A coisa mais difícil de todas é sempre se apresentar (risos) Meu nome é Stefan eu tenho 25 anos, vou fazer 26 daqui a pouquinho, dia primeiro de abril. Atualmente o que eu faço da minha vida… eu sou auxiliar jurídico e sou bacharel em Direito né? Aí sou auxiliar jurídico, me formei tem dois anos. Mais o que? Ah! Eu faço uns rolê aí no instagram, na internet, posto umas fotos sensuais lá (risos) @transboylife, é isso.
Desde que eu era pequeno eu já sabia que eu era um menino e não uma menina como falaram pra mim. E por um tempo da minha infância eu me sentia muito estranho, porque eu realmente não tava entendendo o que tava acontecendo. Na escola sempre tem as separações entre meninos e meninas, é clássico, ainda mais quando você tá na primeira, segunda série. Então eu não me encaixava no lado que me colocavam, eu queria ficar lá com os meninos falando sobre coisas legais... Não que tenha essa coisa, tipo, distinção do que é de menino e o que é de menina, mas naquela época era muito mais assertivo do que hoje em dia. Eu não queria ficar lá falando sobre como os outros meninos eram bonitinhos porque eu não achava nenhum menininho bonitinho (risos). No máximo, eu queria ser aquele menino, porque ele era visto como menino e eu não. Eu achava real que eu tava muito loucão das ideias, muito mesmo. Eu achava que eu ia ser internado a qualquer momento quando alguém descobrisse que eu tava me sentindo um menino e não uma menina. E que eu não tava encaixando. Alguma coisa não tava certa na minha vivência ali, não tava rolando nada do que eu queria... Ainda mais com o meu corpo, porque eu comecei a entrar na fase de pré-adolescente e começou a vir umas coisas que tipo “meu deus não é isso que eu quero pra minha vida, eu não tô conseguindo entender o que tá acontecendo com meu corpo”.

Com uns 12 anos eu comecei a assistir uns seriados bem loucos de lésbicas, porque eu gostava de menina. Eu cai naquela série lá, “The L Word”, que me fez perceber que eu realmente era lésbica. Até que, acho que numa das penúltimas temporadas, aparece o cara trans. Aí eu falei “meu deus, isso realmente existe! Então não é só sobre eu gostar de menina, é sobre eu ser um homem trans que gosta de meninas". E eu vi que o rolê é muito mais embaixo do que eu achava. Porque até então, imagina, uma pessoa lá pelos seus 12 anos achar que é lésbica já é tipo “uau, que rolê é esse?”. Ainda mais naquela época... A gente fala "aquela época" como se fosse muito tempo (risos), mas né? Antes de 2018 você ser lésbica é tipo “meu deus, o pecado”, você tá endemoniado. Tanto que quando minha mãe soube que eu era lésbica, que eu gostava de meninas, ela surtou. Literalmente surtou. Sofri várias agressões físicas em casa, psicológicas e tal. E aí foi um rolê muito estranho, porque eu falei “caraca, se só porque ela sabe que eu gosto de meninas ela já tá fazendo isso, imagina quando ela souber que eu sou um homem trans... Eu vou morrer. Ou vou ser expulso de casa, não tenho outra alternativa”. Inclusive ela chegou a me expulsar porque eu gostava de meninas, só não fui literalmente pra fora de casa porque minha bisavó falou “não vai sair porque quem manda aqui sou eu, quem paga tudo sou eu”. Então eu não fui por isso, porque se não, já tinha rodado há muito tempo. Aí eu fiquei “como eu falo pras pessoas que sou um homem trans? Não tem como”.





E eu manifestava isso aos pouquinhos com meus amigos próximos, assim, “eu queria ser homem e tal”. Na adolescência, com 15, 16 anos. E era sempre “ah, cê tá doido? que ser homem o que? tá doidona? e tu vai fazer o que com o que tu tem entre as pernas? vai colocar um?”. Eu no momento não pensava muito na genital, eu queria mais o meu visual e ser quem eu sou, sabe? Era mais uma coisa de tipo “gente, eu sou isso, então quero que vocês me vejam como isso do jeito que eu sou. E não ficar reprimido aqui”. Então as pessoas enxergavam mais sobre o genital e eu ficava tipo... sabe? Não! Relaxa aí, a genitália ninguém tá vendo, tá no short. Era mais uma questão de respeito.

