Meu nome é Daniel, eu tenho 31 anos, sou natural de Porto Alegre. Sou mais velho de três irmãos, meus irmãos são gêmeos. Eu me considero uma pessoa transmasculina não-binária. Me mudei pra São Paulo em fevereiro. Minha rotina tá bem aberta nesse momento porque não tô trabalhando todos os dias, então eu tenho muito tempo livre, o que é ao mesmo tempo uma benção e uma maldição. A maioria dos meus amigos ainda estão em Porto Alegre, isso dificulta um pouco as coisas.

Eu estou em um relacionamento com uma pessoa transfeminina desde o fim de 2012. Nós nos descobrimos juntos. Eu não lembro quem foi a primeira pessoa que disse “eu acho que sou uma pessoa não-binária”, mas talvez tenha sido eu, e a resposta foi “eu também”. Isso na minha opinião foi benéfico para as duas partes, mas, ao mesmo tempo, quando uma coisa ruim acontece com um de nós é como se a gente tivesse sofrido o baque em si mesmo. E com tempo suficiente esse tipo de coisa sempre acontece com uma pessoa trans. Nós formalizamos a união estável no início do ano. Eu e a Érica estamos juntos há mais de 10 anos e até onde eu sei somos o casal mais longevo que eu conheço que não é sexagenário ou coisa parecida. 

Nós nos conhecemos em 2009, mas fomos apenas amigos por muitos anos. Foi minha primeira relação de longo prazo, isso eu posso dizer. E também eu diria que a primeira relação importante. Como eu sou não-monogâmico não vai ser a última. Definitivamente foi a primeira, mas não naquele sentido que as pessoas cishetero geralmente fazem sabe, tipo “nós nos conhecemos no ensino médio e não vamos nos separar nem se a gente não der mais certo”. Eu na verdade até digo de brincadeira que é uma benção que a Érica não me conheceu no ensino médio, porque aí nós não íamos gostar um do outro (risos). E eu acho que é recíproco honestamente, porque adolescentes são complicados, principalmente pessoas trans que não se descobrem na adolescência.



Eu estou no espectro autista. Fui diagnosticado no início do ano passado. Eu fui atrás disso um pouquinho depois de começar a minha transição química - ou seja, com hormônios - em 2020, porque coisas que normalmente não me incomodavam passaram a me incomodar. Eu notei que a minha hipersensibilidade a ruídos e texturas aumentou muito desde o início da transição química. Eu não sei ao certo se isso é normal, já ouvi relatos de umas duas ou três pessoas mas acho que isso não é número de fontes suficiente pra saber se isso é uma coisa que acontece com frequência.



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Eu não tenho memórias de longo prazo muito longas, geralmente as que eu tenho ou estão marcadas por um registro fotográfico que podem calcar essas memórias de uma forma melhor, ou alguma outra forma de conteúdo - uma cena de filme, uma música, uma propaganda, alguma coisa assim… E também muitas memórias minhas são simplesmente coisas que outras pessoas me contam que aconteceram. É muito comum uma pessoa falar coisas específicas e eu não fazer ideia do que ela tá falando. Eu sempre tive essa memória de longo prazo mais difícil, quando eu tinha 15 anos não conseguia lembrar de coisas que aconteceram aos 5. E hoje tenho muita dificuldade de lembrar de qualquer coisa que venha antes dos 6 anos.​​​​​​​

Tenho 3 gatos só que eles estão em Porto Alegre. Quando eu vim pra cá a gente não tinha nem endereço fixo, então não pude trazer nenhum dos gatos. Também é muito complicado trazer gatos em um avião porque eles não podem pesar mais que 8 quilos e tem que ficar numa caixa e passar por uma consulta num veterinário antes e tudo mais. Só a questão do peso já impede que eu traga dois. Um dos meus gatos, um dos mais próximos de mim, tem 8 quilos, então ele não poderia ser trazido em um avião na maioria das companhias aéreas. Definitivamente não nas que eu posso viajar porque a Azul não aceita que eu troque o meu nome. Eu não poderia carregar ele na cabine e eu jamais colocaria ele em um porão, principalmente cercado de cachorros. Sempre pensei que o melhor é trazer a mais leve, que é a fêmea, de 4 quilos. Ela se chama Katrina, Meus outros dois gatos se chamam Meme e Sputinik.





