Eu diria que hoje em dia sou um cara trans não binário, mas sinceramente eu sou bem mais pra binário do que pra outra coisa no sentido de expressar o gênero. Tipo, dentro de mim não me vejo como uma pessoa estritamente binária - se eu quiser usar tal coisa, tanto faz, mas isso não muda minha identidade necessariamente. Não me vem à cabeça a feminilidade como identidade e sim como uma experiência. Eu posso performar a feminilidade mas ela não faz parte da minha identidade necessariamente. Pela ideia eu me considero um cara trans e só.


Eu comecei a pensar sobre isso com uns 12 anos e pra mim foi mais primeiro a ideia da sexualidade, porque é uma coisa que é mais veiculada na mídia do que a questão da transexualidade;  então eu comecei a pensar sobre o que é ser bi, o que é ser pan, todas essas questões. Eu lembro que na época existia muito uma propaganda anti-LGBT em vários canais religiosos. Foi um momento bem assustador pra mim, de eu achar que eu tava errado, que isso era coisa da minha cabeça. Neguei por muito tempo essa ideia de que eu, sei lá, podia gostar dos dois.

Quando ainda me colocavam como uma moça eu tive um crushzinho em uma amiga e comecei a achar isso muito estranho... mas eu nunca me senti uma menina lésbica. Eu sempre tive uma experiência de alguém que gosta de quem gostar e pronto. Eu nunca tive uma ideia do tipo “ah, beleza, eu me coloco na comunidade lésbica, ou na comunidade gay”, eu nunca me pus em uma comunidade de maneira sexual. E mais pra frente, com a experiência que eu tive, eu descobri a transexualidade, eu comecei a ver que minha questão não era a sexualidade. Eu realmente queria encontrar a minha identidade. Foi quando comecei a entender sobre isso. Com uns 13, 14 anos eu tinha me declarado gênero fluido pra uns amigos. E aí também começaram as questões das pessoas duvidando tipo “mas você tem certeza?” Foi ali que comecei, de fato, a falar sobre, me pensar nesse ambiente. A partir daí foi mais eu tentar me entender como pessoa trans no geral, tipo “mas o que eu sou? O que eu quero?”

Foi quando comecei a adotar o nome de “Li”. No colégio eu comecei a ser chamado de “Li” e foi muito insano a forma como o colégio, aqui de Niterói, no ensino médio, me encarou a partir daí. Houveram momentos em que as pessoas me chamavam pelo nome morto e tal, mas são situações muito raras em oposição a maior parte da escola que chamava pelo nome que eu tinha escolhido - o que é bem maneiro. Mas antes disso era bem complicado né? Porque eu já era o aluno esquisito por gostar de coisas que a maioria das pessoas popularezinhas da escola não gostam, tipo anime e essas coisas. Eu já era visto como esquisitão, então pra eu me colocar nessa questão de ser uma pessoa trans nesse meio - porque minha mãe também não tava preparada pra isso - foi uma coisa mais pro ensino médio. A partir daí é o que tô vivendo agora, não tem mais muito o que falar sobre isso. Eu acho que a jornada nunca acaba, ela nasceu comigo, eu descobri ela e depois fui seguindo - é basicamente isso. Hoje em dia eu chamo pelo nome de Bernardo, porque eu achava Li muito difícil, as pessoas sempre ficavam perguntando “ah mas é Li com “L” e “I”?” Me cansa um pouco e eu amo conveniência e preferi Bernardo. Perguntei pra minha mãe assim “se eu fosse um homem cis como você me chamaria?” Ela falou “Bernardo”, aí escolhi esse nome porque ela também teria uma parte nessa escolha. 