Até que eu falei pra minha bisavó. Tomei coragem e falei pra ela. Porque minha psicóloga falou que eu tinha que falar pra alguém pra eu me sentir melhor. E essa ideia foi sensacional, porque eu falei pra ela e ela super entendeu, por mais que ela fosse uma pessoa em seus oitenta e poucos anos de idade. Ela não entendeu bem o que era, mas falou “eu vou te amar de qualquer jeito, só não quero você envolvido com drogas, com tráfico, nem roubando, porque isso seria o fim, mas… o que eu vou fazer? não tem o que fazer. A vida não é minha, é sua. Você tem que ser o que você quer ser. Só estuda, cria sua vida, tenha seu próprio dinheiro e vai ser o que você quiser ser porque eu não vou te impedir". E isso foi um alívio gigante. Aí a gente trocou umas fidelidades, uns segredos e tal. Só que tipo, nesse momento já morava só nós dois, minha mãe não fazia parte do meu convívio. Então acho que também foi um pouco mais... um alívio, vamos dizer assim. Tirou um peso enorme de, tipo, ser julgado e sei lá, sofrer mais agressões físicas - eu tinha muito medo disso.  Depois de alguns anos a minha vó veio a falecer, então ela não conseguiu ver concretamente eu como sou hoje, mas querendo ou não ela fez parte disso, porque depois que ela faleceu veio aquele baque, aquele choque “caraca o que eu to fazendo da minha vida? Essa vida só tem uma e eu to desperdiçando totalmente sendo uma pessoa que eu não sou só pra agradar x pessoas, só por medo… É agora ou nunca, ou eu faço ou não faço nunca mais.”. E aí foi, destrinchou total.

A primeira coisa que fiz, que me incomodava pra caralho, foi cortar o cabelo, que é uma coisa muito representativa. Eu nunca vi como cabelo grande sendo de menina e cabelo pequeno sendo de homem, mas a sociedade impõe tanto essa questão que você acaba aderindo a ela sem perceber. Por mais que você pense que é só um cabelo, você acaba aderindo por julgamento das pessoas. E aí eu falei “gente, caguei, vou cortar o cabelo”. Fui lá, cortei e, pô, nunca me senti tão feliz na vida. Depois que cortei o cabelo parece que, literalmente, saiu um peso das costas assim, foi uma coisa muito marcante pra mim.
Quando eu cortei o cabelo minha mãe já tava morando comigo. A pessoa que me dava casa, comida e tal tinha acabado de falecer, então a gente teve que se juntar e morar junto. Não tinha como eu me bancar sozinho, não naquele estado, nem ganhando o que eu ganhava naquela época, que era muito inferior a um salário mínimo. Eu fazia estágio, que pagava menos de 700 reais. É impossível alguém viver assim, não dá. Então tive que me juntar com minha mãe e ir aos pouquinhos. Uma coisa interessante é que desde que saí da casa da minha mãe nossa relação começou a melhorar, começou a ter uns passos que eu achava que seria impossível de dar. O primeiro abraço que dei na minha mãe desde a infância até quando eu já era uma pessoa basicamente adulta, foi com vinte anos de idade - depois que eu saí da casa dela. É um passo enorme. Eu sempre tive muito medo, muito medo mesmo, da minha mãe. Até porque é impossível você não ter medo de uma pessoa que te agride só por x questões. Não fazendo nada! Tipo “cheguei bêbada em casa, tô te batendo”. Não tem como você não ter medo dessa pessoa, independente dela ser sua mãe, seu pai, seu padrinho, seu cachorro. Então esse medo foi se desenvolvendo com os anos, pra além da orientação sexual e da minha identidade. Com o tempo, quando saí da casa dela e a gente se distanciou, foi dando uma melhorada absurda, também junto com minha psicóloga que me ajudou muito nessa parte da transição, tipo “você realmente acha que essa pessoa é muito importante pra você a ponto de ter ela na sua vida? então faz alguma coisa pra melhorar”. A psicóloga me ajudou bastante em como dar passos curtos mas precisos. E também a me abrir um pouco, porque eu me fechei totalmente, qualquer pessoa nessa situação também se fecharia totalmente pra qualquer outro tipo de relação com a outra pessoa.

