[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]

Eu sabia desde criança que tinha algo ali dentro que precisava despertar, mas eu não sabia como, nem o que era e nem o porquê. Foi em 2019, com 16 anos, que eu tive meu primeiro relacionamento com uma mulher e foi muita coisa na minha cabeça, foi um turbilhão de emoções, pensamentos e medos. Ansiedade. Até então, eu me identificava como uma pessoa cis, então eu não me sentia tão acuado em relação a tentar descobrir mais, me aceitar e também mostrar isso pro mundo. Porém, isso durou muito pouco porque foi logo que comecei a me abrir de verdade, a conhecer quem eu realmente era, que as coisas começaram a complicar de fato. Eu comecei a namorar uma mulher e comecei a questionar quem eu era, porque eu não me sentia encaixado em um relacionamento como uma mulher, nesse papel. Foi um medo, foi um susto muito grande porque eu não sabia pra onde ir, eu não sabia o que fazer, eu não tinha informação, eu não tinha pessoas em volta pra me dar apoio, pra tentar me dar uma solução. Eu tive que correr atrás porque a informação era muito pouca, eu também não tinha muito acesso a elas.

Demorou um tempo até que eu entendesse o que eu tava sentindo; foi até engraçado como aconteceu porque foi, simplesmente, eu pegar o que eu pensava, tipo, "uma pessoa que não se sente com o sexo que foi designado desde o momento do nascimento", eu peguei e joguei no Google e quando vê ali apareceu vários termos dentro do sentido trans e eu pensei "puts, agora que o negócio vai ficar foda de verdade, se eu realmente me reconhecer dentro de algum desses termos...", primeiro eu pensei "eu vou ficar muito feliz porque realmente agora eu vou tá me encontrando, vou tá me conhecendo, me percebendo, com 16 anos", mas ao mesmo tempo pensei "puts, tô ferrado, eu tô ferrado. O que eu vou fazer?". 

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Então, eu pesquisei e li bastante, procurei, procurei, procurei o máximo de informações que eu podia, porque as informações eram muito precárias - agora que elas tão começando a aparecer, tão ficando mais nítidas, isso é muito bom, porém na época era muito complicado. E não ter pessoas em volta que pudessem me ajudar em relação a esse processo foi mais complicado ainda. No caso, tinha amigos próximos, eu tinha minha namorada, eu tinha pessoas que me amavam e que iam me ajudar da melhor forma possível, e o quanto elas pudessem, só que a questão é pessoas que tivessem vivido aquilo, das quais eu pudesse tirar um apoio, pudesse tirar um colo, um carinho, sabe? No momento em que eu me descobri eu falei "ok, eu sou isso, e agora? O que eu faço?". Eu comecei a buscar, comecei a ir atrás, procurar movimentos, comecei a procurar grupos sociais, grupos na internet - coisas que eu acho muito importante, porque quanto mais pessoas tu tem, acredito que em qualquer processo da tua vida, tudo vai se tornar mais fácil. Tu não vai ter aquele medo, aquele monstro dentro de ti, falando o tempo inteiro pra tu parar. Tipo "para, que é o que tu quer, o que tu sente que é o certo, mas a vida daqui pra frente vai ser muito complicada, e tu não vai ter pra onde correr. No final vai ser só tu por ti mesmo e tu não vai ter pra onde correr nesse momento. Em qualquer momento que tu sofrer qualquer tipo de violência, seja na rua, seja em casa, tu não vai ter pra onde correr". 

