Eu sou Esteve, Esteve Maris, tenho 28 anos, sou um homem negro, trans, oriundo da periferia de Sorocaba, interior de São Paulo, estudei em escola pública, fiz EJA... Eu sou filho de Deise Aparecida Melo, sou neto de Esther Muniz. Sou poeta, sou artista visual, gosto de experimentar com fotografia, com poesia. Me arrisco em edição de vídeo. Acho que isso é um pouquinho do que eu sou.

Eu tava tentando terminar o ensino médio em 2017 pelo EJA, já vinha há anos tentando terminar. Eu tive muito apoio da Andressa, que foi uma pessoa que namorei nessa época, porque ela é uma menina de classe média e ela estudava em escola particular, ela fez pré-vestibular em escola particular também, então ela meio que tava ligada nesse rolê de ENEM, SISU, vaga na universidade, assistência estudantil e tudo mais. Ela falou pra mim "ah, meu, eu queria muito que tu conseguisse entrar na universidade, eu quero fazer tudo que puder pra te ajudar. Acho que é uma oportunidade muito rica pra você, ainda mais pelas suas origens e tudo mais", aí eu falei "meu! Vamo então! Bora, vamos tentar! Eu aceito a ajuda". Ela me deu vários materiais pra eu estudar, deu várias apostilas e muitas coisas pro meu estudo. Fui estudando e em um curto prazo de tempo terminei o ensino médio e já comecei a estudar pro ENEM. Aí a gente foi procurar juntos as universidades pra qual a minha nota dava, a gente procurou assistência estudantil também e a FURG [Universidade Federal de Rio Grande] foi a que mais contemplou no sentido de assistência estudantil porque tinha casa do estudante, auxílio transporte, auxílio alimentação. Aí já deu um ânimo e aí eu tentei aqui e deu certo, vim pra cá - em 2018 isso.

Eu vim só com 200 reais, esses 200 reais foi porque a Rika, que é minha amiga, que é uma pessoa trans também - eu vou colocar ela no feminino, mas ela tá no processo dela de entender qual o gênero dela. É uma pessoa que me apoia e vem me apoiando há muito tempo. Eu não tinha dinheiro pra vir. Eu não tinha dinheiro nem pra passagem de avião, foi a mãe da minha parceira da época que pagou pra eu vir pra cá. Quando eu consegui vir pra cá, a Rika me deu esses 200 reais e foi o dinheiro que eu fiquei, que eu tinha. Eu não tinha de onde tirar mais, eu só tinha alimentação, transporte e nem tinha moradia porque tinha que passar pelo edital ainda. Então, eu consegui o alojamento. A Rika mandou no grupo que tinha alguém vindo pra Rio Grande que precisava de alojamento, falou com a Muna e ela me passou o contato da Raiane e ela me conseguiu um alojamento na casa dela. Fiquei alojado por uns dois meses e logo consegui um quarto. Consegui um quarto naquelas... Era a vaga dessa minha amiga Raiane, só que ela falou "fica nesse quarto e a gente vai dar um jeito pra você não sair dele". Aí, beleza, quando saiu o resultado de se a galera tinha sido deferida ou indeferida, a PRAE [Pró Reitoria de Assuntos Estudantis] me indeferiu, falou que tipo... Que não foi suficiente minha humilhação. A minha história, a minha condição social e financeira não foi suficiente - acontece, né? Só que eu cheguei na PRAE e falei "olha, eu não vou embora, porque eu não tenho como ir. Minha mãe fez um empréstimo pra que eu viesse pra cá" - porque assim, a mãe da minha namorada pagou a primeira passagem, a segunda foi a minha mãe, porque eu vim, fiz a matrícula, tive que voltar e depois vir pra cá de volta. Aí minha mãe pagou a segunda passagem, ela fez um empréstimo que ela tá pagando até hoje. Faz quatro anos que eu tô aqui, então pensa: quanto foi esse empréstimo? A passagem de avião tava mais de mil pila nessa época. Aí eu falei pra PRAE que eu não teria como ir embora, que era impossível, e falei assim "e eu não vou embora porque é a única oportunidade da minha vida. É a grande chance que eu tenho de ascender em algum aspecto socialmente. Eu não vou soltar essa oportunidade de ficar na universidade. Vocês tem um programa de assistência, eu preciso ser assistido, eu tenho vulnerabilidade socioeconômica, eu preciso dessa vaga! Eu não vou sair! Se vocês mandarem a Polícia Federal pra me tirar da casa, eu vou pegar uma barraca e me instalar na frente da PRAE, entendeu? Vocês vão ter que ficar me tirando de todos os espaços, porque eu não vou embora. Eu tenho uma vaga, eu tenho uma vaga na instituição e eu mereço essa vaga". Aí a PRAE, pela minha insistência em permanecer, falou "tá bom, vai ser deferido então." Depois de uma grande humilhação, de um grande processo, eu consegui a vaga e tô na casa faz quase 4 anos.