Foi basicamente isso, a gente começou a morar junto. E aí eu cortei o cabelo, eu tava morando com ela. Cheguei em casa e nem olhei pra cara dela de tanto medo e pavor. Eu tava cheio de coragem, pisei em casa e fiquei “eeeeei” (risos). Cheguei em casa todo chocho. Mas aí, cara, não tem como voltar atrás, tem que encarar mesmo e é isso. Ela olhou pra minha cara e não falou nada, absolutamente nada. Eu fiquei “meu deus, o que está acontecendo?" Não sei se foi um silêncio de reprovação, aprovação ou um silêncio de caguei. Porque você vive intensamente em busca de uma aprovação de alguém que basicamente tá parecendo que te odeia. Ainda mais que tinha o peso de ela ser minha mãe. Você quer ter essa aprovação enorme dessa pessoa que gerou você, né? E aí ela não falou nada, aí deixei crescer um pouquinho e cortei de novo. Ela fez alguma piadinha, mas eu fingi que não ouvi. Aí no outro mês eu já radicalizei, raspei nos lados com a máquina. Quando cortei, cortei um curto razoável, aqueles cortes mais modelados, mais black e tal. Aí depois, acho que no terceiro mês, eu raspei com a máquina dois, fiz uma asa delta maneira. E aí ela "tá parecendo um homem!" E eu fiquei "eeeei, veio" (risos), "tava faltando, veio". 





Conforme o tempo, ela foi entendendo. Eu não contei pra ela tipo “oi mãe, sou trans”. Não contei. Em nenhum momento da minha vida cheguei nela e falei isso. Ela só viu o processo acontecendo gradualmente e não falou nada. E também se falasse ia ser tarde demais, porque eu já tava super decidido. Quando iniciei a terapia hormonal eu estava morando com ela, foi em maio de 2018. Então ela viu acontecer nos primeiros meses. Em maio eu comecei com a primeira dose e em agosto eu saí de casa, vim morar com a Rafaela, minha noiva. Já no segundo mês, todo dia de manhã - que era o horário que minha mãe saia pra trabalhar e eu também - eu falava bom dia com a voz meio rouca por causa da testosterona, e ela falava “tá doente? porque sua voz tá meio coisada”. Ou então quando ela me ligava pra pedir alguma coisa na rua, “que isso? que voz é essa?”, e eu falava “ué, minha voz” (risos). Às vezes eu tinha tanto receio que eu afinava a voz pra falar com ela… Mano... não dava pra ficar vivendo assim com receio pro resto da vida de uma pessoa que você não sabe se um dia tá te amando, no outro tá te atacando… Cara, isso não é vida pra ninguém. Então como eu já tinha pedido minha noiva em casamento em março de 2018, foi tipo “tô te chamando pra morar comigo, mas se você não quiser eu moro sozinho, de boa”. Aí ela gostou da ideia e a gente veio morar junto. Conforme o passar do tempo, a minha mãe foi se adaptando mais porque eu não estava morando com ela e novamente a nossa relação começou a melhorar. Então acho que o afastamento faz bem pra gente, pro nosso entendimento. 

Teve uma vez na minha formatura, acho que em 2019, que minha mãe perguntou porque eu não tinha amigos na faculdade. E aí no momento de muito surto eu falei “mano! Eu não tenho amigos na faculdade porque todo mundo me vê como uma aberração, você ainda não entendeu isso?! Tipo, olha pra mim. Por isso que eu não tenho ninguém”. Eu falei isso de um jeito bem grosso porque eu tava muito magoado. Ninguém passa cinco anos na faculdade sem ter um amigo, e eu consegui fazer essa proeza. Não que eu nunca tive nenhum amigo, tipo, trabalhos em grupo. Eu tinha mas não era a mesma coisa que os outros coleguinhas, sabe? Que eles levam super a sério a amizade na faculdade. Não tive isso. Então, nesse surto assim, ela meio que deu uma baqueada e aí acho que ela começou a entender mais o quão importante era pra mim ter esse acolhimento, esse afeto. Aí ela começou a tentar mais, começou a me chamar no pronome correto e tudo mais. Foi a primeira vez que ela acertou, me chamou no masculino, me chamou de filho. Foi dia 27 de junho de 2019. Foi muito marcante pra mim. Até porque não era uma coisa que eu esperava, eu fui pego de surpresa, deitado no sofá. Foi massa, foi muito massa, eu até twittei. Eu tava sozinho em casa, era algum feriado, e ela perguntou se eu não queria ir na casa dela almoçar no dia seguinte. Eu falei que não porque eu já tinha feito alguma coisa e ela falou “não filho, vem cá sim”. Eu fiquei “o que?! tu falou o que?!” Falei altão, gritando aqui no sofá. Ela falou “filho, vem aqui em casa pra gente almoçar junto”, aí eu “tá, vou ver se vou”, desliguei o telefone, nem tinha mais o que falar (risos), fiquei tão eufórico, tão eufórico. Fiquei “meu deus, isso realmente aconteceu, caraca! que massa! que legal”. Tava sozinho em casa, só eu e meus bicho, Rafaela tinha saído. Aí eu twittei “caraca, minha mãe me chamou de filho pela primeira vez, foi muito daora!” Acho que passou tanta euforia, tanta verdade, que viralizou total na rede social. A maioria das pessoas que me seguem hoje foi por causa desse tweet, dessa verdade. Foi a partir desse momento que ela começou a me ver mais como o filho dela, que eu vi que ela realmente tava fazendo esse esforço.