(fotografia analógica)




Antes do ensino médio não tinha isso de me respeitar pelo nome porque eu não tava me colocando diretamente. Mas nessa escola de Niterói… eu não diria que foi uma questão das pessoas necessariamente me respeitarem de maneira genuína ou não, mas é mais uma questão de lei - o uso de nome social como lei. Então minha mãe que se impôs ali, eu também. No geral, os professores e as pessoas e os funcionários da escola sempre foram muito abertos a minha situação, a quem eu sou e tudo mais. Eu acho que conquistar a confiança das pessoas, sejam elas cis ou não, é um ponto base pra aceitação, pra convivência. Eu sendo um aluno que era simpático, que era legal com eles… Essa proximidade ajudou muito a criar simpatia também, essa ideia de que isso deve ser falado e que isso existe; mas, assim, eu era a única pessoa trans assumida até pelo menos o segundo ano. No terceiro ano apareceu outro menino, mas eu nunca falei diretamente com ele.

Não é como se todos os alunos tivessem sido legais comigo. Já rolou aquela coisa de lista de chamada e meu nome não era retificado ainda, e eu ainda me colocava como Li naquela época, então isso gerava mais perguntas, tipo “foi sua mãe que escolheu esse nome?", "ai, que nome diferente”. Tinham algumas pessoas que se sentiam determinadas a procurar meu nome, a querer saber, porque “ai meu deus, minha curiosidade”, sabe? Teve algumas situações embaraçosas, das meninas da outra sala - quando eu entrei na escola eu tava numa sala, depois mudei pra outra por causa desse incidente. Que tipo, elas começaram a cochichar pra todo mundo meu nome morto. E eu fiquei super desconfortável com isso. Eu tive que me impor, foi bem difícil.

Tinham alguns discursos de professores que eram estranhos. Tinha um que deslegitimava muito a experiência trans, ele não acreditava que existia uma diferença de tratamento, tipo “um cara branco pode morrer da mesma forma que uma pessoa preta de favela. Somos todos iguais”. Ele tinha esse ideal ridículo e quando eu combatia isso todo mundo falava “ai você tá exagerando”. Então não é como se tivesse sido tudo flores e todo mundo me aceitou e era super legal e compreensivo comigo, não. Mas foi a primeira escola onde tive essa experiência de ser abertamente um cara e ser tratado como tal. E se alguém não me tratasse como tal, eu - e não só eu, tinha algumas pessoas que me defenderiam. Essa sensação foi legal de ter colegas de sala que me defenderiam mesmo sendo cis, sendo héteros, que se colocaram nessa situação de respeitar e de ser aliado da situação. Foi mais ou menos assim a experiência… Aí eu me formei, meu nome já tava retificado nessas férias antes da faculdade e quando eu passei na faculdade não tinha mais porque ninguém falar nada. Foi mais ou menos essa experiência na escola.





Eu acho que nunca tive referências em particular. Eu sabia o que era, mas eu só fui ter contato com a comunidade muito depois, já com 17, 18 anos. Foi quando eu comecei a de fato conhecer pessoas que são trans, conhecer ativistas, pessoas da internet também que são trans… Foi depois disso tudo. Referências trans de antes eu só consigo pensar em filmes, tipo “The Rocky Horror Picture Show”, ou “Meninos não choram” - que é super triste, pelo amor de deus! Personagens que mesmo no cinema, não são representados de uma maneira uniforme ou de uma maneira que você vai se identificar necessariamente. Hoje em dia eu acho que tenho mais referências trans do que antes, tenho pessoas da música, atores. Tenho uma visão muito mais ampla porque as pessoas trans estão se colocando na mídia hoje. Tenho a Indya Moore - ela é maravilhosa -, eu tenho a própria Liniker, eu tenho você! Eu tenho… todo mundo do Pose, né? Quer dizer, ter uma série que se coloca na posição, na vivência da mulher trans preta é fantástico. É muito, muito foda ter essa realidade hoje em dia, é uma coisa assim… que minha mãe não sonharia se ela fosse uma mulher trans. Ter isso hoje é uma coisa fantástica. Ter pessoas trans, até menos influencers, tipo o Jonas Maria; o próprio Lau Estranho; o Lucas, do Transdiário. Ter pessoas, mesmo que você não concorde necessariamente com elas, mas você saber que elas existem, que elas tão influenciando, que elas são nomes na internet, é uma coisa incrível. Ouvir música trans é uma coisa incrível. A experiência de conhecer a Liniker foi uma coisa que me ajudou muito. Conhecer a Linn da Quebrada, conhecer todas essas mulheres pretas e trans que tão no ramo e tão fazendo revoluções pelo mundo todo e pela história também, sabe? Então, assim, minha referência é a vida, minha referência são as pessoas em volta de mim, porque tudo pra mim é referenciável, tudo pra mim tem uma natureza referenciável de você poder se nortear por ali - ver em alguém algo que vale a pena e aprender, construir algo com a vivência das outras pessoas, no geral. Meus próprios amigos também são pessoas que uso como referência e todas as pessoas têm vivências lindas e diferentes sobre o que é ser trans.


