Quando eu vim pra cá, há 3 anos, eu já me entendia enquanto trans. Mas tipo o lugar que eu tava antes não possibilitava que eu pudesse exercer plenamente a minha identidade de gênero. Foi um dos motivos também do porque eu vim para Porto Alegre. Além de estudar, tipo ter um acompanhamento adequado com profissionais, endocrinologista, psicóloga, essas coisas. Porque em Santa Cruz... é uma cidade muito conservadora, uma cidade muito racista, uma cidade muito transfóbica, uma cidade extremamente difícil quando tu é uma minoria.

Apesar de ser um pouco maior, ter faculdade, é uma cidade bem conservadora. Tinha núcleos nazistas lá mais ou menos em 1930/40. Então é uma cidade que tem esse histórico preconceituoso bem forte, bem enraizado... Colonização alemã, então tem bastante essa coisa. 

Quando eu tinha 15 anos eu apanhei da polícia, mas por terem uma leitura minha enquanto uma mulher sapatão. Já tive alguns conflitos com homem cis também, e na escola principalmente. Tipo, as pessoas, não os colegas, mas professor, diretor, essas coisas assim... Tipo, perseguição rolava real. Com 13 anos eu lembro de ter que às 7:30 da manhã estar na sala da diretoria porque eu beijava meninas, sabe. Então foi bem difícil.
















Foi um período bem difícil assim no início porque quando eu vim para cá eu tinha saído do ensino médio e eu tava entrando no cursinho, com 4 meses de hormonização e já tendo o nome social e tal, mas eu não tinha uma passabilidade ainda. Então tipo no cursinho as pessoas me chamavam de "o trans". As pessoas não me chamavam pelo meu nome. E professores com falas transfóbicas, sabe, não diretamente para mim, mas tipo um professor no palco com um microfone usando termos pejorativos e tal... Então foi um momento bem difícil porque eu tava sem a minha rede de apoio, que eram os meus amigos de Santa Cruz. Eu tava longe da minha mãe, que eu tinha morado até então com ela, e [agora] eu tava morando com meu pai, o que era uma coisa nova. Então foi um momento de bastante transição e foi um momento de solidão também. Não ter a minha rede de apoio, por as pessoas que eu tava vendo no cursinho também.... eu tinha alguns amigos que tipo, claro, me validavam assim, mas a maior parte das pessoas tipo me desvalidava e também... mexia comigo assim sabe. Mas em geral, ai, pra quem apanhou da polícia o que que é um boyzinho falar alguma coisa sabe, por favor. Mas foi um momento difícil.















Quando eu fui pra faculdade as coisas começaram a melhorar porque também eu já tinha um ano de hormonização, já tinha uma certa passabilidade. Eu cheguei na faculdade, as pessoas não perceberam diretamente que eu era trans. A não ser tipo o meu nome na chamada errado, e todas essas coisas que foram burocráticas, que levaram uns dois ou três meses para serem resolvidas dentro da faculdade. E foi muito louco porque demorou até que a faculdade fizesse algo. Eu não pude me apresentar nos primeiros meses de aula. Foi louco porque eu estava ocupando um lugar na faculdade federal sendo uma pessoa trans, a única pessoa trans que entrou naquele ano naquele curso, e o meu nome não tava ali. Então a minha conquista tava sendo apagada naquele momento. Meu nome não tava ali, eu não podia me apresentar como todo mundo tava fazendo. Porque tava o meu nome errado na chamada. E aí eu não respondia à chamada, esperava aula acabar e ia lá para o professor e falava 'olha só, eu sou trans, a faculdade botou meu nome errado, peço que acrescente o outro nome, porque eu não vou responder por esse, porque eu não vou me colocar numa situação de violência de novo'. Mas foram longos três meses até que alguém fizesse alguma coisa. E mesmo assim, quando eles atualizaram a chamada, os professores não pegaram uma chamada atualizada. Eles só colocaram numa ordem alfabética e o meu nome tava lá no meio, muito aleatório. Então foi bem chato, mas em relação às pessoas da faculdade, já eram pessoas muito mais abertas né. Eu tava no meio da arte, onde as questões de sexualidade e gênero são um pouco mais discutidas do que em outras áreas, então a faculdade pelo menos me abriu para mais possibilidades.