Eu não peguei o personagem Max [da série The L Word] como uma grande referência pra mim porque ele era super tóxico e eu não queria ser de jeito nenhum aquela pessoa. Me deixou totalmente horrorizado quanto a ser homem trans e aplicar testosterona porque pensei “meu deus, eu vou ficar assim babaca, batendo nas coisas, quebrando tudo”. Porque ele realmente, meu deus, que horror! É péssimo. Então falei assim “cara, há a possibilidade mas eu não quero ser que nem esse cara”. E aí, como qualquer pessoa que assiste televisão, a única referência possível e palpável ali pra mim era o Tarso Brant - que também não tinha muita informação na internet. Eu pesquisava e só tinha coisa no exterior, fora do Brasil. Era uma realidade pra mim que não era cabível, porque não tinha como eu, uma pessoa pobre que não ganhava nem um salário mínimo, que dependia da vó pra sobreviver, ir pro exterior. Jamais. Eu não viajava nem pra fora do meu município, imagina pegar um avião e ir pra outro lugar, era completamente fora da minha realidade. Então eu não me apegava tanto a essas questões sobre como eu iria me tornar aquilo, eu só queria ser o que eu era. A minha maior referência de que existia homem trans no Brasil era o Tarso. Daí comecei a ver - não a acompanhar ele porque na época não tinha esse negócio de instagram nem nada assim. Era mais tipo “Pânico”, que ele aparecia lá, usava o antigo nome dele. E era isso. Era a única referência brasileira que eu tinha na minha mão, que eu conseguia ver. E pesquisar era só exterior e tal. Então a minha mente era “cara, vou ter que juntar dinheiro pra ir, sei lá, pros Estados Unidos pra fazer uma coisa que quero”.

Na minha cabeça, se eu tomasse testosterona as pessoas iriam começar a me respeitar como homem. Naquela época a referência era isso, porque às vezes eu via o Tarso, por exemplo, ele não era respeitado, né? Então eu ficava “caraca, será que eu também vou sofrer isso?”. Ele era, basicamente, muitas vezes humilhado naquele programa, e eu ficava “será que vou ter que me submeter a esse tipo de coisa também pra ser homem? pras pessoas verem que eu sou homem?”. Depois veio o Thammy que também era uma coisa só televisionada, só de jornal. E aí tipo… gente, cadê as referências reais? Não rolava. Por isso eu demorei tanto tempo pra me afirmar enquanto um homem e começar mesmo meu processo de dentro, como homem. Eu sempre digo que a transição sempre vem de dentro pra fora. Então não adianta eu estar aqui todo mastectomizado, com barba, sendo que meu processo de dentro ainda tá com uma cabeça muito lá pra trás. Eu preferi cuidar primeiro da minha mente e do meu corpo pra depois vir a parte do “ah, agora eu quero realmente tomar testosterona e ver o que vai acontecer”. As minhas primeiras referências foram isso, Tarso, Thammy e parou por aí. Não eram legais algumas coisas que tavam acontecendo, então foram referências péssimas. Claro que cada um tem sua trajetória de vida, mas pra mim umas referências daquelas, naquele momento, naquele lugar que eu estava, não foram legais. E mais uma vez, isso ajudou bastante a eu me trancar, tipo “não vou falar nada pra ninguém porque automaticamente as pessoas vão associar a x pessoa e eu não quero ser associado a x pessoa, mas também eu não quero que as pessoas me vejam na rua como uma lésbica que se veste como homem", sabe? Então eu ficava lá quietinho... Esperando o momento que ia acontecer, sei lá, algum milagre. (risos)





Eu só conhecia as mina travesti da rua, assim. Só. Mas um papo de… não é conhecer tipo amigos... Era mais assim, elas me protegiam quando eu passava na rua voltando da faculdade. Era tipo “boa noite”, “boa noite, e aí gatinho como vai?” e é isso, passa reto. Eu me sentia mais seguro nas ruas sabendo que elas estavam lá mesmo elas não estando tão seguras quanto eu. Então esse foi o primeiro contato que eu tive que eu soube que não é esse rolê que falam, sabe? Que travesti é tudo marginal. Toda noite que eu passava ali naquela rua, que era super perigoso, eu estava sendo protegido por umas minas que não sabiam nem meu nome. Sendo que elas tavam mais em perigo do que eu. Eu senti esse acolhimento durante um ano, porque foi durante um ano que eu fiquei passando ali o tempo todo, então eu vi que não era assim. Se esse conceito que colocaram na minha cabeça é totalmente ao contrário, imagina outras coisas que eu já tinha pensado que não é.