Eu deixei isso calado por bastante tempo; na verdade até início desse ano, foram quase três anos. Porque eu tinha muito medo de revelar isso, me mostrar de verdade pro mundo. [Também] deixei isso calado por bastante tempo justamente pra trabalhar isso dentro de mim, pra que quando chegasse o momento eu tivesse preparado pra isso, eu pudesse ter uma cabeça madura e forte o suficiente pra aprender a lidar com isso. Ainda assim, parece que não foi o bastante, eu acho que pelo resto da vida, talvez, eu sinta que nunca vai ser o bastante porque eu tenho muito medo de um dia sair na rua e sofrer alguma coisa. A estimativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos [no Brasil] e eu tô com 20 já, me bate toda vez um medo quando saio de casa, penso "será que eu só vou ter mais 15 anos mesmo? será que é realmente isso que eu tô predestinado a ser e a viver?" E, justamente pelo ódio das pessoas, ou pelo fato de não aceitarem uma pessoa ser simplesmente quem ela é e quem elas nasceu pra ser. Quando eu cheguei no meu ápice, que eu não aguentava mais me esconder e viver uma realidade que não era minha, uma verdade que não era minha, eu... Chegou um dia que eu peguei e mudei tudo os meus nomes nas redes sociais, não avisei ninguém e pensei "se eu sou essa pessoa então eu não devo explicações pra ninguém. Se eu sou essa pessoa, da mesma maneira que as pessoas querem ser tratadas bem e que são tratadas pelo seu gênero e nome muito bem na rua, por que eu não devo? Por que eu não mereço isso?" Eu fiquei questionando isso e foi o momento em que decidi mudar de vez, por completo; independente do que as pessoas achassem que era o melhor pra mim ou não. Até então, quase todos os aspectos da minha vida, eu vivi na sombra do que as pessoas achavam que era o correto e certo pra mim. Até então, eu me sentia encaixado como uma pessoa cis, então a vida sempre foi muito fácil, e, no momento em eu, digamos, larguei isso, foi o momento em que eu vi como a vida realmente é. Tu se mostrar de verdade, trazer a tona tudo que tem dentro do teu coração, do teu peito, do que tu realmente é, e tar disposto às pessoas não ligarem pra isso e tentarem te amedrontar ou passar por cima de ti.

Em Santa Cruz do Sul, é muito complicado, muito complicado mesmo! A cabeça de muitas pessoas aqui é muito fechada, e, infelizmente, essas pessoas são as que tem como te dar alguma oportunidade de crescer, de qualquer forma, seja ela de maneira profissional ou pessoal, são essas pessoas que, digamos, tem esse poder, que poderiam alavancar essa fase da tua vida. Até agora foi muito complicado, o medo de andar na rua e de fazer uma entrevista de emprego, porque toda vez que eu chego em uma entrevista de emprego - e acredito que isso vai durar por muito tempo - eu sempre vou sentir medo da pessoa que eu sou, medo deles não gostarem, não aceitarem... E eu tô há muito tempo procurando emprego. A gente sabe distinguir o olhar das pessoas, a maneira como elas agem em relação a gente quando elas sabem a verdade, e, infelizmente, a verdade ainda dói bastante na gente; não deveria, mas dói. Sempre foi muito difícil e eu não consegui emprego até agora, ou seja, eu não consigo emprego, eu não consigo oportunidade e se eu não consigo oportunidade eu me sinto muito mais acuado pra correr atrás do que eu realmente acredito - e esse é o cenário que a gente ainda vê aqui na cidade, onde as pessoas tem a cabeça ainda muito fechada e não buscam ir atrás de informação porque não ligam. Elas não ligam, elas veem a gente como um grupo totalmente distinto da sociedade. A gente tem que lutar, todo dia, pra ter esse reconhecimento e poder ter reconhecimento e crescer cada dia mais pras pessoas olharem pra gente e falar "tá bom, então essa é a pessoa, ela é desse jeito e eu vou ter que aceitar ela", entende? "Porque agora ela é uma pessoa visível diante da sociedade e eu vou ter que aceitar ela de uma maneira ou outra". Eu não queria que fosse assim, não queria de coração, porque não é como as pessoas agem normalmente com pessoas cis, onde é muito mais fácil tu ganhar reconhecimento, ganhar oportunidade.


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]



Aqui eu tenho uma rede de apoio muito boa que é a Ambitrans. Eles, se eu não me engano, estão desde 2019 trabalhando com grupo voltado para pessoas trans, têm auxílio psicológico e médico. São pessoas com quem tu realmente se sente confortável e acolhido. Elas te vêem simplesmente como uma pessoa, como a pessoa que tu é. É como se, quando tu entrasse lá e tivesse contato com essas pessoas, tu pudesse ser quem tu realmente é e não [precisasse] sentir medo disso. Tu pode mostrar pro mundo o que tu sente do peito pra fora - é uma coisa que eu tento buscar todo dia e parece, às vezes, que quanto mais eu busco, mais difícil é. 