Eu entrei pelo curso de Pedagogia - meus planos era graduar em Pedagogia e depois fazer pós em Psicopedagogia, que aí eu poderia trabalhar com clínica também, pra que a sala de aula não fosse minha única possibilidade. Entrei na Pedagogia, fiz o primeiro semestre, [me sentindo todo] grandão! Rodei só em uma cadeira, coisa que raramente acontece, porque, geralmente, a galera que chega roda em tudo. Aí comecei a conhecer o prédio das Artes, a galera das Artes, comecei a andar com eles... Aí me dei a chance de mudar de curso. Tem um processo de vagas ociosas, vagas que sobram das evasões e desistências, elas podem ser utilizadas por outras pessoas. Aí eu fiz o PSVO [Processo Seletivo de Vagas Ociosas] e não deu certo. Continuei, fiz mais um semestre de Pedagogia. Fiz o PCVO de novo e no semestre seguinte eu consegui, passei pras Artes. Consegui aproveitar algumas cadeiras, me ajudou bastante. 

No primeiro mês eu conheci uma menina chamada Violet Anzine Baudelaire, ela era do quarto 101 da casa onde eu tava, e ela tava procurando um colega de quarto porque o colega de quarto dela ia morar no Cassino com a Raiane. A gente se gostava, tinha altos papos, e ela falou "se você quiser vir morar comigo, eu vou ficar muito feliz." Eu fui morar com ela e conheci a Jamile - ela é das Letras e a Violet é da Arqueologia. A Jamile falou que ia ter umas bolsas na DAC [Diretoria de Arte e Cultura] e que ela achava que eu... Antes de sair de Sorocaba, eu tinha participado de uma peça de teatro, tinha apresentado com um grupo... Aí ela falou que poderia ser que eu me interessasse pela bolsa porque era de Teatro. Eu fui, fiz a entrevista e foi super massa. No mesmo dia - eu tava há um mês aqui com 200 reais só - a Débora, que é a Diretora da DAC, me adorou, gostou muito da minha história e me chamou pra ser bolsista deles. Eu consegui minha bolsa já no primeiro mês, fiquei muito feliz. Já tive várias bolsas dentro da DAC; até hoje a DAC me abraça muito. Tô falando dessa bolsa porque ela foi uma maneira de eu permanecer aqui, porque minha mãe tava recebendo 400 reais só, por conta dos empréstimos. Minha mãe me ajudou a não precisar de ninguém da minha família pra permanecer aqui, porque eu conseguiria custear pelo menos o básico. O básico que é o sabão em pó, o papel higiênico, a escova de dente, pasta de dente, shampoo, produto de limpeza, minhas cuecas que de tempos em tempos precisam ser trocadas (risos). Sim, né? Elas não duram pra sempre! (risos) Então essa bolsa foi uma forma de eu permanecer e eu agradeço muito a Débora, a Jamile, a Violet - foram pessoas fundamentais pra que eu pudesse permanecer aqui na FURG. Esse foi meu início aqui na FURG. Depois do teatro, eu tive outras bolsas; tive de promotor de cultura, já organizei um livro, já promovi saraus... A gente também produzia fanzines institucionais. Enfim, muitas coisas. Já expus, participei de duas exposições: uma com vídeo na Fresta e uma com umas fotografias no Foto Fluxo; que é um rolê que eu também tô participando esse ano com o "Corpas Invisíveis" que é um projeto com fotografia.