No cursinho eu conheci pessoas, mas não me identificava com elas. E aí na faculdade eu comecei a conhecer outras pessoas, e aí conheci pessoas trans que já estavam lá também, principalmente mulheres trans. Porque pessoas trans masculinas no meio da arte ainda é bem difícil assim a gente encontrar. Mas na faculdade as coisas melhoraram um pouco. Consegui encontrar uma rede de apoio. Pessoas também estavam debatendo - mesmo que fossem pessoas cis - mas que estavam debatendo sobre gênero sabe.












Eu acho que as transmasculinidades estão sendo mais vistas agora. Porque sei lá, uns 5 anos atrás, um pouco mais talvez, não se falava sobre a existência de homens trans ou pessoas transmasculinas. E quando a gente também tá falando de um meio acadêmico, claro que há mais pessoas trans que trabalham com arte, mas quantas delas estão numa academia de arte, sabe? São pessoas que trabalham com arte como autônomas, auto-didatas. As pessoas transmasculinas [estarem] no meio acadêmico é muito difícil. Acho que um dado é que 1 ou 2% das pessoas trans que estão na faculdade. Não é que não haja pessoas. Acho que não há pessoas no mercado formal de trabalho de arte ou em galerias de arte, museus, academia.






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Para mim, [ter] me descoberto enquanto trans se dá bastante na infância também. Porque os meus pais são pessoas bem abertas e eles sempre me possibilitaram, tipo, eu me vestir como eu quisesse, agir como eu quisesse, gostar do que eu quisesse. Então eu tinha essa liberdade de expressão quando criança. Mas óbvio que a partir do começo da adolescência as coisas começam a ser empurradas de uma forma não tão agradável. E para mim foi uma libertação ter me descoberto lésbica primeiro porque eu entendi que eu não precisava corresponder às expectativas que as pessoas tinham de mim, de gênero. Então foi um momento de muito empoderamento. Foi muito importante para mim ter passado por isso, mas chegou o momento que isso só não era mais suficiente, que eu passei olhar para os homens de uma forma diferente. E como eu sempre me relacionei com mulheres, eu sabia que eu não tava olhando para eles de uma forma de desejo, de atração. Eu tava olhando com uma certa inveja, com certo desejo de ter aquilo, de ser aquilo. E como eu já tinha feito terapia na infância também - quando eu entrei na puberdade rolou um negócio muito louco na minha cabeça. E aí eu fiquei uma pessoa muito depressiva. E aí eu fui para terapia e na terapia ela começou a perceber que eu tinha essas inconformidades com gênero. Eu lembro dela perguntar como eu me sentia e tal e depois de eu falar ela falava para mim "tu tem sentimento de menino, tu se sente como os meninos". E isso ficou na minha cabeça por muitos anos sem eu entender que eu podia. Porque, que nem a gente falou, não existia esse termo "transmasculine", não existia "homens trans". Então até tu ter esse vocabulário para explicar o que tu tá sentindo foi tipo... foi difícil até as pessoas trans terem essa visibilidade, os homens trans, trans masculinos.











Minhas primeiras referências foram pessoas da gringa. Foram homens trans que já eram mastectomizados, que já eram hormonizados e era aquele sonho da perfeição-cis-passável. E aí eu comecei primeiro com esses boys da gringa. Passei um tempo assim... Eu fiquei obcecado. Olhava afu Tumblr, Twitter, Instagram, sabe. Tudo que tinha de rede de homens trans eu olhava. E aí eu fui começando a perceber que tava insustentável viver com isso, com essa angústia, com esse desejo de ter aquelas coisas e também de saber que só a minha "realidade biológica" digamos não iria suprir isso de certa forma.

Então eu comecei a surtar.