A escrita sempre foi algo muito importante pra mim, desde criança, porque era através dela que eu sentia que eu podia ser eu mesmo. Desde criança eu nunca pude fazer as escolhas por mim, justamente pelo fato de ter pessoas em volta que viam que brincar com meninos ou ter uma brincadeira de menino - que a gente sabe que isso não existe: distinguir brincadeiras, maneiras de agir, de falar, enfim... O que for de masculino pra feminino não tem diferença alguma, as pessoas são quem elas são e nada deveria ter essa distinção, ter esse padrão, ter essa caixa - a gente ter que ser definido por caixas. Eu acredito que essa é, principalmente, a coisa que dificulta nosso processo de transformação e de descoberta dentro da sociedade, e até mesmo dentro da gente mesmo. Porque a gente cresce com esse padrão na cabeça, enraizado. A gente cresce pensando que tem que ter esse padrão e até mesmo durante e após o momento da transição, onde tu já te sente mais tranquilo, tu ainda se vê replicando e fazendo modelo de alguns padrões que tu não gostaria. E a escrita me ajudou muito nessa questão, porque na escrita eu podia ser quem eu realmente era, e poderia expressar o que eu sentia, que tava dentro do meu coração e [que] sempre foi algo difícil de expressar pras pessoas, desde criança. Eu sabia que se eu expressasse isso, ainda mais uma criança, eu ia ser contrariado ou diriam que era só algo de criança, porque "criança não entende nada, não sabe o que quer da vida", mas eu acredito que desde criança eu soube o que queria da vida e desde criança eu quis trabalhar com arte e é uma coisa que eu tento desenvolver todo dia e que eu quero levar daqui pro resto da minha vida e criar algo importante, assim como esse projeto. Pra que as pessoas possam se identificar, possam [se] enxergar e ter essa visibilidade de que a gente sente e vive da maneira que sente mais confortável, que tá dentro do coração, a gente vive nossa essência, o que a gente realmente é. E a escrita, desde criança, me trouxe essa perspectiva, a escrita sempre foi algo importante na minha vida porque eu senti que era através dela que eu conseguia transpassar o que eu tava sentindo e o que eu não me sentia confortável pra passar pras pessoas perto de mim. Não digo que minha infância foi reprimida, mas ela foi baseada muito no que as pessoas esperavam de mim; como me viram nascendo como uma garota e esperavam isso. Eles viam ali uma vagina e pensavam "é uma menina e vai ser assim pelo resto da vida", basearam as expectativas delas sobre mim em cima disso. É a escrita que me ajudava a fugir dessa realidade. 

Por mais que eu não entendesse muito bem, a escrita sempre foi um mecanismo de defesa e também um meio de me sentir confortável e menos angustiado em relação ao que eu sentia. Eu acredito que a escrita é uma ferramenta, uma "arma" muito forte, assim como o rap, que sempre foi e sempre vai ser muito importante na minha vida, sempre transpassou o meio social e tudo pelo que as pessoas passaram e até hoje passam. Foi através do rap que eu pude ter conhecimento melhor sobre o que acontece no âmbito social além do que eu enxergo, além do que eu posso enxergar. Eu posso ter uma noção de como as pessoas vivem, do que elas sofrem, como são tratadas do outro lado do Brasil ou até mesmo do mundo, sem precisar tá presente; e eu acredito que esse é o poder que o rap tem, e esse é o poder que a escrita, que a palavra tem. A palavra tem um poder muito forte e uma coisa que eu sempre digo é que a gente tem que ter muito cuidado, porque ela tem esse poder e é a gente que dá sentido à ela, se ela vai ter um sentido bom ou um sentido ruim. Depende muito do que a gente pensa e do que a gente quer passar para as pessoas.