Aí que veio o estalo e eu fui atrás, na internet mesmo. E ainda assim, na internet não tinha nenhuma referência real. A gente só vê uns cara branco que são tipo super dinheiros, que você nunca vai alcançar aquela parada. E o que me salvou foram grupos no facebook. Voltei a usar facebook por causa disso, porque tinham pessoas reais fazendo o rolê do que era ser trans e elas contavam suas histórias reais ali. Não que os cara branco da época não contavam o rolê deles, mas era outra vibe, uma outra história. Eles tinham dinheiro pra fazer todos aqueles procedimentos que eram super caros e não era nada acessível pra mim naquele momento. E o pessoalzinho que tava lá no facebook era super acessível a mim. Então tinha essa troca, ainda mais com outros meninos trans que tinham a mesma idade, a mesma condição financeira que eu. Até que eu criei um grupo no whatsapp chamado “transboy life” e a gente começou a ter essa troca. Aí que eu busquei referências nessas pessoas comuns. Então as minhas referências vêm todas dessa galera, desse grupo que tenho até hoje. Essas pessoas são as minhas referências e eu sou a delas - são pessoas reais que tem dificuldades reais, no sentido financeiro como custear um psicólogo e qual a alternativa que elas tem pra fazer uma terapia hormonal sem gastar muito dinheiro, sem fazer vários procedimentos estéticos e ter x coisa. A gente trocou essa ideia junto e continua junto. Essa é minha referência hoje. 

Eu não me vejo real assim como referência pra outras pessoas. As pessoas me mandam sim mensagens todos os dias nesse sentido e eu fico “gente, não… pelo amor de deus”. Tem uma cobrança muito grande do que você vai mostrar pra essas pessoas e o que você vai impactar na vida delas, porque você tá lidando com uma outra vida. Eu não me vejo como referência de outra pessoa, mas as pessoas me vêem assim. E sem querer rolou. Mas nem sempre eu tenho essa consciência, às vezes só tô lá me divertindo postando meus stories, contando minha vida, literalmente. Eu gosto de fazer um videozinho então vou lá e faço um vídeo do que tá acontecendo na minha vida naquele momento, e não é com intenção de impactar alguém ou de ser referência pra alguém, mas acaba rolando. Ainda mais que a maioria do meu público são meninos negros, então é extensa a escassez de meninos trans negros na comunidade, tendo essa visibilidade, né? A gente sabe que só tem cara branco com pá de dinheiros… Alguns que se recusam a falar que são trans, outros que não. Então é um rolê muito pesado às vezes pra carregar, é muita responsabilidade que às vezes quando eu vejo fico tipo “caraca mano… se eu fizer alguma coisa e alguém fazer o que eu tô falando, isso pode gerar alguma merda na vida dela e ela vai culpar a mim”! Tem dois pesos e duas medidas.





Teve uma vez que uma publicação minha no facebook deu mais de três milhões de acessos e tipo pra quem tinha dez mil curtidas no facebook era coisa pra caraca. Então foi um ataque enorme, tinha cem mil comentários e noventa mil eram só de haters, assim. Falando que ah, “tu é uma aberração”. E nessa época eu fiquei muito mal, foi lá no começo. Depois que fui entendendo que essas pessoas não tem propriedade pra falar sobre minha vida. Se eu to me expondo na internet, eu passei a entender que isso vai acontecer, querendo ou não. Então eu tenho que estar preparado mentalmente e às vezes eu até deixo de falar coisas ou publicar coisas por conta disso. Às vezes é de boa tipo “caguei pro que você tá falando, isso não interfere na minha vida”. Mas tem vezes que interfere... Às vezes vem no momento em que tu tá mais frágil e aí pega de jeito. O ideal é dar uma afastada, ficar de boa, sair da rede social, fazer outra coisa que me faça esquecer aquilo, porque às vezes pega. Por isso que às vezes dou uma sumida das redes, porque o hater ele é pesado mesmo, tipo mandar você morrer, que vão me matar quando me ver na rua, essas coisas assim, pesadas mesmo.

Desde 2018 que eu exponho minha vida na internet. Teve uma vez que foi o pior ataque de todos. Pegaram um tweet meu e distorceram completamente e caiu na mão de umas feministas bolsonaristas, e elas começaram a espalhar pra um monte de gente e um monte de gente começou a me chamar de pedófilo… Tudo porque eles não conseguiram distinguir o que era orientação sexual e o que era identidade, sabe? Eles acharam que só porque eu falei pra uma criança de sete anos que eu sou um homem trans, que eu era pedófilo. Isso não faz sentido nenhum! 