(fotografia analógica)




Niterói é um lugar que é bem ok com isso; é uma cidade que tem o Ambulatório T, por mais que ele não funcione mais, mas a comunidade LGBT aqui é bem expressiva. Quer dizer, é a cidade que tem uma vereadora trans, né? Que é a [Benny] Briolly - eu votei nela - e  ela ser eleita, ela uma mulher preta trans, então a gente tem representantes políticos trans aqui. Eu acho que por mais que isso não vá acabar com a transfobia - ainda existe transfobia, trans ainda morrem aqui - mas é uma coisa que, pelo menos pela minha vivência, nunca tive muitos problemas - mas a minha vivência é uma vivência privilegiada, uma vivência branca de classe média. Eu não sei dizer como é a experiência de uma pessoa que não esteja nesses privilégios, mas eu acho bem ok, na verdade. Eu não sei se seria melhor do que no Rio, mas acho que aqui é mais tranquilo.





A historicidade da transexualidade é cercada pelas discussões de saúde mental, né? Porque a transexualidade por muito tempo foi vista como uma doença mental, um distúrbio, então essa discussão existe desde sempre. Quando houve essa questão de “ser trans não é ser doente mental”, quando você discute sobre isso, você cria essa rachadura, mas essa rachadura não significa que elas não se relacionam, que a experiência trans não se relaciona com a experiência de uma pessoa que tem problemas emocionais. A experiência trans é árida, é difícil, é uma experiência que vai te oprimir, machucar, vai te fazer sentir sozinho talvez… Depende da vivência, mas na sua maioria é uma experiência que choca, que revoluciona - e todas as revoluções são difíceis de lidar e tem muitos impactos que não são necessariamente agradáveis sempre. Então assim, a saúde mental tá sempre ligada a tudo, mas, principalmente, às experiências que são difíceis, que você precisa lutar constantemente pra existir.

Eu não posso dizer que todas as pessoas trans são depressivas ou ansiosas, mas o que tô dizendo é que a vivência propicia que essas coisas existam, que essas coisas aconteçam, que a gente desenvolva problemas emocionais. Ser trans não te condiciona a ser uma pessoa deprimida, mas a experiência pode ser bastante traumática. Eu sou deprimido antes de trans. A minha saúde mental tá acima da minha identidade no sentido de que a minha saúde mental é o que precisa ser ajudado e curado. E ser trans não é um problema, o problema é como as pessoas respondem a minha existência. Então eu não tenho que fazer nada sobre minha transexualidade, eu não tenho que trabalhar nada porque a minha existência é válida e pronto. Mas a saúde mental é uma coisa que você precisa constantemente estar trabalhando e pensando, então é muito mais cansativo lidar com isso sabendo que você tem que lidar todo dia pra existir. Essa junção entre as duas, a transexualidade e saúde mental, é muito parecida em método, de você todo dia ter que se reafirmar e se colocar. Também tem essa questão de você ser deslegitimado toda hora. Então tem muitas similaridades mas ao mesmo tempo essas coisas já foram muito confundidas; são dois tópicos que se interligam várias vezes durante a história.