Em um dia normal da minha vida eu acordo por volta das 9 da manhã, tomo as minhas medicações geralmente depois de comer alguma coisa, faço alguma tarefa da casa e isso acontece com o spotify tocando algo que pode ser um podcast ou uma música. Eu raramente estou em silêncio dentro de casa quando estou sozinho. Não conheço a cidade tão bem quanto eu gostaria pra alguém que está há 4 meses nela, mas conheço muito melhor do que quando cheguei aqui. E é engraçado porque eu já tinha vindo duas vezes antes de me mudar. A primeira foi acompanhada do meu pai e a segunda vim com amigues.

Meus dois pais são funcionários públicos, então desde criança eu estive cercado de sindicalizados, de pessoas fazendo rodas de samba em associações de funcionários e outras coisas do tipo. Acho que política sempre fez parte da minha vida. Não me envolvo tanto com política hoje, já me envolvi mais. Às vezes eu não tô me sentindo muito bem ou porque o mundo ta ruim ou porque me sinto frustrado porque agora vou ter que achar um novo rumo pra minha vida já que as coisas mudaram muito de uma hora pra outra, mas uma das coisas que mais me faz ter um pouquinho de esperança ou me sentir melhor comigo mesmo é ler algum texto político. Porque às vezes a gente fica um pouco bitolado nas coisas que as pessoas dizem sobre produtividade ou “ah se você não tem uma casa própria antes dos 25 você falhou na vida”, “se você não tem uma conta bancária com mais de 5 mil reais a partir dos 30 você falhou na vida” e eu nao acho isso tão importante mas é difícil lembrar disso sempre que você precisa.

Acho que não ajuda também que eu sou uma pessoa de interesses muito espalhados uns dos outros. Eu gosto muito de ver vídeos de experimentos químicos, mas eu também gosto muito de fotografia, de costura, de literatura do século 19 e de história contemporânea… isso sempre me dificultou inclusive no sentido de achar uma coisa pra estudar por 5 anos ou mais. Geralmente eu não consigo manter um interesse por muito mais que dois ou três anos. É muito difícil manter a motivação e principalmente me sentir seguro em um ambiente por tanto tempo sem pessoas muito próximas. Pelo menos na minha experiência com a universidade eu nunca consegui me aproximar das outras pessoas. Geralmente é mais fácil pra mim achar amigos em ambientes que há outras pessoas trans, não tanto porque eu prefiro estar com elas, às vezes é simplesmente porque pula uma etapa de ter que ficar explicando coisas que deveriam ser básicas, mas não são.




Fui criado principalmente pela minha avó, porque como falei meus pais eram funcionários públicos e às vezes trabalhavam mais de 8 horas por dia, somando o deslocamento. Eles foram as primeiras pessoas nas suas famílias a se formar na faculdade, era um sonho distante pra eles quando eles fizeram isso. A minha vó basicamente cuidava da gente, levava a gente pra escola, fazia almoço, levava a gente pra sair, então ela foi uma pessoa muito próxima a mim até ela adoecer de câncer de mama uns dois anos depois de o meu avô morrer. O câncer em si não era tão avançado, mas acho que [a morte do meu vô] abalou muito o psicológico dela, e psicológico não pode ser abalado quando você está com câncer se não você morre. Tudo isso aconteceu antes de eu me descobrir, então eu não sei como ela reagiria ao me ver hoje. 

Eu comecei a costurar esse ano porque tive a oportunidade de receber aulas sem muito custo e era uma coisa que eu sempre pedia pra minha vó me ensinar e ela nunca teve a oportunidade de fazer, seja porque ela não quis, seja porque ela não pode, não sei ao certo. Isso também me fez pensar muito nela. Honestamente, eu penso nela toda vez que abro o Netflix porque a coisa que a gente mais fazia junto era assistir tv e filmes. Eu penso provavelmente ela ia apreciar muito as coisas que mudaram de 2012 pra cá sobre as nossas vidas… Uma outra coisa que a gente fazia com muita frequência era escutar rádio, o rádio sempre esteve muito ligado na nossa casa. Inclusive quando eu estudava jornalismo essa era a parte que era mais interessante pra mim. Mas é um gosto um pouco inglório em 2024 quando apenas motoristas ouvem rádio hoje em dia. Motoristas e, sei lá, barbeiros. Mas, enfim, é uma coisa relativamente importante na minha experiência formativa, assim como locadoras e lojas de discos. Talvez seja por isso que seja tão difícil pra mim ficar em silêncio em casa quando to sozinho hoje em dia. Em parte muito da minha identidade é formada por coisas como música.

