Eu sou Caio, tenho 24 anos. Tenho me reconhecido ultimamente como transmasculino. Há um tempo atrás eu me reconhecia mais como homem trans, acho que mais no começo da minha transição. É engraçado porque quando comecei a minha transição eu era muito masculino, assim, meio que forçava essa masculinidade. E hoje em dia eu sou mais feminino, eu falo que eu sou mais feminino do que quando eu era moça, que eu tenho me permitido isso.
Quando comecei a ter mais consciência da vida, lá quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, comecei a ter incomodo com o meu corpo. Na época, não sabendo lidar com isso, falei “pô, vou parar de comer”. Eu queria desaparecer na verdade, eu tinha esses incômodos que eu queria que sumissem - essas formas, que diziam femininas, que me incomodavam tanto. Nessa época que eu menstruei. Aí eu não conseguia sair de casa, eu chorava… foi uma época muito difícil.  Considero que eu só to aqui hoje em dia porque eu tenho certos privilégios e tenho acesso cuidados em saúde mental, porque tenho apoio dos meus pais, se não eu acho que eu já tinha partido muito tempo atrás. Eu tive uma adolescência muito difícil. Eu tinha muitas crises depressivas e de anorexia e eu não saia de casa, eu ia pra escola forçado, mas, sem comer, não conseguia prestar atenção na aula. Eu passava muito mal, lembro que eu tinha um atestado de que eu não podia fazer educação física, o médico falou que eu não podia fazer esforço.​​​​​​​
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Foi nas férias. Que bateu com a época em que meus pais se separaram. Acho que eu já tava entrando nesse quadro meio depressivo-anoréxico, aí meu pai um dia falou “vou embora de casa”. Aí nas férias de 2013 pra 2014, que eu tinha 13 pra 14 anos - é porque eu nasci em janeiro de 2000, então eu acompanho o ano (risos). Foi nessa época que eu comecei a perder muito peso. Eu pesava quase 60kg e fui para 38kg em dois meses. Teve um dia que eu não conseguia parar de chorar, aí que falei “mãe, acho que tem algo de errado comigo, porque eu não tô dando conta”. Era uma época bem difícil pra minha mãe, que ela tava superando a separação com o meu pai, e foi quando ela me levou ao psiquiatra pela primeira vez. Que eu já problematizo, né, porque você pega uma criança de 13 anos e já começa a medicar, mas na época isso me ajudou.


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Comecei a fazer tratamento com psiquiatra, fazer terapia, tinha uma nutricionista que ia na minha casa toda semana me pesar e eu continuava perdendo peso, perdia 1kg por semana. Quando eu fiquei um pouco mais velho, aos 15 ou 16 anos, que passei a pensar sobre questões de gênero, tipo, “será que esse incômodo que sinto é com meu peso, que quero ser magro, ou se é meio que uma disforia [de gênero]?” Mas nesse processo foram uns 5 anos. Só comecei a me entender como trans com 20 anos. E foi nessa época, na pandemia, no fim de 2020, que acho que deu uma luz na minha cabeça e um dia eu simplesmente virei e disse “acho que é isso”. No dia seguinte já falei “vou começar a tomar hormônio, marcar consulta”, porque na minha cabeça acho que isso era a última coisa que eu tinha esperança. “Vou começar a transição e hormônios, vou fazer a minha mastectomia e se não for isso eu posso desistir.”

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E é meio estranho agora porque vai dar 4 anos que tô me hormonizando, que já fiz a mastectomia, que eu to absorvendo o peso da transição, sabe? O que isso tudo significa. Tô rindo, mas é meio triste. Porque são muitas violências durante a vida, porque quando eu era criança eu era a sapatão da escola, me zoavam por causa disso. E hoje em dia que eu tenho mais passabilidade eu sofro muito mais homofobia porque as pessoas assumem que eu sou gay só porque eu sou afeminado. Mas dói às vezes, outras pessoas trans já me questionaram se eu era trans. Mona, como assim? Dá licença! 