Ser preto já é algo muito complicado, é algo que vai tá ali marcado em ti, vai tá literalmente na tua pele desde o momento em que tu nasce, então é um fardo que tu vai carregar desde o início até o final da tua vida e não tem como fugir disso - e eu acredito que tu nem tenha que fugir, tu tem que aceitar porque é algo lindo. A pele preta, a essência preta carrega uma ancestralidade, uma cultura, coisas muito ricas, sabe? Coisas que, se bem aceitas, podem agregar e construir coisas muito importantes e lindas dentro da sociedade, e é isso que todas as pessoas pretas buscam todo dia, não só o conhecimento, mas também que as pessoas enxerguem o valor que isso tem, o valor que isso carrega. Ser preto e trans aqui em Santa Cruz é complicado porque é uma cidade, uma região, onde as pessoas têm uma cabeça muito fechada, não só fechada nessa questão de serem ignorantes, mas é algo estrutural, é aquela coisa de ser... de tradição, sabe? É algo que tá na família, em muitas famílias aqui no Rio Grande do Sul, principalmente aqui na cidade, e é algo que não tem jeito, não é apenas a gente que sofre pelo racismo, pela transfobia ou seja lá o que for. Lutar pra mudar isso é algo que tem que vir das pessoas, tem que vir da cabeça delas, elas entenderem que, independente do que eu sou ou de como eu ajo, desde que eu não esteja fazendo mal pra ti ou pra ninguém, a forma como eu vivo não vai afetar de maneira alguma de forma negativa na maneira que tu vive. Ao contrário, ela pode agregar porque cada um pode aprender um pouco mais com o outro, desde que tenha a mente aberta e esteja aberto a novas experiências e a novos padrões de vida e de realidade. 

Sair um pouquinho dessa realidade que as pessoas mostram pra gente desde o início e a gente que é trans sabe muito bem disso; que desde criança a gente aprendeu a ver só uma realidade e por muito tempo a gente acreditou - e algumas pessoas, infelizmente, ainda acreditam - que é só dessa maneira que se pode viver. Eu acredito, também, que é por isso que a gente sofre muito até entender o que a gente é e o que a gente quer passar. No momento em que a gente percebe, a gente se percebe, a gente se conhece, a gente consegue sair desse padrão, consegue viver da melhor forma possível pra gente. Foi esse meio que encontrei pra me sentir um pouco melhor e viver um pouquinho mais tranquilo aqui em Santa Cruz sendo trans e preto. Aqui é aquela coisa: se tu vai de chinelo de dedo pro Centro, tu pode ter certeza que tu não vai ser bem atendido. Se tu é preto, principalmente trans, digamos fora do padrão, e vai do jeitão brasileiro, chinelinho de dedo, bermuda, pode saber que tu não vai ser atendido ou se tu for vai demorar demais pra tu ser atendido ou tu vai ser atendido com aquela falta de vontade, aquela falta de empatia. Tu vê pessoas brancas sendo atendidas... eu tenho certeza que em muitas vezes que eu fui atendido, se eu fosse um cara branco, hétero, de olho azul, loiro, não seria a mesma coisa, não seria mesmo. Isso se olharem pra tua cara - infelizmente essa é a realidade que a gente encontra sendo trans, principalmente preto, em Santa Cruz do Sul e, infelizmente, em muitos lugares aqui do Brasil: é tu fazer o dobro do esforço, o triplo, ou talvez até mais pra ser atendido, ser notado, ser reconhecido. É algo que eu quero, na minha vida, tentar lutar pras pessoas que vivem a mesma situação que eu, ou algo parecido, possam ter mais conforto e liberdade daqui pra frente.
Eu me orgulho muito do que eu sou e do que eu lutei muito pra ser até hoje; e do que eu ainda tô lutando. Só eu sei, cada um sabe, a sua história e só cada um vai saber a própria força que teve pra chegar onde tá hoje. Demorou um pouquinho pra eu reconhecer isso, demorou um pouquinho pra eu reconhecer a força e significado que isso tem pra mim, assim como pra cada um tem seu significado e sua importância. A gente sabe muito bem o padrão de beleza que a gente vê hoje em dia, que as pessoas, muitas vezes, passam pra gente e [que] a gente vê durante nosso dia a dia até de pessoas próximas. Quanto mais magro possível, mais belo tu vai ser. Quanto mais dentro do padrão tu estiver, mais belo tu vai ser. Foi uma coisa que percebi desde criança, não só pela cor da minha pele, por sofrer racismo, [mas] por sofrer qualquer tipo de preconceito, principalmente transfobia até hoje. Foi [importante] perceber que pra eu aceitar o meu corpo eu deveria entender que o meu corpo era único e que tudo que eu trago dentro de mim é único - assim como o que cada pessoa tem dentro de si é único - tudo vale a pena ser expressado e posto pra fora, de alguma maneira. Sempre vai ter alguém que vai valorizar isso, vai [se] reconhecer, é por isso que eu acho importante tu expressar o teu corpo da tua maneira, da maneira que tu se sente melhor. Porque, por mais que a gente ache que não, sempre vai ter alguém que vai reconhecer, vai se identificar e vai tirar força daquilo que tu tá tentando passar. 