[Fotografias Analógicas - Reveladas e digitalizadas por Lab:Lab]

Antes de 2016, eu tive algumas crises. Eu tive quadros agudos psicológicos, eu tive momentos muito frágeis da minha saúde mental, eu fui internado. Lá dentro... Eu tava confuso ainda, mas tinham algumas coisas que tavam muito certas pra mim. Eu não queria mais sustentar uma identidade feminina, eu sabia que eu não queria me afirmar como uma mulher. Eu não me via como uma mulher. Eu queria outros marcadores no meu corpo, eu queria experimentar outras coisas com meu corpo. Lógico que eu não tinha essa consciência de que meu corpo seria lido de uma forma diferente e que minha identidade mudaria com a forma que as pessoas me reconheceriam, mas, nessa época, eu já tava "meu, eu não sou uma mulher. Não sou uma mulher." Aí eu falei pra minha mãe, que é a pessoa que eu mais confio, ela sempre sabe de tudo. Comecei a questionar minha identidade e fui lá e contei pra minha mãe, ela foi um pouco transfóbica, ela falou assim "olha, você é minha menininha, você é o meu nenê, você é minha princesinha, meu chocolatinho", ela falou essas palavras, eu to repetindo ipsis literi, exatamente como ela falou. Tipo "você é o meu bombonzinho, minha princesinha, minha menina. Você não é um homem, esquece isso! Esse momento é pra você se cuidar, não vai pensar nisso agora", e eu confio muito na minha mãe, eu tenho uma relação muito louca com ela, eu falei "ai meu... Droga, minha mãe não me aceita". Fiquei com isso, mas já sentindo que tudo ia mudar na minha identidade.

Depois disso, eu comecei a namorar a Andressa, me afirmando enquanto uma mulher cis. Só que aí o ex namorado dela, começou a se afirmar um homem trans, eu já fiquei tipo "uuuuh, uhum! Que doidera essa vida", mas tá, vim pra universidade, tudo mais, várias vivências... No primeiro semestre eu ainda não me afirmava enquanto homem trans, mas no segundo isso já começou a se construir. Comecei a fazer outros questionamentos, comecei a ter outros olhares pra mim mesmo, pra minha identidade, pras questões de identidade de gênero. Entre os meus amigos, primeiro eu passei pela não binariedade, falei que queria que usassem pronomes neutros. Eu usava o nome Estrela, aí foi indo, foi se construindo. Depois eu terminei meu relacionamento no final de 2018. Eu vim pra FURG e ela foi pra UFMG, a gente tava muito longe e teve também esse rolê de eu me afirmar um homem trans. A identidade dela era de uma lésbica então talvez ela não quisesse se relacionar com um cara, porque, enfim... Ela também é feminista. E enfim, tem aquela coisa de "morte ao falo", "homem não", e tudo mais. Foi uma das coisas que eu tive que pensar bastante. Foi no final de 2018 que eu comecei a me afirmar enquanto um homem trans e comecei o processo de transição; que já tinha começado lá dentro da clínica com minha mãe que não tinha aceitado. Então, eu não entro na universidade me afirmando um homem trans; dentro da universidade, a partir de diálogos com pessoas trans - conheci a Lu, a Gabi, a Violet, o Shay, conheci várias outras pessoas trans -, nesses diálogos eu fui entendendo que era possível eu afirmar uma outra identidade, que não a feminina. 


Eu sofri um pouco com algumas situações transfóbicas. Na pedagogia, todo semestre a gente faz uma disciplina de inserção, que é onde a gente começa a acompanhar a sala de aula, e eu tava no começo da minha transição, eu não sabia como... Eu não tinha barba, eu não tinha a voz grossa - que são marcadores muito fortes de gênero, né? E teve uma criança que me falou assim "você é homem ou mulher?" do nada, a gente tava na sala de aula e ela virou pra mim e falou isso, aí eu falei o meu nome, que ela poderia me chamar pelo meu nome. Na época falei "Meu nome é Estela, se você quiser me chamar pelo meu nome é esse", eu não falei se eu era homem ou mulher, eu falei aquilo. Aí eu fui procurar minha professora e ela foi super transfóbica comigo, ela não me atendeu, não me deu um acolhimento nesse momento. Eu falei pra ela que eu tava tendo umas crises de ansiedade, que eu não tava sabendo lidar nessas primeiras inserções e, nesse sentido, ela negou apoio pra eu lidar com a sala de aula.