Eu comecei a surtar real. Ataque de raiva, inconformidade com tudo. Eu passava muito tempo me olhando no espelho sem camisa e eu não me olhava com ódio ou com desdém mas eu olhava com uma curiosidade, com uma coisa que eu não conseguia explicar o que era aquilo, como eu me sentia com aquilo. Então foi um tempo assim, seis meses de sofrimento e confusão, até eu admitir para mim mesmo que eu não só me senti atraído por aquelas mudanças, por aqueles experimentos de certa forma, como eu queria isso na minha vida, eu queria fazer parte dessa narrativa. Eu queria construir isso também.












E aí no momento que eu comecei 'ah talvez eu queira mudar o meu nome' eu botei no Instagram, deixei um tempo para ver como eu ia me sentir vendo aquele nome e as minhas fotos. Depois de uma semana eu pensei 'não tem mais como, é isso, vou ter que encarar, vou ter que botar a cara a tapa e falar assim mesmo, que sou uma pessoa trans, eu quero isso e eu vou fazer' sabe. Passou uns seis meses mais ou menos que eu tinha escolhido meu nome, já tava entendendo que eu sou trans e aí eu falei com os meus pais. Na verdade a minha mãe  percebeu que as pessoas estavam me tratando no masculino e veio falar comigo e falou assim 'tu quer ser um menino? tudo bem, tudo bem, eu vou te aceitar, tudo bem'. Nossa, chorei afu, abracei ela, foi todo um momento. Mas foi muito importante ela ter feito esse movimento por mim, porque eu acho que eu ia demorar muito mais para fazer esse movimento. E eu pensei 'bom, a minha mãe foi'. A minha irmã já sabia porque minha irmã tinha visto no Instagram. Ela também já tinha vindo conversar comigo assim uma noite que a gente se encontrou no rolê e ela falou 'ah, eu vi que tu mudou o teu nome, tu é trans?' e eu falei 'sim, eu sou trans' e daí ela me abraçou e falou que tava tudo bem. E aí eu mandei uma mensagem para o meu pai, né. Porque morei com meu pai pouco tempo, a gente morou cada um em casas diferentes. E daí eu mandei uma mensagem para ele falando e tal e daí ele 'porque tu não conversou comigo pessoalmente?', 'ai, porque eu não consigo, eu não consigo falar sobre isso' e ele falou 'tá tudo bem, eu só não quero te ver sofrer, eu não entendo mas eu não quero te ver sofrer'. E aí eu tive que fazer um processo com ele para ele entender também que eu queria tomar hormônio e que tava tudo bem, que eu não ia tipo morrer tá ligado. Depois que eu fui na médica e dei essa segurança para eles, eles ficaram muito mais serenos. Mas meus pais sempre foram de boas com a minha transgeneridade.

O meu pai até hoje não me chama de Vicente. Ele me chama de Vi, filho. Começou com filho, mas para mim era uma coisa afetiva super, né. Mas a minha mãe desde que eu falei para ela 'sou trans, é Vicente', ela nunca errou meu pronome, ela nunca errou meu nome. Tipo a minha mãe é uma pessoa muito incrível, meus pais são pessoas incríveis.

Só 5% ou menos da comunidade de trans que teve esse apoio tanto financeiro quanto afetivo. Meus pais que no início pagavam os meus hormônios, então eu tive um amparo que a maior parte da comunidade trans não tem. E por mais que eu tenha sofrido coisas na rua, tenha sido agredido e violentado, sempre é reconfortante saber que na tua casa tu tá seguro sabe, que as pessoas ali te acolhem.













Teve essa agressão de quando eu tinha 15 anos, que foi por eu ter sido lido como uma mulher sapatão. E teve a que eu vim morar em Porto Alegre e foi por eu ter sido lido como uma pessoa trans mesmo.