Eu acho que a melhor forma da gente mudar nossa realidade é trabalhar em conjunto, sabe? Trabalhando sozinho a gente até pode ir a algum lugar, mas a gente não vai conseguir ir tão longe quanto trabalhando em conjunto - essa foi uma coisa que eu aprendi desde muito cedo. Mas uma coisa que eu acho que a gente tem que valorizar e dar muita importância é o nosso [lado] pessoal, se a gente não estiver bem e tiver ideias concretas, a gente não vai conseguir passar isso pra massa, ter pessoas com quem contar pra poder passar essa ideia pra frente.

Essa vontade, sem exagero, de querer mudar o mundo, aos poucos, devagar, é uma das coisas mais corajosas que alguém pode ter. A gente, que é trans e já foi reprimido ou até mesmo já se reprimiu durante muito tempo, aprende que ser diferente e querer mudar o mundo é algo que, no mínimo, a gente tem que expressar, tem que pôr pra frente. Criar alguma ideia, algum plano com originalidade e sem fugir muito da sua essência, pra fazer isso acontecer, sabe? Eu acredito muito que aquilo que tu realmente faz com amor, com coração, é algo que vai dar certo - e já tá dando certo, do minuto em que tu tá criando aquela ideia na cabeça e tá sendo com amor, com crença de que aquilo vai dar certo e pode influenciar de maneira boa outras pessoas, a tua própria realidade, o teu futuro. É algo que tende a dar certo e vale a pena lutar.


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]



Eu não sei agora como tá a situação das escolas, principalmente as de ensino médio, porque geralmente é onde aborda assuntos mais importantes. Mas, no meu tempo... "No meu tempo" (risos), faz poucos anos, três anos que parei de estudar, mas eu não tenho contato com alunos, pessoas que estão no ensino médio agora. Pelo menos no tempo em que eu tava no fundamental, não era tocado no assunto de identidade de gênero, orientação sexual... Isso era um tabu, realmente era um tabu, tanto quanto é hoje. Tanto que eu fui começar a entrar nesse universo no primeiro ano do ensino médio, entende? Em uma escola aqui de Santa Cruz onde os jovens se aceitam de uma maneira melhor e, consequentemente, como a maioria estuda lá, eles acabam indo pra lá também, porque se sentem confortáveis e acolhidos e encontram pessoas que podem dar suporte e que vão fazer eles se sentirem confortáveis de uma melhor forma. Eu acredito que, na escola, isso é muito, muito, muito importante. Porque principalmente durante o fundamental, mas ensino médio também, um dos únicos contatos que tu vai ter, diferente da família, vão ser as pessoas da escola, da tua sala de aula, tuas professoras. E acredito que falta muito professores preparados pra lidar com alunos, não só trans, mas dentro da sigla da bandeira LGBTQIA+, enfim, preparados pra lidar com isso, com a mente aberta até [para] quererem lidar com isso pra [mostrar que] se importam. Porque se tu não se importa, tu não vai estar nem lidando com a maneira como o outro se sente; e muito menos se tu não entende e nem procura entender. 