Essas pessoas que representam a instituição já foram violentas comigo, eu já sofri com isso. Mas tiveram outras pessoas, que também representam a instituição, que me acolheram, que me acolhem, me dão colo, me dão carinho, me dão afeto, me dão oportunidade, me dão acesso, garantem que eu tenha um recurso financeiro pra permanecer aqui. Então existem pessoas que respeitam meu tempo, que são compreensivas com meu tempo, com meus processos de aprendizado... Também teve uma pessoa muito importante pra mim nesse período, que foi a Regininha, que é vereadora aqui de Rio Grande. É a primeira mulher trans vereadora aqui de Rio Grande. Foi muito doido, minha amiga tava falando ontem que teve um dia que eu subi na mesa no meio da aula e falei "gente! Eu não sou uma mulher, eu sou um homem! Eu sou um homem!" Eu fui em cima da cadeira, gritando que era um homem! E a Regininha tava na sala. Foi muito bacana quando eu entrei em sala de aula e tava a Regininha ali no fundo. Foi muito rápido nosso contato, nossa conexão. A gente se aproximou muito rápido, todo dia comia juntos, sentava juntos, falava besteira juntos, e, nossa, ela foi a pessoa que comprou minha primeira T. A minha primeira dose de testosterona quem comprou foi ela. Eu tava sem dinheiro nessa época e ela me deu o dinheiro; ela foi super querida.


Ela sempre me provocava: "a gente precisa de um grupo, a gente precisa fazer um grupo LGBT aqui na FURG, a gente precisa se organizar aqui dentro." Ela sempre muito inspiradora, sempre provocando a gente a se mobilizar, a pensar nossas questões, reivindicar, buscar nossos direitos e tudo mais. Ela foi, realmente, uma pessoa incrível pra mim. Foi uma das pessoas que mais me acolheu, bá, ela foi uma pessoa... Assim como a Violet, assim como a Luz... Foi uma pessoa muito importante pra esse processo de transição; era onde eu conseguia ter minhas conversas, ter outras referências, porque ela é uma mulher trans que era garota de programa, trabalhadora do sexo, e hoje ela é vereadora. Na época ela ainda não tinha conseguido o cargo dela, mas ela tava na luta. Ela foi muito potente pra mim, pro meu processo de transição, e ela falou que eu não precisava ser igual a ninguém, ela falou "você tem que ser você, não tente buscar se igualar a ninguém. Seja você mesmo no seu processo." Ela foi muito importante. 




[Outra pessoa importante também foi a] Chocante. A Chocante era… Bá... Era uma luz, uma estrela, era... Era amor. A Chocante era potência, resistência. A Chocante era acolhimento, paciência, compreensão. Chocante era zelo. Era muita coisa. É muito doido, faz 11 anos já e as memórias tão cada vez mais longe. Tenho pouca memória dela, mas, enfim, era uma pessoa muito incrível. Eu não tenho muitas palavras, porque não é palavra que vai expressar o que eu pude acompanhar da pessoa que ela era. Era uma pessoa realmente generosa, uma pessoa que fazia qualquer um que tava do lado dela se sentir vivo, porque ela chacoalhava você, tipo "vem pra realidade". Era bom humor, era, nossa! Era demais. Saudade, muita saudade dela. [Gritando] Se ela tivesse viva! Cara, ia ser tudo! Ela tá viva em mim, ela tá viva em mim. É isso, a vida é uma ideia efêmera também, a gente não sabe quando a gente vai partir; a gente sabe que vai uma hora, essa é a certeza que a gente tem.


