
[fotografia analógica - dig/scan lab:lab]
Gabz: Fala um pouco sobre quem é você?
Meu nome é Ayana Kai Drakos, tenho 33 anos. Sou mestiçe. Minha identidade de gênero é trans não-binárie e eu uso pronomes elu/delu. Eu cresci em Portland, OR, EUA, onde eu moro. Depois do ensino médio, eu vivi em Tacoma, Washington e depois em Madinson, Wisconsin para fazer faculdade e pós. Em 2017 voltei pra cá.
Estudei História e Estudos Afro-Americanos e estou terminando meu doutorado em História, com foco em práticas de cura negras, queer e feministas, especificamente relacionadas ao trabalho com a terra e ao resgate da relação com a terra como lugar de cura. Junto com esse trabalho acadêmico, também tenho aprendido sobre e trabalhado com agricultura orgânica, cultivando vegetais e plantas medicinais. Estou em uma jornada para ser uma pessoa medicinal nessa área, com interesse de integrar meu trabalho acadêmico com mais engajamento comunitário. Eu adoraria poder fornecer práticas medicinais para a minha comunidade, para outras pessoas QTBIPOC (abreviação para pessoas queer, trans, pretas, indígenas e de cor) que não tem acesso a esse tipo de coisa. E eu tenho um sonho de combinar tudo isso em alguma forma de educação para pessoas jovens, tipo uma escola conectada à comunidade, à terra e ao Planeta.
♪ Chaka Khan, "Through the Fire"

G: Se você estiver confortável, poderia compartilhar um pouco sobre como foi sua jornada de gênero?
Ultimamente, tenho voltado a olhar fotos de quando eu era criança. Para integrar e entender melhor meu gênero e essa jornada e para curar um pouco dessas partes do meu eu criança que não puderam ser nutridas como ume jovem trans, porque não havia linguagem para isso – para transgeneridade, enquanto eu crescia – e não tinha pessoas trans e queer ao meu redor. Então a linguagem que era usada para se referirem a mim ou que eu usei pra falar de mim era tomboy (algo como moleca, em tradução livre), sabe. Eu diria que essa era minha identidade de gênero quando eu era criança, porque era essa a palavra que eu tinha. E então, enquanto ume jovem adulte, eu passei por vários estágios de tentar me encaixar como uma menina. Isso não durou muito, mas teve alguns anos que eu tentei ser uma garota (risos), foi estranho.
Eu sinto que desde o ensino médio - eu era atleta. Então você meio que podia usar roupas esportivas e ser uma garota e ninguém diria nada, sabe, porque você é atleta. Desde então eu estive num processo de me entender cada vez mais enquanto não-binárie. Quando eu era mais jovem, existia uma binariedade muito forte dentro do meio queer, tipo uma pressão para se encaixar dentro de uma coisa ou outra. Então eu também lembro de me sentir desconfortável com isso, mas não ter linguagem… Eu sinto que nos últimos 10 anos tem sido um processo de realmente recuperar e reivindicar a não-binariedade e o que isso significa pra mim e me sentir mais confortável com a fluidez. O que tem sido divertido e libertador.
G: Você disse que não tinha linguagem antes. Então eu estava pensando: como você encontrou essa linguagem?
Acho que encontrar linguagem vem de dentro da comunidade queer – à medida que nossa língua evoluiu com o tempo, particularmente com pessoas trans liderando o caminho em expandir a linguagem binária. Vem da galera jovem. Eu sinto que isso chegou a mim nos meus vinte e tantos anos, por estar perto de pessoas queer mais jovens e poder ver como elas bagunçavam tudo isso. E aí é tipo como se eu sentisse que tipo, a gente que era um pouco mais velhe pode se beneficiar do que elus estavam fazendo. E eu até lembro que no momento que cresceu o número de pessoas se identificando com os pronomes elu/delu, de sentir, mesmo pra mim, que era meio estranho, que eu não entendia realmente. E aí, aos poucos, me sentindo cada vez mais no meu corpo, experimentando e tipo, me identificar com isso. Então não foi sempre. Todos os nossos cérebros precisam ser descondicionados, certo? Não são só pessoas hetero que têm mudado e que devem mudar durante esse processo. Acho que dentro da comunidade queer também mudamos e evoluímos à medida que todes nós sentimos cada vez mais o que significa liberdade.
♪ Anita Baker, "Body and Soul"