Eu acho que o que falta nos profissionais, principalmente nos que lidam com jovens, é ter uma cabeça preparada, aberta, e procurar entender esse lado, entender que a gente também é gente, a gente também faz parte da sociedade, a gente não é um grupo excluído da sociedade; então não tem porque tratar a gente com indiferença, mas sim, procurar entender o que a gente vive, o que a gente passa, pra tentar ajudar a gente em qualquer tipo de situação, dentro ou fora da sala de aula. Dar o melhor apoio possível. E sobre os alunos que estudam no ensino médio - porque, apesar de ser algo que transita muito entre os alunos, têm alguns alunos que ainda tem muito, muito preconceito e, infelizmente, acabam gerando um desconforto, agressividade e violência muito grande. Como eu disse antes: a palavra tem um poder muito forte e a influência que ela vai ter, se vai ser boa ou ruim, depende da gente. A gente não tem nem noção do quanto uma palavra pode acabar com o dia de uma pessoa, até mesmo a semana, o mês. A gente não sabe pelo que aquela pessoa passa, o que ela passa no pessoal dela, o que ela trás com ela, o que incomoda, o que realmente aquela pessoa carrega dentro do peito; qualquer coisa que a gente fale pode ser um gatilho pra que algo muito ruim, ou coisas muito ruins, despertem naquela pessoa. Então, acredito que na escola isso é muito importante de ser trabalhado, ser abordado. Na família também. 

Na família, pra mim, foi bem complicado de início, porque... Eu não tenho muito contato com meu pai, mas eu moro com minha mãe, então nem tenho como não ter contato com ela - e, pelo contrário, eu agradeço por ter contato com ela. Eu sei que por mais que ela seja uma pessoa que não entende muito sobre, ela aceita, entende? Eu entendo. O mínimo, hoje em dia, é as pessoas respeitarem, não precisa aceitar, é só respeitar. Mas o mínimo é as pessoas pelo menos respeitarem. Através disso elas podem criar, pelo menos, uma base de entendimento sobre o que é e criar um relacionamento, um vínculo melhor com aquela pessoa.

Ela [mãe], não entende muito bem, até hoje. Acredito que falta diálogo, mas é uma coisa que tô trabalhando pra conseguir conquistar, até pra ela poder entender melhor. No início foi tranquilo, ela aceitou de boas, não teve... Na verdade, teve sim uma resposta negativa, mas acredito que ela passou 19 anos criando expectativas em cima, até então, da filha que ela tinha; ou pelo menos achava que tinha. Quebrar isso, depois de 19 anos, depois da pessoa ter construído ali um cenário inteiro da tua vida dentro da cabeça dela, eu acredito que seja uma coisa muito chocante. Não só dentro dessa perspectiva, dessa ligação entre mãe e filho, mãe e filha, mãe e filhe, mas, sim, de relações afetivas mesmo. Eu acredito que isso tenha um impacto muito forte na pessoa e tu tem que dar tempo ao tempo, tem que dar tempo pra aquela pessoa entender, assimilar, porque cada um tem seu tempo e quanto mais tu força uma situação, acredito que pior seja. Tu pode até dificultar o processo dessa pessoa e o processo pra que vocês tenham uma relação mais tranquila e saudável. 

Não digo que entendo, mas imagino - porque eu não tenho filhos, então, não entendo o que ela deve tá passando ou o que uma mãe ou um pai passa quando se depara com um filho ou uma filha transgênero. Mas eu acredito que deva ser algo muito difícil, principalmente da mãe que é um instinto, querer ver ali teu filho, tua filha o mais seguros possível e querer proteger eles acima de tudo. Deve ser um negócio muito louco tu não poder controlar isso, tu não poder tá o tempo inteiro ali ao lado do teu filho, da tua filha, se assegurando de que quando ele sair na rua vai ser tudo tranquilo e quando ele voltar ele vai tá bem. Deve ser uma angústia, uma coisa muito surreal. Eu lembro que, antes mesmo de eu me assumir trans pra ela, ela tinha muito medo porque, até então, ela já sabia, eu tinha me assumido bi pra ela - hoje pan, né? - e, naquele momento, ela já tinha muito medo. Eu imagino o quanto esse medo não deve ter dobrado agora. 