Aí distorceram completamente, falaram que eu tava abusando da criança, começaram a marcar Conselho Tutelar, Polícia Federal no meu tweet. Quando eu vi tomou uma proporção desnecessária, meu tweet foi parar em facebook, em diversas páginas bolsonaristas no instagram… Até hoje algum engraçadinho reposta e aí vem uns ataquezinho nada a ver e tal. E começaram a me ameaçar de morte, foram até o meu canal. Eu fechei tudo, todas minhas redes sociais. Fechei todas porque parecia mesmo um vírus. Parecia um formigueiro que não acabava mais. Eu fiquei tipo, não tô dando conta… Parecia mesmo que eu tinha viralizado só que do lado ruim da coisa, tá ligado? Aí eu falei assim “mano, não dá mais”. Desativei todas minhas redes sociais, pra sumir. Desativei instagram, twitter, facebook… Como não tinha mais pra onde correr, eles foram pro meu canal no youtube e começaram a dar dislike nos meus vídeos e comentar que eu era pedófilo nos meus vídeos, uns vídeos que não tinha nada a ver. Aí tive que ir lá e trancar meu youtube também. Fiquei um mês fora da rede social, completamente fora. Só quem tinha acesso a mim era quem tinha meu whatsapp. Acho que isso foi em junho do ano passado. Eu fiquei completamente off durante junho inteiro. 

E aí algumas pessoas falam “ah, porque tu saiu então se você não tem culpa?” Mas gente, eu saí porque minha saúde mental tava em jogo, não tem essa de culpado ou não culpado, não é você que tá sofrendo ataque todo dia, então é fácil pra você falar. Eu fiquei três dias recebendo ataque direto, tive que bloquear tudo. Foi mega pesado, eu fiquei muito, muito, muito, muito mal. Acho que foi o pior dos piores dos meus dias. Acho que nem minha disforia conseguia ser tão ruim quanto, sabe? Foi péssimo. Pegou muito mais esse rolê porque eu sonho em ser pai, sabe? E eu já sofri alguns tipos de abuso que também pega pra caraca ser acusado disso, tá ligado? Então tipo, foi péssimo. Mas já passou, já consegui me reerguer. (risos)





Quando eu era lido como uma mulher negra eu não sofria tanto assim. Sofria mais assédio na rua, o que era bem ruim. Uns olhares e tal… Entrava em loja, sempre tem aquele olhar, mas só que enquanto homem parece que triplica a parada. Não sei se é porque, também, essa questão da raça e tal ela veio junto com o fator da transgeneridade. Quando eu comecei a me perceber como um homem negro e afirmar isso pra sociedade foi juntamente com o fato de eu ser trans também. Eu afirmei os dois juntos, então foram duas coisas que eu estava aprendendo a lidar naquele momento, mas a passabilidade foi aos pouquinhos. O fator de eu ser negro já tava ali há muito tempo. Então, tipo, tem algumas coisas que você pensa e reflete umas situações que você viveu e você fala “caralho, isso era só porque eu sou preto”. Não tem outra explicação.
Tipo outro dia. Toda sexta-feira no trabalho não precisava ir de terno, podia ir de jeans, um sapatinho maneiro, confortável. E aí eu pegava o VLT numa estação perto da Central do Brasil porque eu sempre chegava atrasado - era o dia do lixo (risos). Nesse dia tinha um velho, branco e tal. E aí ele começou a falar “essas pessoas pretas não pagam o VLT e a gente tem que sofrer", mas pô, falando em tom muito pejorativo. Só tinha eu de preto daquele lado do vagão que ele tava falando. Eu tava com o fone de ouvido, parecia que tava tendo uma confusão e eu como fofoqueiro (risos) tirei meu fone de ouvido, olhei pro lado e tava todo mundo me olhando. Todo mundo mesmo. Sabe quando você tá no seu mundinho e percebe que tá todo mundo encarando você? E o velho lá falando pra caralho, que "esses favelado tem que morrer" e tal. Eu fiquei tipo “ele tá falando comigo?” Aí a moça olhando pra minha cara, super envergonhada e tal, falou “acho que é…” Falando que eu não tinha pago passagem e que eu tinha que morrer, isso. Sendo que eu tinha pagado passagem, né? Tem sempre aquele guardinha que passa pra verificar se você pagou a passagem, aí eu fiquei tranquilo na minha, “tá, não tô fazendo nada de errado, vou continuar aqui sentadinho”. Ele veio e falou “ó, confere desse marginalzinho aí na frente que eu acho que ele não pagou passagem não”. O cara veio, me deu o negócio pra verificar - porque é óbvio, ele verifica de todo mundo, é um negócio normal. Aí o cara falou “o marginalzinho pagou sim, o senhor pagou?” Da Central do Brasil, desci na Carioca, foi uma coisa de cinco minutos. E desde que ele entrou na segunda estação ele foi me esculachando até lá. Só porque eu sou preto. Entendeu?