G: Você comentou que trabalha bastante com a terra, e um sonho seria ajudar pessoas queer e trans que não tem acesso a essa cura. Você estuda história, mas também está em contato com a natureza e plantas. Então você tem essas conexões com a terra. Como você acha que isso pode ser um processo de cura, tanto pra você quanto pra pessoas trans e para pessoas não-brancas?
De uma perspectiva histórica, a primeira coisa que vem à minha mente, especialmente para aqueles de nós com ascendência africana nos então chamados Estados Unidos, é que a raíz de tanto do nosso trauma é conectado a termos sido desconectades da terra e das nossas linhagens, das nossas linhagens de cura, das nossas formas de viver e de estar com o espírito e o alimento que comemos, de cuidarmos de nós mesmes juntes. Para mim, isso é a raiz de como a cura tem que acontecer - através da reconexão e reivindicação do que foi tomado. E a forma que isso deve acontecer é diferente pra cada ume. Dependendo de onde são nosses ancestrais e quais eram nossas práticas. E eu acho que muitas pessoas tão nesse movimento de voltar. E isso está conectado à parte da memória de, primeiramente, quem é nosso povo? Muites de nós nem sabemos. E então temos que ficar quietos o suficiente para ouvi-los.
Se você é prete nos Estados Unidos, muitas vezes os métodos tradicionais de encontrar essas informações através de registros e arquivos não existe. Então se torna uma prática espiritual de descobrimento… para mim, posso ouvir de forma mais nítida quando estou na natureza, quando estou em conexão com a terra e meu corpo está no chão. É como um processo de confiança e fé, que também é decolonizador, sabe, de lembrar da nossa intuição e praticar ouvir e confiar em nós mesmes enquanto pessoas queer, pessoas trans, pessoas pretas, pessoas indígenas. Que é tudo que fomos ensinades a não ouvir, a não acreditar que é valioso, de onde não deveríamos estar obtendo nosso conhecimento. Então essa prática de ficar em silêncio e ficar ao ar livre e ouvindo, pra mim é libertadora e de cura. E podemos pensar até em como cultivamos plantas ou alimentos, tipo, as sementes mesmo. Cada vez mais, a nível de sobrevivência, a gente vai ter que reaprender a cultivar nossas próprias sementes e alimentos porque os últimos anos em particular nos mostraram que não podemos confiar em outros sistemas para fazer isso pela gente. Tem um movimento muito massa rolando agora em torno de salvar sementes e recuperar sementes de herança, que foram transmitidas por diferentes culturas e linhagens para mantê-las vivas e cultivá-las - para levá-las de volta para as comunidades originais de onde foram retiradas.
Essa é uma das coisas que vem à mente. Pessoalmente, eu fiquei muito mal em 2017, com uma doença misteriosa chamada doença de Lyme. Isso redirecionou o curso da minha vida, e daquele lugar de estar doente e meu corpo realmente tendo que, tipo, eu senti como se fosse uma doença espiritual e corporificada, no sentido de que uma das coisas que surgiu naquele momento foi de que eu precisava aprender como viver de uma forma diferente se eu quisesse estar nesse mundo. Parte daquilo foi muito nítido, foi de que eu tinha que voltar pra terra e em particular pras árvores. Eu comecei a receber todas essas imagens de árvores que cuidaram de mim durante a minha vida quando eu era criança. E eu senti como se tivesse me sendo pedido para retornar àquelas árvores e dar gratidão, realmente vendo elas e cultivando um relacionamento de reciprocidade. E é a partir desse momento... é para lá que eu sempre volto.
G: E como você sente a conexão entre o que está dizendo e essa jornada de gênero? Porque as duas coisas acontecem meio que ao mesmo tempo.
A natureza é tão queer, tá ligado? Tipo, é tão divertido ir pro mato e observar as formas e a estranheza e a perfeição em todas as expressões da vida sendo ela mesma. É isso que é ser trans, que é ser queer. Um convite pra gente se manifestar como a gente é, sem toda a merda das coisas que dizem que a gente deveria ser. Isso é lindo pra caralho.
Então pra mim parece inerentemente conectado. Porque parece que é isso que a natureza tá pedindo da gente. É o que parece. As plantas, a água, os elementos, sabe, só pra gente estar na nossa selvageria, entende o que quero dizer? Então quanto mais eu sinto que observo e ouço a todas essas formas e texturas – é também algo sensual e sexy e não linear, não existe um modo só – mais eu consigo sentir que posso ser eu mesme. E então têm os micélios… ultimamente eu tenho aprendido mais sobre cogumelos e entendido sobre sua interconexão e confiança uns nos outros. Temos muito a aprender sobre como a natureza cuida de si mesma. Pra gente, a gente sabe disso, que a nossa sobrevivência depende da gente cuidar umes des outres porque os sistemas não cuidaram da gente. Então também existe essa rede de afeto queer que eu acredito que se torna mais nítida quanto mais a gente ouve aos cogumelos.