Ela falava que aceitava e que se dava muito bem, mas era o quê? Pessoas gays, bis e lésbicas, entende? É muito mais fácil tu aceitar isso, é muito mais fácil tu falar "ah, eu aceito pessoas LGBTs, sou completamente tranquilo, de boas", mas elas só olham pra algumas [letras da] sigla, elas esquecem totalmente, a partir do T parece que elas esquecem. Acho que elas não enxergam muito ou dão muita bola. Acredito que a intenção seja diferente, porque ela falava tanto que aceitava, mas... Ela nunca tentou olhar muito além dessas primeiras três [letras da] sigla. Foi quando ela se deparou com a quarta que a realidade mudou totalmente pra ela, porque ela não tinha nem noção de que essa quarta letra existia, de que essas pessoas existiam, de que essa realidade existia. É uma coisa que tu vê em muitas pessoas hoje em dia: elas falam que aceitam, mas olham só pra algumas pessoas dentro da comunidade, elas não olham pra comunidade em si - esse é o problema, esse é o maior problema. Falar que aceita é muito fácil, mas aceitar a comunidade como um todo é bem mais difícil do que parece, pra essas pessoas, né? Não é pra gente, a gente que vive na pele sabe que não é nada difícil, mas pra essas pessoas que só enxergam parte da comunidade é algo totalmente real, tanto que, quando elas começam a se deparar, a resposta tende a não ser muito boa, tende a ser negativa.


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]




Eu acho que um recado muito importante seria de sempre acreditar, e criar e fomentar essa curiosidade que tu tem sobre se descobrir, sobre o que tu sente em relação a ti mesmo. O momento em que eu comecei a fomentar e alimentar essa curiosidade dentro de mim foi quando eu comecei a me descobrir e pude chegar na minha versão, até então, mais completa e verdadeira, sabe? Por mais que o mundo inteiro pareça contra o que tu tá sentindo, por mais que tu não esteja fazendo mal pra ninguém, nem pra ti mesmo, não desista daquilo que tu quer, que tu sente de coração e corre atrás. Por mais que tu possa pensar que o resultado seja negativo, tu vai ver que ele vai valer a pena, com o tempo ele vai valer a pena e tu não vai se arrepender quando tu olhar pra trás e ver aquela pessoa tímida e com medo, sem esperança de que isso fosse algum dia dar certo.

Sou plural 
Sou poesia
Um universo que 
se destrói
E depois se recria 

Sou sentimento
Sou sigla
Que vocês tentaram
apagar
Interior pingando no 
ralo da pia

Manias, cópias
Discursivas
Repetitivas
Antidigestivas

Tentando viver o
intenso
Até mesmo em
pensamento
Aprendendo a viver

Sentir o calor do sol
Até a última faísca
do entardecer 
E transformar em cinza
tudo aquilo que me 
force a perecer 

Muito do que passar
Muito do que repassar
Muito do que ensinar
Aumentar a expectativa
de uma vida predestinada
a falhar 

Eu ouço a sua voz
Me lembro de nós
Aquele lugar distante
O durante e o após

Hoje já não somos mais
nós
Verso que não é romântico
Falo sobre minha versão
mais antiga
Aquela que vivia no âmago 

Âmago, sobre a perversidade
Já falaram muito sobre o que sou
Então prove sua verdade

Tive que conhecer o
sobrenatural
Pra aprender a falar sobre
o que é natural

Tentativa de vida
nesse mundo real
Onde estão a procura 
apenas daquele expresso
no papel 

Tentativa de censura
Desse cedo
Daquela época de doçura
Onde tua realidade é pura
E pensa que entre todos
é essa mesmo que perdura

Falo sobre amor
Querem minha dor 
Chamam de perverso
Meu interno progresso
Tenho certeza que seria
diferente
Se me vissem do avesso 











Elias
2001

Apaixonado por arte e toda forma sincera de expressão.

Gênero Fluído
Ele/ela
8 meses em th
@_divenus


*ensaio realizado em Santa Cruz do Sul (RS) em outubro de 2021
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Esse projeto foi idealizado por Gabz, transmasculino não-binário e multiartista. Ser Trans retrata e também abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemens, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. 
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

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Autorretrato de Gabz  revelado por Eloá Souto, digitalizado por Lab:Lab

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