Eu tava passando na Rua Lima e Silva, em frente ao Zaffari, entre 7 e 9 horas da noite, tipo um horário movimentado, sabe. E eu só fui passar, eu nem vi que a polícia tava ali, eu só fui passar. E no que eu fui passar ele [o policial] assim 'ó, encosta, mão pra cima, encosta, mão na parede'. E eu dei um passo para trás e falei 'tá mas qual é que é, eu só tô passando aqui', não tava fumando cigarro, só tava passando, passando. E eles 'não, não, não, encosta' e eu tipo relutei um pouco porque era tipo dois caras enormes armados. Eu já tinha sido espancado uma vez pela polícia, eu sabia que aquela situação não ia ser legal. E aí eles tá, me botaram na parede. Botei as mãos na cabeça e daí a mulher veio, tirou minha pochete de mim e começou a olhar minhas coisas. Eles pegaram meu caderno de desenho e começaram a olhar, eles pegaram meu celular e abriram o meu celular e começaram a olhar as minhas coisas e o meu celular. E eles gritavam assim para mim 'tu é homem ou tu é mulher, tu é homem ou tu é mulher, tu é homem ou tu é mulher' e eu virado não vendo nada, sabe. E aí nisso que ele começou muito, assim, a me humilhar na rua falando 'tu é homem ou tu é mulher, tu é homem ou tu é mulher', eu virei para ele e falei 'meu, eu sou uma pessoa trans, tá ligado, tu não tem o direito de fazer isso comigo, se tu quer saber se eu sou homem ou mulher tu me pergunta meu nome'. Eu falei 'meu, tu não tem o direito de fazer isso, tu não tem o direito de me expor assim na rua' e aí ele falou 'eu quero saber quem vai te revistar, por que não sei o quê não sei o quê' e eu falei 'meu, ninguém vai me revistar, ninguém vai tocar a mão em mim', falei 'eu boto os bolsos para fora, não tem problema, eu faço assim mas vocês não vão botar a mão em mim'. Daí ele falou 'eu quero saber se tu tem antecedente, dá teu CPF'. Daí eles ligaram para central, pediram meu CPF e eu tenho uma fichação de posse de baseado de quando eu tinha 16 anos e tipo, eu achava que isso nem contava mais, porque na época eu era de menor, eu achava que ia sair aquilo.
E daí ele 'ah, tu tem um antecedente sim', não sei o que, 'a gente vai te levar, a gente vai te levar, a gente vai te levar' e eu falei 'não vocês não vão me levar, minha irmã é advogada' - tipo a minha irmã não é efetivamente advogada, mas ela tem faculdade de direito e eu só queria que eles não me botassem no carro. E daí eu comecei a dizer 'a minha irmã é advogada, eu não vou entrar nesse carro, vocês me deixem ir embora'. Eu olhei para mulher que tava ali, porque eram dois policiais homem cis e uma mulher cis, e eu olhei para ela 'moça, por favor me deixa ir que eu vou ter uma crise de pânico aqui'. E ela falou 'não, não, te acalma que a gente vai te liberar, só fica calmo' e eu 'tá', mas eu já tava assim né à flor da pele porque eles já tinham feito gato e sapato de mim.

No fim ainda esse cara que mais estava me agredindo olhou pra minha cara e falou assim 'porque eu sei pelo que vocês passam, porque eu sou psicólogo e meu TCC foi sobre pessoas trans e vocês passam...' e meu eu já tava com tanta raiva daquele cara que eu não consegui responder nada. Tipo, ele super tentou fazer uma manipulação psicológica como se eu tivesse sendo a pessoa ruim da história, sabe. No fim eles não devolveram minha pochete depois de olhar todas as minhas coisas, depois de invadir minha intimidade, de olhar dentro do meu celular, olhar dentro do meu caderno de desenho que só tinha desenho e anotações, sabe, e meus adesivos. No fim eles me deixaram ir. Acho que de certa forma, sim, o meu privilégio branco esteve ali porque eu gritei com a polícia, eu bati pé, tipo, eu pude ter essa segurança de poder fazer isso. No fim tá, tudo bem, eles me liberaram e tal, mas foi uma situação super traumática porque eles me liberaram e foram embora. Eles só queriam me encher o saco. E foi só porque eu não uso binder e eu tava com uma pochete assim no meio [do peito] e tava marcando os meus peitos, sabe, e eu tenho barba. Eles perceberam, deu para ver. Tanto que se não fosse por isso não ficariam gritando 'tu é homem ou tu é mulher' sabe. Foi bem claro que foi um caso de transfobia. Eles só me abordaram porque eles viram que eu sou trans. Então isso mexeu muito comigo, mexeu muito com meu psicológico. Eu já tinha apanhado da polícia uma vez, aí depois [teve] essa outra situação.