G: Adoro que você trouxe isso - o cuidado umes com es outres - porque acho que é algo muito único, não só pra pessoas queer, mas pra grupos que foram marginalizados ao longo da história e tiveram que construir suas próprias comunidades. Eu gostaria de te perguntar como é ser uma pessoa trans em Portland, mas também quero saber mais sobre a importância da sua comunidade. Como você acha que está sendo cuidade? Você sente que isso vai contra as normas?
Eu recebi tanta generosidade e, de certa forma, posso sentir que parte da minha jornada de cura tem a ver com romper padrões familiares e ancestrais de isolamento. E acho que por ser trans e não ter recebido apoio nisso durante a minha vida, parte dos meus próprios mecanismos de defesa foram me isolar. Então parte dessa jornada tem sido romper com isso. Também tá conectado com aquele momento que eu tava doente porque eu fui jogade para um lugar onde eu tive que receber. Eu tive que me abrir pra poder receber suporte das pessoas, porque parte do que acontece quando existe um padrão de isolamento é você dizer pra você mesme que as pessoas não se importam com você, ou não te amam, etc. Ou, sei lá, muito disso é medo, tipo "eu não quero ser demais" porque é dito pra gente que somos demais. Foi um grande momento pra mim quando eu falei pras pessoas o que tava acontecendo, de dizer "estou muito doente". As pessoas estavam lá por mim de uma forma que o meu coração teve que abrir. Foi como um processo de amolecimento e eu nem tava acreditando. As pessoas são muito generosas. As pessoas são tão amorosas e carinhosas quando a gente permite que elas sejam, sabe. Eu recebi muita comida nutritiva. Desde então, e também tendo saído do meio acadêmico, que é um ambiente inerentemente de isolamento, e voltando pra casa e me focando e reconectando com a terra da onde vim e minha família e construindo comunidade aqui, eu continuo a ter esse sentimento de só querer estar em comunidade de uma forma generosa. Quero dar de graça e receber de graça. Isso também vai contra a norma do capitalismo ou individualismo, onde a gente é ensinado que o sucesso é ter todas esses coisas ou ter um status ou renda quando, pra mim, sucesso é medido pelo bem-estar da sua comunidade e como cuidamos uns dos outros. Quão bem as pessoas se sentem cuidadas? É isso que realmente importa. E eu também sinto que quanto mais estamos em reciprocidade e cuidado com a terra como uma prática, e daí em comunidade com outras pessoas que praticam isso, você sabe, pode ser uma generosidade tão autogerada… Existe abundância nisso.

G: Lembro que após as fotos você falou várias coisas legais sobre esse processo, você poderia comentar um pouco como foi pra você o ensaio?
Primeiro, foi tão divertido e libertador e criativo. Acho que eu nunca senti antes o sentimento que tive durante as nossas fotos. E muito disso tem a ver com você e com quem você é e o espaço que você cria e sustenta e quão segure eu me senti com você pra me expressar. E o timing, sabe? Eu estava passando por uma tristeza muito grande, mas que também é um momento que pode ter muita abertura. Eu estava passando por muitos sentimentos que puderam ser libertados nas formas que meu corpo quis fazer. O processo foi uma forma empoderadora de estar comigo e com minhas emoções e de fato me mover através delas com mais liberdade. Eu senti nosso ensaio de uma forma muito fluida, assim como eu me sinto muito fluide. Eu senti que eu poderia ser grande, poderia ser pequene, poderia ser submisse, poderia ser mais dominante. Eu poderia me acolher. Eu poderia ser atrative ou sedutore. Eu poderia estar convidando alguém a entrar. Eu poderia estar desviando o olhar. Eu poderia estar encarando diretamente o que está lá, encarando você ou, sei lá, eu senti que eu poderia ser de tantas formas diferentes, pelo seu olhar. Foi incrível.
G: Eu nem sei o que dizer, queria te dar um abraço agora. Eu realmente amo que fizemos uma foto nossa em que eu estava te fotografando. Eu amo que de alguma forma registramos esse momento. Tem mais alguma coisa que você acha importante de compartilhar?
Quero expressar gratidão pra você e esse projeto. E eu não sei nem tudo o que faz esse projeto possível, mas participar dele me ofereceu algo que eu não sabia que precisava. E a gente falou nessa conversa sobre cuidado e a importância do cuidado comunitário, e ser viste dessa forma e receber espaço pra me expressar me parece uma forma muito importante de cuidado. E eu posso sentir como as fotos e o processo desta conversa estão oferecendo espaço a uma parte de mim que eu não sabia que precisava desse espaço, ou que sinto como cuidado, e espero que continue sendo apoiado para que outras pessoas possam ter esse sentimento.
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Ayanna Kai Drakos
ano n.
Bio
id gênero
pronomes
@ig
ano n.
Bio
id gênero
pronomes
@ig
tempo em hormonização
*ensaio realizado em junho de 2022 em Portland, OR (EUA)
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ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Projeto idealizado por Gabz, trans não-binário e multiartista. ser trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemes, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. Esse trabalho começou por urgência.
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

Autorretrato de Gabz revelado por Eloá Souto