Ninguém fala nada… Provavelmente as pessoas tavam achando a mesma coisa que ele. Então toda vez que era sexta-feira e que eu não ia arrumadinho pro trabalho, eu sempre era confundido - ou até mesmo arrumado, mas era muito mais evidente quando era sexta-feira. Era muito mais parado por policiais e tal. Até mesmo saindo no trem, descendo no trem, parava policiais e tal… Eu comecei a perceber que mano, é muito foda ser homem e é muito mais foda ser homem preto na sociedade, porque fica literalmente aquele rolê “será que eu vou pra casa e vou voltar vivo ou sem nenhum outro trauma? será que eu vou ter um trauma novo hoje só porque eu sou preto ou só porque sou homem?” Sabe? E você fica com essa ideia na cabeça de que nada que você fizer com a sua estética ou se você colocar um tênis mais caro, nada disso vai ser suficiente pras pessoas. Porque se você tá com um tênis que eles acham que é muito caro, pra eles você vai estar roubando, porque você é preto. Você roubou aquele tênis, você não é merecedor, você não trabalhou. Só porque eu tenho iphone 11… Já ouvi isso nas redes sociais até, tipo, posto uma foto dizendo que comprei um negócio, o pessoal falando que eu roubei dinheiro dos outros pra ter um iphone. Então eu não posso trabalhar, não posso juntar dinheiro nunca na minha vida, só posso me fuder e é isso, parabéns, sabe? Não faz sentido nenhum.

Em relação ao trabalho que tô hoje, isso nunca foi uma questão pra mim. Já foi questão nos anteriores porque sempre rola essa insegurança. Tipo, tá você e uma outra mina branca, é óbvio que ninguém vai escolher você - isso é fato. Não importa se você tem mais conhecimento, um currículo de cinco mil páginas e tal, a menina branca vai ficar com a vaga. Isso já rolou muitas vezes. Inclusive, um trabalho tava eu e uma outra menina pra vaga, e a menina era muito gata. A menina era muito linda, mas era uma poia, sabe? Em cinco minutos de conversa com ela dava pra perceber que ela não tinha vivência. Eu não fui escolhido pra vaga. A gente já sabe porque ela foi escolhida pra vaga, porque ela era bonita, e eu, obviamente, por não estar nos padrões da beleza… tinha cortado o cabelo e tudo mais, então eu não fui escolhido. Duas semanas depois me ligaram falando “ah, você ainda tem interesse na vaga? a gente tem uma vaga aqui disponível”. Ué, porque? Não deu certo com a bonitinha que fez cagada e aí “ah, vamo ligar pra esse aqui porque foi o que sobrou”, sabe? É essa a sensação: foi o que sobrou. Mas obviamente você aceita porque ou é isso ou você passa fome. Não tem escolha.





Tem uma carteira da OAB que tem lá o seu nome, como se fosse uma identidade só que com o selo da OAB dizendo quem você é. Esse rolê não é nada acessível pras pessoas trans, ele já não é acessível pras pessoas pobres pra começar. Porque você precisa pagar 285 reais pra fazer a carteira, e pra manter é mil reais - então não é acessível. E se você é uma pessoa trans, triplica, porque eles não te dão o direito de você modificar seu nome, de botar o nome social, sem que você pague uma nova carteira de 285 reais. Não tem palavras pra isso, sem cabimento nenhum. Nem identidade mais você paga pra retificar se você é pobre, mas na OAB não tem essa de que você é pobre, não tem isenção. Você é pobre, problema seu, fica sem ou então você dá o seu jeito de pagar. 

A única coisa que tem é na prova, quando você vai fazer uma prova pra ter a carteira de advogado. E mesmo assim você tem que comprovar um rolê gigante… Eu deixei de fazer algumas vezes por conta disso. Agora acho que tá tudo online, fica mais fácil, mas antes não era assim, ainda mais pelo fator do conservadorismo dentro do direito. Querendo ou não no âmbito jurídico só tem gente velha mesmo, são pessoas que já tão lá há bastante tempo. Ou seja, elas carregam essa coisa conservadora da sociedade e implementam dentro de tudo. Agora que tá vindo uma galera mais nova aí que faz alguma coisa pras leis mudarem e aí sim, muda tudo. A gente tem agora vereadores trans, que era uma coisa que tipo você achava que era impossível rolar. E que fazem alguma coisa pra ter essa melhoria, essa acessibilidade. Mas de forma geral ainda é muito conservador.