E é um representante do Estado, um representante do Estado te violentando, te  deslegitimando, dizendo assim 'não, você não é um cidadão, você não é sujeito, eu tô aqui e eu sou acima de você'. É isso que a polícia faz. A polícia serve para proteger o Estado, não os civis, as pessoas. Ela protege o interesse do Estado. É bem crítica essa situação de transgeneridade e violência policial, é uma coisa que eu acho que a gente tem que debater mais, ainda mais quando se trata de pessoas trans, pessoas trans pretas. Que esse recorte é muito mais violento, que nem eu te disse eu pude gritar com a polícia, eu pude ter essa minha segurança de fazer isso. E quantas pessoas trans não podem, sabe? Então é muito louco isso, é uma questão que a gente tem muito que debater. Porque também, sei lá, se uma pessoa trans é levada para delegacia e para passar uma noite lá, ela vai passar uma noite numa cela de homens cis, tendo essa condição trans, às vezes pode ser uma pessoa trans não hormonizada, sabe, então nos coloca numa situação delicada.









Eu comecei me enxergando como homem trans e... Com todas essas situações também né, de violência, de desvalidação, deslegitimação - e isso sempre veio de homens, dificilmente isso veio de uma mulher. Então isso foi cada vez mais me deixando anojado e com raiva. Até um ponto que eu comecei a pensar se eu realmente me identificava como homem, essa palavra. Essa palavra tem um peso e uma agressividade enorme. Eu não sinto que isso me contempla. Eu me interesso pelas masculinidades, não sei se eu me interesso por hombridade, por esse "ser homem". Até porque eu tenho uma vivência de mulher sapatão que é muito rica, que tem muita coisa importante, pertinente ali, muito mais do que uma vivência de um homem cis ao meu ver. Então eu não sei se eu quero fazer parte dessa caixa, sabe? De homem. Me incomoda o "homem" vir antes do "trans", porque é uma experiência muito mais sobre ser trans do que ser homem. Então eu sinto que a transmasculinidade, ser transmasculino, me contempla mais.

Claro que quando eu tô na rua não existe esse termo, as pessoas me lêem como um cara e eu tenho essa responsabilidade política, de cidadão, como um homem. Eu não posso bater numa mulher, tipo, eu não posso ter essa posição de machista, porque isso é um comportamento estrutural. Eu vou estar contribuindo com algo que eu não concordo. Então quando eu estou na rua, eu tenho essa leitura, eu tenho que lidar com isso. Mas internamente pra mim faz muito mais sentido me ver enquanto uma pessoa transmasculina do que como um homem trans. Isso também me coloca nesse lugar de ter que correr atrás da "passabilidade", que é uma coisa que me intoxica muito. Eu não sei se eu gosto tanto assim dos corpos de homens cis a ponto de querer ser exatamente assim. Eu gosto da experiência trans, eu gosto de, tipo, este corpo com hormônio. Eu gosto dessa experimentação, que isso seja possível. Tá me empolgando e me trazendo muito mais coisas boas pensar nessas outras experimentações de gênero que não seja só homem e mulher. Esse espectro que tem entre os dois.


