Se tinha essa ideia, por exemplo, do Buffalo Bill, que tipo, era um serial killer maluco que se vestia de mulher na hora de fazer os crimes… Não só o Buffalo Bill, mas também voltou com o filme “Psicose”, de Norman Bates ser um cara que tem distúrbios mentais que fazem com que ele, novamente, utilize a roupa da mãe dele. Tipo, porque você precisa necessariamente sempre colocar a transexualidade, ou a performance entre os dois gêneros como um atributo de alguém que é maluco? De alguém que é psicótico ou maníaco? Vai muito além da nossa discussão, é uma coisa histórica, construída há muito tempo, desde sempre. A ideia de você querer sair da casinha do gênero te faz uma pessoa maníaca e perigosa. Tem um documentário, Disclosure, que fala justamente sobre isso, sobre a presença trans no cinema e como isso foi evoluindo conforme o tempo foi passando. O retrato da pessoa trans no cinema, principalmente da mulher trans no cinema, é de uma pessoa maníaca, pedófila, assassina... Foi muito vilanizada a questão de ser trans e essa ligação com a saúde mental foi intrínseca por muito tempo, então acho que é uma discussão muito válida. Ai, também eu não sou PhD, não posso dizer que sei tudo sobre, mas é um tópico bem interessante que tá tudo bem interligado e a gente tem que desmistificar, principalmente pra gente não cair de novo na ideia de que ser trans é uma doença. A gente tá sempre há um ponto de voltar ao passado, de voltar a ser o que era, cometer erros passados que não foram resolvidos por falta de diálogo.

Comédia também é uma coisa assim. Até hoje essa ideia de que a gente tá aqui pra ser piada. Eu acho que isso é bem mais forte pra mulher trans - não que a gente não tenha isso, que a gente não seja visto como “ah, você é só sapatão”, resumir você a tipo “você é só uma menina machinho”, mas não é tão forte quanto o estigma da mulher trans porque parte dessa ideia de que você tá desistindo de uma coisa que é ótima, que é ser homem, para ser uma coisa inferior, que é ser mulher. Então o patriarcado bate muito mais forte na mulher trans por causa disso. É quase uma ofensa pro homem cis, tipo “como assim você quer largar de ser um homem, que é um ser tão brilhoso e lindo e perfeito, pra ser uma mulher, que não é nada?” O homem trans tem uma aceitação maior entre o homem cis por causa disso, porque tem esse imaginário tipo “ah, tudo bem, era uma mulher, decidiu virar homem, nossa, então...” Não que seja sempre essa reação, mas assim, no imaginário do patriarcado é do tipo “você tá querendo evoluir”.

Como também tem a discussão “você é um homem trans porque você quer utilizar dos privilégios de ser um homem”. Isso fode muito a cabeça das pessoas, dos homens trans em geral. Não tem nada a ver com isso, mas é fruto dessa ideia patriarcal. É que nem um pokemonzinho, tá evoluindo pra ser um homem que, na imagem perfeita, seria um homem trans mais próximo do cis possível. Porque não adianta se colocar como homem trans que pra eles é tipo uma evolução, e você continuar, por exemplo, usando vestido. Aí não dá né? porque você não tá performando seu privilégio total. Sendo que isso nunca foi sobre eles mas uma coisa que homem cis ama fazer é colocar o pênis deles no meio do universo - quando não, ninguém liga pro seu pau. É muito óbvio mas ao mesmo tempo é muito difícil porque é muito enraizada essa ideia.



(fotografia analógica)