Acho que o rolê de se questionar já é muito válido, independente da idade que você esteja. Tem gente que se descobre trans com trinta anos, então porque não se descobrir trans com doze, treze, oito anos. Crianças trans existem, isso é fato - eu fui uma criança trans. Eu acredito que se for uma fase realmente ela vai passar, mas se não for, ela vai perpetuar. Obviamente existe aquela fase, porque a gente tá criando nossa identidade quando a gente é adolescente, então existem sim vários questionamentos e tudo bem, é normal. Eu acho muito saudável. É importante a gente se questionar, ter dúvidas… Todo mundo tem dúvidas. E o que eu mais acho gostoso na adolescência é você ter essa opção, essa escolha de se questionar o tempo inteiro sobre o que você é, tipo, “hoje de manhã sou x, amanhã sou y”, e tudo bem cara! Você tá nessa fase, você tem que se questionar mesmo. Eu sou muito adepto desse rolê porque é muito daora. Eu aproveitei minha adolescência ao máximo porque eu questionei tudo sobre todas orientações sexuais pra não dizer  que eu nunca experimentei, então não sei se posso… não! Vamo lá e faz, sabe? "Ah eu quero beijar um menino hoje, então vou beijar porque tudo bem, eu sou adolescente, eu posso fazer merda”. Mas também calma lá nas suas merdas, sabe? (risos). Vamo fazer merda mas vamo fazer aquela merda consciente. Então tudo bem você se questionar, você achar que você é trans, e assim… Pesquisa, vai. Procure outras pessoas com quem você se sinta confortável pra falar, isso é muito importante: pessoas que você se sinta confortável, pessoas que vão olhar pra você e vão te entender e não apontar dedo na sua cara e falar que isso não é verdade. 

Eu acho que também temos que ter um pouco de calma e paciência, a gente não pode sair atropelando e julgando tudo. Eu vejo muita gente mais velha questionando sobre o gênero do amiguinho só porque ele tem tipo quinze anos, sabe? Eu particularmente penso que se ah, tu é homem trans, quer ser chamado assim, então tá. Se amanhã você falar que não quer mais, tudo bem, você tem sua escolha. Mas também acredito que primeiro a gente tem que se resguardar um pouco, falar com pessoas que a gente confia bastante, isso é muito importante e crucial pra construção da sua identidade, porque ninguém nunca faz nada sozinho - e nem dá, tem coisas que você precisa sentir um acolhimento, um afeto. Então nada mais justo do que chegar naquela pessoa que você sabe que vai ter essa troca. A primeira burrice é falar com alguém que você sabe que vai apontar o dedo na tua cara e falar que você tá doido, que é só uma fase, pra esquecer isso. Vai buscar acolhimento na pessoa que você sabe que vai te dar o acolhimento. Tem que se sentir, é uma coisa muito sua. A sua identidade, a sua orientação sexual, só vão vir se você parar e pensar no que você quer, no seu eu. O que você é não vai dar pra mudar depois de um tempo. É como eu sempre digo: A transição sempre vem de dentro pra fora, primeiro você tem que se construir dentro de você, tem que fazer sua casinha dentro de você, pra depois externar isso. Quando você já tá bem construído ninguém no mundo vai virar pra você e vai falar que é mentira, porque você no seu eu vai falar assim “cara, caguei que você tá falando que eu não sou. Eu sou porque eu sei que eu sou.” O importante é que você se construa dentro de ti, que você entenda o seu rolê. Você. Antes de você cobrar que a outra pessoa entenda o seu rolê. 






O que eu falo pra galerinha mais nova é: se construa, se permita ter dúvidas, porque é importante se permitir, não se cobre tanto e vai na fé de deus ou na fé de quem você achar que é seu deus. 









Stefan Costa
1995.

Homem trans negro.
Bacharel em direito, criador de conteúdo e youTuber.
Embaixador do @ceres.trans.

Ele/dele.
2 anos e 10 meses em hormonização.
3 meses da mastectomia.
@transboylife_


*ensaio realizado no Rio de Janeiro (RJ) em março de 2021.  
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Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por urgência.
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*foto revelada por Eloá Souto, digitalizada por Lab:Lab

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