Muito do que eu quero trazer com a arte é, tipo, tu se olhar e tu se ver sabe. Meu sonho é, sabe aquela sala do MARGS [Museu de Arte do Rio Grande do Sul] quando tu entra, que é uma sala enorme? Meu, que tivesse corpos trans ali sabe. Corpos trans nús, corpos trans em várias narrativas, homens trans pais, mulheres trans mães. Eu queria poder entrar em um museu e me ver ali, saber que o meu corpo e o corpo das pessoas da minha comunidade, não tá restrito à esquina, não tá restrito a nossa bolha de quem nos aceita. Que a gente vai estar nos espaços, que as pessoas vão ter que nos engolir. E que a arte é um jeito muito efetivo de trazer para o imaginário social, para o imaginário coletivo das pessoas, que existem corpos assim, que existem narrativas assim. E pra mim teria sido muito importante se eu tivesse chegado em um lugar como um museu, que é a máxima da instituição artística, e tipo ter uma pessoa trans ali, ter uma pessoa trans que é artista, mesmo que ela não fale sobre ser trans. Porque na faculdade as professoras pedem, ai, um artista de referência... tipo, é louco pra mim porque eu não quero ficar citando homem cis ou mulheres cis. Eu queria que tivesse uma pessoa trans ali para eu dizer 'essa pessoa aqui me inspira', 'essa é uma pessoa que reflete também no meu trabalho'. Então tipo, para mim, ser trans interfere totalmente na minha profissão, na arte, porque arte também é muito sobre a gente se ver, sobre a gente se expressar, sentir, se identificar. Então eu quero muito trazer isso para as pessoas. Eu quero que, sei lá, daqui a 10 anos, uma criança trans possa ver que existem  possibilidades de existência e que a gente pode ser o que a gente quiser e que a gente pode estar no lugar que a gente quiser.



Desde criança eu gosto muito de desenhar e o auto retrato para mim é uma coisa muito importante. Desde criança eu me desenho muito e eu sempre me desenhei como um menino, eu nunca me desenhei como uma menina. Então desde ali eu já tava muito trazendo isso, de me expressar através da arte e traduzir quem eu sou através da arte. E quando eu comecei a transacionar, o auto retrato é uma coisa que me acompanhou demais. E não só me retratar como eu sou, mas como eu me vejo. Então para mim assim a arte vem sempre acompanhada desse desejo de identificação, desse desejo de expressão, de tipo transmitir ao mundo quem eu sou, e as pautas que eu trago, os meus ideais.


Os meus principais trabalhos tratam sobre narrativas trans e corpos principalmente transmasculines. Como eu tava te falando, eu trago muito dessa coisa da representação, de nos ver assim num trabalho artístico. E o que eu mais produzo por hora é gravura, desenhos, contos. Eu tô com um projeto de lançar um zine mais para frente, e eu também trabalho com acessórios. Mas a minha paixão mesmo é a arte.






















E também a mídia vende pra nós uma narrativa trans. Uma narrativa. E a narrativa que se faz  mais cis possível, que é aquela coisa que te engana, digamos assim. E que nos coloca nesse lugar do disfarce, né. Como se a gente estivesse escondendo a nossa transgeneridade.

E nos coloca no lugar de tipo 'eu não odeio o meu corpo. Será que eu sou trans? Mas eu não odeio meu corpo'.  Que nem a mastectomia. Tudo bem querer fazer mastec, mas tu não precisa odiar o teu corpo antes da mastec. Tu pode gostar dele também. E tu pode gostar dele depois com a mastec também. Uma coisa não invalida a outra. E não é porque o coleguinha tem mastec que tu também tem que ter. Se tu não quer ter tá tudo bem. Porque existem 1001 narrativas de ser trans. Não existe UMA transgeneridade. Não existe uma receita de bolo para ser trans, um passo-a-passo. Tipo, as nossas narrativas enquanto pessoas brancas também são totalmente diferentes da pessoa que vai se descobrir trans e é uma pessoa preta. Porque são outros recortes, são outras influências que aquilo tem na tua vida.


É muito louco porque parece que a gente passa por vários lugares de preconceito. Primeiro a gente é  uma mulher. Ser uma mulher cis hétero na sociedade já é ruim.  Ser uma mulher cis sapatão é bem ruim. Agora também ser uma pessoa trans, um homem trans dentro da sociedade também é uma coisa assim... A gente passou por vários lugares abaixo do homem cis, que é tipo a hegemonia da coisa.