Ninguém nunca chegou pra mim e falou “você não é trans, você só é maluco”, mas já teve vários discursos nas entrelinhas disso - principalmente com minha mãe no começo da minha transição, de ela achar que eu tô só surtando, sabe? Minha mãe teve uma reação muito agressiva aos meus momentos de saúde mental mais debilitada porque ela não sabia lidar com isso, ela não sabia o que fazer, não entendia o que fazer com aquilo. A reação dela com ser trans também foi agressiva porque ela achou que tava tudo vindo de um lugar só - da saúde mental debilitada. Ela não entendia nem porque eu tinha crise de ansiedade, por exemplo. Eu não sei se ela me desvalidou por eu ter um problema de saúde mental ou só porque ela não queria que aquilo acontecesse. Genuinamente eu já fui muito desvalidado, por exemplo, pelo meu irmão, não só pela saúde mental mas acho que também pela minha idade… Aquela coisa “você é novo, você não sabe o que você tá falando”. Eu não sou desvalidado por ter um problema de saúde mental porque minha própria saúde mental é desvalidada - eu nunca fui considerado, até certo ponto, uma pessoa doente mental, eu só fui ser colocado assim quando eu falei “mãe, eu tenho um problema emocional, entendeu? não é normal e nem saudável as coisas que eu passo”. E nesse momento foi quando ela começou a perceber. Porque assim, você negar que a pessoa tem um problema mental é um assassinato, você tá deixando aquela pessoa à mercê dela mesma e isso é um problema muito sério. Hoje em dia eu tô controlado, mas em 2013, 2015 eu não podia ter ficado sozinho.

É uma coisa que as pessoas só levam a sério quando perdem; por isso é de grande importância falar sobre isso, que sensibilidade não é a mesma coisa que um problema emocional - você pode ser sensível, você pode chorar toda noite, você pode chorar com novela, você pode ficar triste porque o personagem da sua série morreu… beleza, mas não é a mesma coisa que depressão. Tristeza não é depressão e depressão é uma coisa que permanece com você, sabe? Não tem como você necessariamente se curar da depressão, você lida com ela, você lida com aquilo que foi deixado pra você; e isso envolve pós-traumático. Toda essa questão da experiência trans com o pós-traumático também é uma situação muito comum, do abuso ou da manipulação psicológica, todas essas coisas se interligam muito e elas acabam por ser usadas pra desvalidar a experiência. Tipo “você só virou trans porque você teve certo episódio que te traumatizou”, quando não, são coisas separadas, sabe? A desvalidação é exatamente por juntarem isso, juntar a transexualidade com a experiência de uma pessoa que tem problema mental. Não é a mesma coisa, não está na mesma caixinha. Ser trans é uma experiência completamente avulsa da sua saúde mental.





Aceitação não é a mesma coisa que validação, quando a gente entende isso as coisas ficam muito mais leves. A aceitação carrega esse peso de ser uma coisa que “ah, no momento em que eu for aceito eu vou ser validado”, quando não. Vão existir pessoas que vão te aceitar mas que não vão necessariamente validar sua existência, ou que não vão te ver pelo que você é completamente. E tudo bem também. É sobre isso: tudo bem também. Com minha mãe foi uma situação… a questão da saúde mental veio antes. Então, pra minha mãe já era difícil lidar porque ela tem um filho doente, depois veio a questão do ser trans. Às vezes eu sentia que ela pensava “caramba, ele tá inventando tanta coisa pra ser diferente, pra ser difícil de lidar”. A gente carrega esse estigma de “você tá forçando uma barra pra ser difícil, porque além de depressivo você é ansioso, além de ansioso você é trans, além de trans você é pan”. E não é minha culpa isso. Há muitos anos atrás eu tinha muita ira dentro de mim, eu não lidava bem com isso, eu tava sempre brigando. E eu não me arrependo de ter brigado, de ter gritado, mas às vezes a impaciência em ser aceito pra ser validado te leva pra caminhos que não são os mais inteligentes. Você sente esse desespero de ser validado, mas a questão é que você precisa se validar. Enquanto você não se validar, nenhuma aceitação vai satisfazer. 