Eu tinha 17 anos quando ela [Chocante] faleceu, eu conheci ela com 15. Eu era totalmente cisnormativo, eu não pensava em nada das questões do meu corpo. Eu ainda não tinha descoberto minha sexualidade; já tinha ficado com algumas mulheres, mas ninguém sabia, eu escondia. Eu não me afirmava enquanto uma lésbica ainda, e ela ficava assim "sapatinha, sandalinha", ela brincava comigo. Ela brincava e minha mãe não ficava "para com isso, minha filha não é", não, minha mãe aceitava - tinha esse rolê da minha mãe aceitar melhor, porque [Chocante] era uma mentora espiritual, uma pessoa que a gente respeita. Foi muito louco, eu me apaixonei quando eu conheci ela, fiquei encantado, encantado! Meu deus! Era uma pessoa linda demais, poderosa! Aquela sala onde ela morava, rodeada de vários filhos de santo... Sei lá, ela me fazia sentir muito seguro, eu me sentia em casa, sentia que eu podia ser eu mesmo, sabe? Foi ela quem começou a me provocar a pensar sobre essas questões e aceitar quem eu era, assumir quem eu era. Eu ficava com as meninas mas fazia a louca né? Tipo, "não, eu não sou! Imagina, eu não. Qualquer um pode ser, menos eu." E, bom, eu não saia muito nessa época, eu era bem caseiro, eu era um sacerdote bem empenhado, bem dedicado, e eu ficava mais na casa dela, eu morei com ela um tempo, a gente mal saia de lá, a gente gostava de ficar lá. A gente tinha tudo também: video-game, televisão de plasma, todos os cds dela - ela tinha muitos cds! Várias cantoras americanas que ela performava na noite sorocabana, nas boates LGBT. Porque ela era a Chocante também né? Além de Ialorixá. 


Quem conheceu ela foi meu irmão, o David, ele que levou a gente pra conhecer ela; e foi um achado na minha vida. Teve esse período de eu morar com ela e logo em seguida, no final de 2009, no portão da casa da minha mãe de sangue, onde a gente tava passando o natal, ela teve uma dor de cabeça muito forte. A gente terminou a janta lá e foi embora de carro, ela chegou com muita dor de cabeça e teve uma conversa muito sincera com a gente - tava eu, o Lucas, o Sapinho e o Renan - ela sentou, conversou, falou sobre como a gente deveria ser mais honestos com nós mesmos, que a gente precisava saber que ela não seria para sempre, que a gente precisava achar nosso caminho. Depois daquilo ela começou a convulsionar muito, no dia seguinte ela desmaiou no banheiro... Depois disso eu comecei a não dormir mais, eu morava na casa e eu não dormia porque a gente ficava revezando quem ficava no quarto com ela pra ver como ela tava. Foram cinco dias convulsionando, ia no médico e não sabia o que era - fez todos os exames e não sabia o que era. No quinto dia, no dia 9 de janeiro, ela faleceu. Aí descobriram que era um tumor no cérebro quando fizeram a autópsia, que ele tava bem grande, tinha tomado boa parte do cérebro dela, e foi isso. Eu perdi...Foi um momento muito ruim da minha vida. Eu passei anos... Eu tinha 17 e até os meus 21, 22 anos, eu... Bá... Muito louco, eu tava muito perdido. Me perdi muito. Eu fui pra outro pai de santo, tive meus conflitos nessa casa e decidi sair da casa, porque eu namorei uma menina e a mãe dela descobriu e não queria que a gente namorasse. A mãe dela começou a impedir que a gente se visse e tudo mais, e, sei lá, eu me distanciei da religião, de mim; me perdi. Comecei a ter um grande consumo de drogas, comecei a me esvaziar pelas esquinas da cidade - foi um momento bem delicado, eu fiquei muito mal depois da morte dela. Eu não me reconheci por muito tempo, muito mesmo. Foi uma perda muito grande, muito grande mesmo, de verdade. Ela era uma pessoa incrível, uma pessoa foda. Uma pessoa que tinha estado em situação de rua, comeu capim quando tava com fome, enfim, acho que ela faleceu sendo muito amada e muito respeitada; a gente tava junto com ela, né? Os filhos dela junto com ela. O nome dela era Tainara, ela morreu com 37 anos, eu acho. (silêncio) 