Antes eu sentia que, como eu era lido como uma mulher extremamente sapatão, extremamente masculina, os caras não tentavam nada comigo por exemplo, sabe. E agora como eu tenho uma leitura às vezes de um menino gay acontece muito isso. E os gays cis também são duro de machista sabe. Então já aconteceu várias vezes de cara muito mais velho vir dar em cima de mim, cara passar a mão em mim, sabe, mesmo eu tendo uma leitura masculina. Porque como eu sou um cara mais magrinho, um cara mais baixinho, eles me colocam nesse lugar de uma fragilidade, como "passivo" de alguma forma. Então eu percebo que eu passei a sofrer uma violência dos homens gays também. Uma sexualização do meu corpo por homens gays. O que tem de homem gay boycetero também, sabe, tipo, fetichização total do corpo trans masculino. Eu percebo que antes eu tinha essa violência, por ser uma mulher extremamente masculina as pessoas tinham um certo nojo de mim.  E agora como eu sou um menino fofinho de alguma forma eu sinto uma sexualização do meu corpo trans masculino, não do meu corpo enquanto sapatão.

(...) mas ninguém pode descobrir que tu é trans.  Se tu tiver dentro do banheiro e alguém souber... Meu deus. E também nos colocam num lugar que eu sinto muito que eu tenho que me disfarçar. Que eu tenho que ai, sei lá, 'vou entrar no banheiro masculino, minha teta não pode marcar, pelo amor de deus'. Eu prefiro mijar na rua do que mijar em banheiro masculino porque é um ninho de abelha, tá ligado? Tu tá dentro do bolor.


É bem complicada essa questão. Porque mesmo que a gente tenha uma passabilidade, o banheiro masculino nunca é uma situação legal. Tipo, acontece super de tu entrar em um banheiro e ter um cara muito estranho fazendo algumas coisas nada legais. E é um lugar que, enquanto a gente era lido como mulher e vivia na sociedade enquanto mulher, não tinha problema de entrar no banheiro feminino. Tá as mulheres às vezes podiam se sentir desconfortáveis porque eu era sapatão? Podiam. Mas elas não iam me agredir, elas não iam me violentar. Podia rolar no máximo um bate-boca.












Eu fiquei muito surpreso quando eu vim morar aqui, porque na minha cidade tipo, a gente sabia todo mundo que era trans. Eram 4 boyzinhos, umas 10 minas e era isso. Todo mundo se conhecia. E também em Santa Cruz não existia narrativas empoderadas de pessoas trans. Então quando eu vim para cá e vi - meu uma vez eu fui numa festa e uma mulher trans tava no palco numa festa fazendo performance. Isso para mim foi o auge. Eu nunca tinha visto uma pessoa trans do palco assim dessa forma, uma pessoa que eu conheço. Então quando eu vi isso, que essas narrativas eram possíveis aqui, que as festas, as pessoas podiam se vestir do jeito mais extravagante e excêntrico, que isso era valorizado, que isso era uma coisa massa. E tipo outras pessoas trans, homens trans de binder nas festas ou sem binder mostrando as tetas mesmo. Isso para mim foi um negócio assim, explodiu a minha cabeça. Eu fiquei assim 'caralho, mano, é possível, é possível isso'. É possível ser uma pessoa trans e estar no palco, é possível eu mostrar as minhas tetas sem ter disforia. Essas narrativas são possíveis.  Porque a única narrativa que eu conheci em Santa Cruz, por exemplo, era de violência. Estritamente. Tanto violência por parte dos profissionais de saúde que a gente procurava, quanto pela população em geral porque as pessoas me perseguiam nas ruas, elas me perseguiam quadras e quadras gritando para mim se eu era menino ou menina. Então não existia uma forma de eu bater no peito e dizer 'sou trans' porque se eu fizesse isso eu ia ser violentado constantemente. Então para mim foi muito empoderador vir para cá e conhecer outras pessoas trans e conhecer narrativas de pessoas trans que são diferentes das minhas. Foi muito importante. 