Eu comecei a fazer parte de coletivos de pessoas trans, mas eu percebia muito isso assim, que muitas pessoas transmasculinas que eu convivi tinham essa necessidade de afirmar essa masculinidade. Então mesmo nesse ambiente com a maioria de pessoas transmasculinas - e racializadas também - eu não era igual a elas, sabe? Eu me sentia meio desconfortável. Já cheguei até a trocar ideia com uma amiga travesti, se essa minha ideia de gênero não ficaria mais perto de uma transfeminilidade do que de uma transmasculinidade. Mas acho que é mais uma… eu não diria uma transmasculinidade afeminada, mas sim uma transmasculinidade feminina. “Afeminado” dá essa ideia de performance, de “parecer” gay. Eu não pareço gay. Eu sou feminino. Durante 20 anos da minha vida eu reprimi isso que hoje pra mim é o que me diferencia, é o que me torna eu. Eu gosto de pintar unha, tô nessa fase meio barbie e to comprando várias coisas rosa e é muito gostoso.

Acho que hoje em dia eu tenho feito muito isso, assim, tipo a questão do meu cabelo. Gosto de ter uma cara mais… não sei, meter um chaveado, uma coisa meio masculina, mas aí to com a unha rosa, ou de cropped. Gosto de deixar o bigode mas ao mesmo tempo usar umas roupas mais ditas femininas pra ter esse embate, sabe? E acho que essa questão da transição pra mim é o que tenho lidado mais ultimamente porque sinto que durante uns 10 anos da minha vida, dos 14 até hoje, eu vivia meio congelado. Eu não queria viver, eu não queria fazer nada. E hoje sinto que quero viver muito, quero fazer muitas coisas. Quero dar muitos rolês, sair muito. Se vou ser não-monogâmico, quero pegar várias pessoas. E to quebrando muito a cara por causa disso, tô sofrendo, mas faz parte. É engraçado porque to passando por coisas agora que falo pros meus amigos e eles ficam “nossa, Caio, você não sabia disso? Isso acontecia comigo porque eu tinha 18 anos”.




Pela primeira vez na minha vida eu sinto que eu quero viver. Esse é o maior embate que eu tenho comigo mesmo. É como se a minha transição física, do corpo, não tivesse acompanhado a minha cabeça. Muitas vezes eu me vejo o Caio de 14 anos chorando no quarto, tendo crise de ansiedade, aí tenho que parar e falar “não, eu to fazendo minha segunda faculdade, fazendo estágio, juntando grana pra morar sozinho, eu to fazendo meu corre”. A vida tá acontecendo, tá movimentando, mas é como se eu não tivesse na mesma velocidade que as coisas estão acontecendo. É rápido demais. Eu sinto que to sempre sem bateria. Às vezes sinto que tenho que parar e absorver o que tá acontecendo.

Acho que os momentos que eu tava mais bad da depressão quando eu comecei a transição eu tinha muito esse pensamento “eu não quero morrer com esse corpo, então vou continuar hoje, vou marcar minha mastectomia, pra ir atrás disso porque se chegar na hora e não der certo eu vou morrer com o corpo melhor, pelo menos". Pra mim é meio bizarro, eu me sinto… não sei se é meio perdido, porque eu nunca fui de ter planos, sonhos, nunca consegui. Eu via as pessoas na minha escola, principalmente por essa questão de classe, por eu ter estudado em escola particular, então sempre teve essa questão de “eu vou fazer faculdade, vou ter tal trabalho” e eu não conseguia me imaginar com 20 anos. E agora to com 24 e não sei o que to fazendo! Porque eu não sabia que eu ia estar aqui. Mas é bom, é muito bom. Quando eu quebro a cara, quando me envolvo com as pessoas, terminei um relacionamento agora, mas eu to feliz, porque sinto que eu to aprendendo, eu to vivendo. Coisas que por muito tempo eu ansiei muito. Nossa, o Caio de 14 anos olhando pra mim agora ficaria “caralho, olha que legal o que você tá fazendo!”





Caio
2000

Transmasculino
ele/dele
@caio_caju

*ensaio realizado em junho de 2024 em São Paulo (SP), Brasil

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ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro. 
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