[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]



Eu sempre me odiei. Sempre. Não teve um momento da minha adolescência em que eu me amava, não teve. Principalmente porque tudo que eu usava de elementos pra compor esse corpo, não era pra mim. Eu não escolhia uma calça boca de sino porque eu gostava, eu escolhia uma calça boca de sino porque tava na moda e porque os meus amigos achavam bonito. Eu usava o cabelo com relaxamento porque a minha mãe dizia que daquele jeito ficaria melhor. Eu raspava os meus pelos não porque eu achava que sem pelos ficava mais bonito, era porque na publicidade, nos filmes, na mídia - até hoje em dia é uma coisa que os homens cis estão aderindo bastante, esse corpo depilado - mostrava que o corpo bonito é o corpo que tá liso, né? Eu passava maquiagem - blush, pó, base - não porque eu achava que eu ficava bonito com aquilo, mas porque a sociedade dizia que mulheres que se maquiam ficam, aparentemente, mais apresentáveis e mais bonitas. Então, nunca foi eu escolhendo o que eu queria pro meu corpo. Nesse processo de entrar na clínica e depois sair, eu comecei a... Ah, também tem isso, do meio que eu tava também, eu comecei a colar com muitos mais artistas, depois de 2014, e então eu comecei a repensar o rolê do meu corpo, comecei a deixar meus pelos crescerem... Ah, eu tive altas piras já: teve um momento em que eu não queria tomar banho com sabonete, não queria usar shampoo (risos). Foi tudo um processo pra que eu entendesse, eu queria saber o que eu queria pro meu corpo, o que eu gostava, o que eu queria pra minha vida.

Desde 2014 eu venho nesse processo de autoconhecimento, buscando me conhecer, saber o que eu gosto, o que eu não gosto. Hoje em dia, então, se eu nunca comi alguma comida e dizem que ela não é boa, hoje em dia eu vou lá e experimento. Isso em respeito ao meu corpo, tipo, eu não gostava de saia, mas porque saia era uma parte do vestuário que era dita feminina, mas aí depois que eu me afirmei trans, essa relação com a saia começou a ficar tri gostosa, entendeu? Não tinha mais aquela coisa impositiva de que tinha que usar saia, não! Era porque eu queria usar saia agora. O rolê da mastectomia... Eu não tenho vontade de fazer mastectomia porque eu gosto dos meus seios, eu acho tão… meu, é meu seio, tá ligado? Eles me fazem sentir prazer, eles são meus! Eu não pretendo. Poderia ser esteticamente, talvez, quem sabe? Tem gente que gosta da estética da cirurgia, da cicatriz. Eu tinha um problema muito grande com a minha genitália porque ela era avantajada - como se agora ela não fosse, né? (risos) - e eu evitava transar com as pessoas porque eu tinha medo delas olharem a minha genitália e isso dificultava muito as minhas relações porque eu era uma pessoa insegura, medrosa, uma pessoa que tinha medo de se abrir, literalmente (risos). Hoje essa relação com meu corpo vem mudando, eu to aceitando meu corpo, eu tô aceitando que eu nasci assim; eu nasci com seios. Meus seios não são grandes, mas eu usava bojo porque eu queria que os homens e as mulheres desejassem os meus seios, porque assim eles iam se interessar por mim, entendeu? Essa era uma forma deles se interessarem por mim. Mano! Horrível, eu me sentia muito mal com bojo. Eu usei bojo até na bunda - pode rir! (risos). Era horrível, cara, muito ruim. Eu não me amava. Hoje em dia eu olho no espelho e gosto do que eu vejo. A minha genitália, eu olho e nossa, eu dou risos com ela, tipo "fofinha, maravilhosa, você é incrível! Maravilhosinha, tudo na minha vida, me dá muito prazer". Sei lá, eu tenho buscado realmente aceitar meu corpo e, também, ter essa busca de experimentar com o meu corpo. Por exemplo: a testosterona foi um experimento, falei "será que vai dar certo? Vamos ver se vai dar certo." Eu não sabia, não tinha algo que pudesse me dizer se eu ia gostar ou não dos resultados. Eu tinha uma fissura por barba. Eu não fico só com mulheres, eu fico com homens, mulheres, não binários, pessoas, né? E eu não gostava de beijar pessoas com barba, mas eu gostava da barba, eu queria saber como ela ficava em mim e tá ficando bonito, até. Eu acho que essa questão da relação com o corpo é um movimento muito mesmo de conseguir se enxergar - a gente não consegue se enxergar, se olhar, porque a gente olha e enxerga a nossa verdade e, muitas vezes, a gente não tá preparado pra enfrentar nossa verdade porque o mundo diz pra gente que existem padrões a serem seguidos: o belo tem a cintura fina, a costa larga, a bunda grande, o pau grande, o maxilar quadrado; o padrão diz que tem que ser magro. Então, eu acho que a busca pelo amor próprio tem sido muito satisfatória pra mim porque eu tenho conseguido me encontrar bastante com meu corpo - isso tem sido maravilhoso pra mim.  