É um momento um pouco engraçado pra eu falar de mim mesmo porque sinto que muita coisa que eu normalmente falaria sobre mim não é exatamente válida agora. Não é que as coisas não existem mais, é só como se elas estivessem em suspenso ou colocadas em dúvida. Por mim mesmo, pelas circunstâncias, pelo fato de que eu tenho tentado aproveitar esse momento em que certas coisas estão em suspenso para tentar coisas novas também. Eu tenho tido oportunidade também de tentar coisas novas. Acho que em São Paulo é mais fácil de conseguir lições práticas ou grupos de fazer coisas juntos do que era em Porto Alegre.  Não entenda mal, Porto Alegre tinha muitas coisas que acho que seria muito bom aqui… Eu sou vegetariano e é muito complicado ir em um restaurante com outras pessoas que não são vegetarianas porque ou o restaurante é vegetariano/vegano ou ele tem só uma opção veg e é talvez de uma coisa que eu não gosto muito. Honestamente também sinto falta de comer xis (risos).

No geral eu tendia a ficar preso nos mesmos lugares e vendo as mesmas pessoas e sinto que isso é basicamente a existência quintessencial do millennium porto alegrense: você vai sempre nos mesmos lugares, nas mesmas festas, falar com as mesmas pessoas, vai num bar que todos os seus ex e os ex dos seus amigos frequentam, você bebe as mesmas cervejas ou mesmos drinks e são sempre as mesmas músicas que tocam. E é muito engraçado porque a minha experiência com esse lugar é que as coisas são muito parecidas, mas é como olhar uma pessoa e pensar “eu acho que eu conheço essa pessoa” mas não é aquela pessoa, é só alguém parecido. E é uma cidade maior, é mais fácil se locomover aqui do que em Porto Alegre - principalmente porque eu não dirijo. A única coisa que é mais complicada é pedalar. Eu estou adiando a compra de uma bicicleta por causa disso. Porto Alegre é uma cidade mais plana e isso pra mim faz muita diferença, porque eu tinha uma bicicleta dos anos 80, que foi da minha mãe, não tinha marcha. Eu não poderia usar essa bicicleta aqui. Eu não subiria a Augusta com essa bicicleta aqui. Acho que sinto falta disso também. 

Sinto um pouco de falta de familiaridade. Mas a principal coisa que sinto de diferente em São Paulo é que o preconceito em Porto Alegre geralmente está vinculado à ideia do provinciano. As pessoas em Porto Alegre tem preconceito em você ser trans ou não-binário - porque as vezes as pessoas não tem preconceito com pessoas trans mas tem com pessoas não-binárias - ou você ser não-monogâmico, ou você gostar de coisas diferentes da maioria das pessoas da sua idade. Tirando talvez na questão do racismo, geralmente são preconceitos porque as pessoas não conhecem as coisas, tipo “de onde eu vim só tinha homem ou mulher”, “de onde eu vim as pessoas tentavam ser mais discretas”. É uma coisa que, tipo, depois de alguns anos, depois de a pessoa se habituar, o preconceito diminui. Na minha experiência, pelo menos. Exceto com coisas um pouco mais complexas dada a realidade brasileira. Mas aqui literalmente tem de tudo e quando a pessoa tem preconceito com alguma coisa, geralmente ela já viu essa coisa na vida, só que ela não gosta. Ela não gosta e quer que aquilo não exista. Nesse sentido acredito ser uma experiência um pouco diferente. Sempre que me perguntam se vejo muita diferença da vida aqui ou na vida lá, eu digo que, honestamente, nem o bairro que eu moro hoje é muito diferente do bairro que eu morava antes. Os estereótipos são literalmente os mesmos.

O sentimento geral da minha vida é que as coisas são muito parecidas mas muito diferentes ao mesmo tempo e isso gera uma espécie de estranhamento e sensação de deslocamento. É como se duas coisas muito importantes tivessem mudado e você não sabe exatamente dizer quais delas, porque a pintura geral parece a mesma, mas eventualmente você vai notar qual é a diferença. Eu só não tive tempo de fazer isso ainda.





Daniel Corrêa da Silva
1993

Transmasculino,
em hormonização desde 2020
ele/dele
@snowhitequeer


*ensaio realizado em maio de 2024 em São Paulo (SP), Brasil

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ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro. 
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