pra música'.








Quando eu tinha uns 10, 11 anos, já na escola, eu sempre cantava no chuveiro. Umas musiquinhas muito idiotas tipo Justin Bieber. E eu pensava 'eu gosto da minha voz, será que eu canto bem ou é só no chuveiro?', 'ah, não, deve ser o eco do chuveiro, eu não devo cantar bem'. Mas então teve uma vez um concurso juvenil de canto na minha escola, que ganhava um troféuzinho, uma coisa básica. E eu decidi ir, daí passei da primeira fase e meio que meu pai ficou meio surpreso 'nossa, tu tá se interessando por isso, que massa', e aí ele super pegou o violão, arrumou a câmera pra gravar - porque tinha que mandar um vídeo - e ele super foi comigo. Eu cantei a música Só Hoje, do Jota Quest, eu tenho até o vídeo ainda, eu cantando Jota Quest com uma camiseta de Goiânia (risos). Eu coloquei no Facebook aquele vídeo - eu tinha uns 12 - e os meus amigos nunca tinham me visto cantar e todo mundo comentou 'meu deus como tu canta bem, nossa', tipo todo mundo me elogiando. e eu fiquei 'pai, tão falando que eu canto bem, será que eu canto bem?', aí comecei 'será que eu canto bem?', 'eu canto bem!'. Foi uma surpresa pra mim, 'não é só no chuveiro, real eu canto bem!' (risos). E eu fui pra esse concurso de canto e era lá na Casa do Gaúcho, tipo uma produção imensa e eu tava muito assustado porque eu nunca tinha cantado na frente de ninguém e me colocaram num palco enorme. Eu desafinei, eu não sabia o que fazer, eu cantei bem parado (risos). E eu ali parado… 'meu deus o que eu faço, tem um monte de gente me olhando'. Eu desafinei horrores, eu tava fora do tom, enfim, eu não tinha conhecimento nenhum de música, eu só tinha entendido que eu cantava bem e eu cantava bem sabe, tipo, vou cantar. No fim não passei no concurso, fui tri mal, mas valeu a experiência.


Aí comecei a descobrir que eu cantava, comecei a gravar uns videozinhos no YouTube.  Eu comecei a fazer aula de violão com um professor que gostava muito de mim e era muito massa e enfim eu falei que eu queria aprender tal música e ele perguntou se eu cantava, porque ele queria que eu cantasse pra ele tocar, pra ele poder ouvir minha voz. Eu falei tipo 'ah… não sei, eu cantei uma vez e falaram que era bom' e ele pediu pra eu cantar e quando eu terminei de cantar ele ficou surpreso 'tu canta muito bem, que talento!', ficou me elogiando muito. Aí ele me perguntou 'tu escreve?' e eu comecei a me perguntar 'eu escrevo? e se eu tentar?' daí eu comecei a tentar escrever, comecei a fazer muitas músicas. E eu percebi que eu escrevia (risos). Isso sempre esteve presente na minha vida, sabe. Eu tenho muita facilidade de compor, de cantar, tipo às vezes eu to andando na rua e começo a cantar algo que não existe e então eu percebo que estou criando e tenho que pegar um bloquinho e já tenho que anotar, já tenho que pegar um violão e sabe, é uma coisa que vem… a música quer vir, não sou eu que quero trazer ela pro mundo. Sempre foi, nunca quis fazer outra coisa. Música sempre foi o que eu quis fazer.
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Eu não tenho músicas minhas no insta, eu nunca cheguei a divulgar porque eu tô desde 2018 com um projeto de gravar essas músicas num EP. Eu até já separei, vão ser três músicas. E um amigo meu que tocava comigo vai gravar pra mim, ele é produtor. Depois que eu terminar a cicatrização [da cirurgia] a gente vai focar nisso. Porque primeiro eu precisava ser quem eu sou pra poder fazer o que eu faço. Eu não ia conseguir lançar minhas músicas sem ser quem eu sou primeiro. Elas falam muito disso até. As músicas formam uma narrativa assim. Uma é de quando eu não me entendia, a segunda é de quando eu estava me entendendo e a terceira é 'opa, me entendi'. Elas vão construindo uma história. Eu não conheço muitos homens trans na música, conheço muitas travestis e homens trans eu realmente não conheço e acho que vai ser massa lançar isso. Espero que eu consiga…. um dinheiro com isso (risos). Eu já pensei em gravar uma música minha em algum mês [pro instagram] só pra eu ver se a galera gosta ou não e também se gostar pra ficar um pouco 'hm, quero mais' sabe, mas não decidi ainda. Talvez. Tenho muito medo também de lançar e começarem a fazer cover e aí como eu não tenho uma certa visibilidade por causa da música, não acharem que é minha. Eu queria gravar primeiro profissional pra depois lançar e a galera conhecer, mas por medo de me roubarem, essa coisa mais autoral mesmo. E não é só uma música de amor pra fulana. Sou eu sabe.
[Nota do Autor: Natê lançou a primeira música, Pressa, em setembro de 2020, assista ao clipe aqui. No seu Instagram também é possível ouvir Disforia, a segunda música autoral que ele lançou.]



Eu não sofro algo que uma travesti sofre, por mais que os dois sejam trans. Eu acho que a vivência é diferente. Acho que a música são outras coisas faláveis. Eu acho que faz falta ter homem trans na música, até pela questão de mudar a voz, de deixar mais grave. Essa coisa de ter tido a voz aguda e agora ela estar mais grave, enfim, para ser referência mesmo para outras pessoas, acho que ia ser importante se tivesse mais.










Eu tenho até um contato que mora em Londres e eu vejo ele postando coisas e parece que lá tem até nos ônibus pra respeitar as pessoas trans, é bizarro. Eu olho isso e fico assustado porque aqui.. Nunca. Tu nunca vai ver uma propaganda no meio da rua, no ônibus, pra respeitar pessoas trans. É uma coisa que não existe. Aqui tem gente que nem sabe o que é trans, é realmente uma bolha muito pequena que sabe o que é trans, respeita e entende. Pras pessoas cis que eu conheço fora da bolha parece que eu sou uma aberração, acho que por isso que aqui em Porto Alegre a gente se gruda muito numa bolha, que é a Cidade baixa, que é o bairro ali que "entende". Agora se tu vai pra outro bairro já é.... 'ó meu deus o que é isso?' sabe. 








Não é fácil, mas vale a pena.




Natê, 21 anos.
Homem trans. Ele/dele.
11 meses em Terapia Hormonal.
1 mês de mastectomia.
@onatebr



*ensaio realizado em Porto Alegre (RS) em Fevereiro de 2020.
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Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por​​​​​​​ urgência.
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