Queria falar uma coisa, queria falar que foi muito importante pra mim, nesses últimos tempos, nesse processo de transição, esse contato com o [filme documentário] Intransitivo e com o Ser Trans, vocês - tanto você, Gabz, quanto a galera do Intransitivo - me fizeram ter mais referências trans; agora eu tenho outras histórias trans pra contar. Isso, eu acho, é extremamente fundamental pra que eu entenda que eu não tô sozinho, eu acho isso muito importante, a troca que é acompanhada de afeto, de acolhimento, de respeito; vocês se acolhem, vocês acolhem com respeito, com carinho, isso é muito importante porque a gente tá nessa busca pelos iguais, nessa busca por pessoas que pensem como a gente, que falem como a gente, que se vistam como a gente. A gente deixa de reconhecer o outro, e, nesse processo do Intransitivo, a gente viu quanta diversidade existe, como a gente é múltiplo, diverso. Não são várias pessoas trans com histórias muito parecidas, são histórias totalmente diferentes uma da outra; isso me ajuda no exercício da alteridade, de reconhecer a diferença e reconhecer ela como algo importante. Vocês me ajudaram com isso, a exercitar o rolê da alteridade em que o outro, o que ele é, por ser, já é muito importante, entendeu? E isso é uma coisa da qual a gente tem se afastado cada vez mais, porque a gente tá sempre buscando - é uma questão filosófica, também, essa busca do "Ser" né? - pessoas que não nos deixem desconfortáveis; não que a gente tenha que aceitar coisas que nos deixem desconfortáveis, mas coisas que nos movam e a gente tá buscando sempre estar no mesmo lugar. Eu acho que é isso: vocês me ajudaram a me movimentar, a me deslocar, me deslocaram pra conseguir enxergar outras vivências, outras realidades. Isso é muito importante pra que eu consiga continuar a minha trajetória entendendo e reconhecendo que somos diversos, múltiplos, ninguém é igual ao outro, nenhuma história vai ser igual a outra. A gente pode ter muitas coisas com as quais a gente se identifica, mas a diversidade tá aí, ela é real, ela é presente. Eu agradeço muito por tudo isso, é muito importante pra mim e acho que é importante não só pra mim, mas pra muitas pessoas trans e também pra pessoas cis que são parceiras. Esse movimento que vocês fazem com arte é muito importante, de verdade.



[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]






Esteve Maris
1993
Filho de Deise, neto de Esther, salgado como as memórias do mar, efêmero como tudo que aqui esta na terra, transforma-se com o quebrar de ondas. Honrado como seus ancestrais, carrega nos olhos a força da flecha que atravessa corpos.

Homem trans
Ele/dele
2 anos, 7 meses de hormonização
@_efemeroo


*ensaio realizado em Rio Grande (RS) em novembro de 2021
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Esse projeto foi idealizado por Gabz, trans não-binário e multiartista. Ser Trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemens, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. 
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

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Autorretrato de Gabz  revelado por Eloá Souto, digitalizado por Lab:Lab

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