Quando eu me validei, eu não dependi mais da validação da minha mãe, então pra mim só faltava uma etapa que era ela aceitar. Isso me ajudou muito nessa relação com minha mãe porque teve uma hora que ela não conseguia ver outra coisa senão o Bernardo. Era tão nítido pra ela o que eu era que não tinha como ela escapar - como eu não tinha também como escapar. É um processo demorado e que às vezes dói. Eu acho que faz parte você fazer merda, falar merda e se sentir mal, mas assim, essa é a questão, a prioridade sempre foi eu me validar e eu viver porque senão nada vai valer a pena na experiência. E aí a aceitação foi uma coisa que foi por amor. E a validação foi por sorte, porque eu tive uma mãe que me entendeu, sabe? Mas esperar a validação das pessoas é uma coisa que não vale a pena, você precisa se validar, no momento em que você se valida nada vai te atingir porque você é real e acabou. Não tem como alguém, por exemplo, desvalidar a gravidade, a sua existência é um fato e se você não acredita… uma pena né? Então a validação é uma coisa que tem que surgir de você porque a validação vem da compreensão, do entendimento; se você se entende, a aceitação é o que resta. Foi isso que aconteceu, mas eu sou muito privilegiado, gosto sempre de repetir isso porque é muito fácil eu falar isso em uma posição onde eu não tinha que, por exemplo, me botarem pra fora de casa… Eu tive uma experiência trans muito privilegiada mesmo tendo embates e tendo situações difíceis, mas eu ainda tinha um teto, ainda tinha comida, ainda tinha uma mãe que me sustentava.


(fotografia analógica)
(fotografia analógica)
(fotografia analógica)
(fotografia analógica)



A gente tem que privilegiar a nossa identidade acima de tudo; e quando falo em identidade, é o que você gosta, o que você ouve, o que você é. Teve um amigo uma vez que perguntou assim “cara, então, me coloquei como um cara trans, mas eu ainda gosto de coisas femininas tipo vestido, coisas rosinha, laço… mas aí… eu sou tipo, sei lá, gênero fluido?” Aí eu falei “mas assim, você é um cara? você se vê como um cara?” Aí ele falou “sim”, aí eu “então acabou. (risos) O que você quer que eu diga? Acabou”. Porque eu acho que isso é uma coisa que a gente tem que falar no meio trans, principalmente no meio brasileiro, tipo, você não precisa vestir seu uniforme cis para ser trans, não faz sentido. Seja você, seja quem você é, ame o que você quer e nada disso vai desvalidar sua existência, vai desvalidar quem você é. 

Eu tava na farmácia e aí eu vi os band-aids mais lindos do mundo, da hello kitty, eu falei “por favor, eu quero comprar”, minha mãe falou “ué? mas você não quer ser homem? Como assim? Aí você me confunde” eu fiquei tipo “gente são só um monte de pedaço de plástico rosa com a gata impressa. Quer dizer que isso vai destruir minha história? Nossa, caralho!” Então assim, às vezes as pessoas dão muita importância a objetos inanimados e a gente tem que parar com isso, a gente tem que parar com essa ideia de que tecido e plástico e móvel e cor tem genital, tem identidade de gênero… Não tem, sabe? São só coisas e como Miley Cyrus disse uma vez - acho que foi ela - a gente que tem que dominar as coisas e não as coisas dominarem a gente - pensadora (risos). E é sobre isso, entendeu? É sobre você não ter que se moldar ao que está disponível na sua caixinha. Você que tem que se apresentar e as coisas se moldam pra você, entendeu? Então se você quer comprar aquele vestido, compra aquele vestido; se você quer comprar uma calça, compra a calça; se você quer comprar o band aid da hello kitty, compra o band aid da hello kitty. E tudo bem. Isso não te desvalida e esse discurso tem que ser falado não só pras pessoas trans, pras pessoas cis principalmente. São as pessoas cis que ainda tem mais voz do que a gente, e isso é óbvio. Essa ideia de você excluir o que não é da comunidade é anti produtivo, você precisa das pessoas que estão na dominância pra que a sua luta seja ouvida. Então a gente tem que falar isso pra todo mundo: que a binaridade vai chorar.








Bernardo Sobrinho
2000.

Ilustrador, fotógrafo e estudante de Sociologia.
Sempre se interessou pela autoexpressão por meio da arte.

Masculino
Ele/dele.

Não hormonizado.
@beetledart | @inkmizzle


*ensaio realizado no Rio de Janeiro (RJ) em março de 2021.  
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*Todas as fotografias analógicas do Ser Trans são reveladas pelo parceiro Lab:Lab

Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por urgência.
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*foto revelada por Eloá Souto, digitalizada por Lab:Lab

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