E eu enxergo o rolê aqui em Porto Alegre, antes da pandemia, claro, que tava se fomentando muito mais essas coisas de tipo pessoas trans tocando, pessoas trans proclamando, pessoas trans ativamente estando no rolê. E num lugar de poder de certa forma.




Quando a gente estende [para o Brasil], o negócio fica um pouquinho mais pesado...  Porque, bom, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo né... Ao mesmo tempo que eu também tenho visto uma certa, não sei se é bem preocupação, mas tem tido algumas medidas, não necessariamente pelo governo, pelo Estado de uma forma ativa, mas iniciativas de empresas, ou de redes de comunicação, de programas de TV trazendo essa pauta mais para dentro da casa das pessoas. Eu acho super importante que tenham  programas que também se estendam para outras partes do mundo mostrando assim 'o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, mas a gente está fazendo algo com isso', sabe, 'a gente quer reverter esse cenário'. Então para mim também é muito importante essa identidade trans brasileira. De ser uma pessoa brasileira e estar nesse lugar.  Eu acho que é muito importante a gente se apropriar dessa identidade brasileira e trabalhar com isso. 












Eu particularmente tenho percebido uma acolhimento e uma recepção maior por parte das pessoas cis. Eu acho que as pessoas cis estão um pouco mais informadas, então a partir dessa perspectiva eu acho que tipo a gente está construindo lugares de poder para pessoas trans. Eu acho que a gente tá muito longe disso, de efetivamente poder, mas eu enxergo a evolução trans, digamos assim, na sociedade como algo que vai contribuir muito para estudos de gênero, para mudar de dinâmicas de gênero para um caminho mais igualitário. Porque a gente tem muito a contribuir. A gente passou por coisas que as pessoas cis nunca vão passar, elas nunca vão saber como é estar do outro lado da moeda e saber o outro lado também. Então eu espero muito que a gente consiga avançar cada vez mais e trazer isso para campos científicos, tipo saúde de qualidade para pessoas trans, hormônios feitos para gente - porque o hormônio que a gente toma é para corpos cis, não para corpos trans. E também eu acho que mesmo que sejam poucas pessoas e pessoas com bastante privilégio dentro da comunidade trans que estão na academia, que estão na faculdade, a gente tá abrindo esse espaço. Estão se formando advogadas trans, estão se formando psicólogos trans, artistas trans. Por mais que ainda essa parte da comunidade esteja em um lugar de privilégio em relação a boa parte da comunidade, eu acho que a gente tá sim se encaminhando para um futuro de construção de uma narrativa diferente sobre o que é ser trans, para um lugar melhor. 














Pra mim, ser trans é desafiar muita coisa, é ser muito corajoso. É tu mexer numa estrutura que as pessoas achavam até então que tava em inércia, uma coisa estática. E ela não está estática, ela tá se mexendo o tempo todo e até dentro da cisgeneridade. Por que gênero não é uma coisa estática. Gênero não é a mesma coisa em nenhum lugar da terra. Em sociedades diferentes são coisas diferentes. Então, pra mim, ser trans é realmente desafiar essas estruturas e questionar e botar uma pulga atrás da orelha das pessoas 'será que essa discussão está tão dada assim?', 'será que não tem mais coisas que a gente precisa pensar sobre?'. Tanto sobre transgeneridade quanto sobre cisgeneridade. Essas coisas se intercalam de certa forma também, elas se perpassam. Então para mim ser trans é realmente mexer com essas estruturas, é desafiar elas, é apontar que isso não está dado, que isso é uma coisa que a gente tem que estudar e muito ainda, que a gente tem que avançar muito na nossa sociedade para ter uma coisa efetivamente boa para todo mundo. 











Eu acho que a pessoa tem que mergulhar em si mesma. E se colocar nesse lugar de: O que tu quer alcançar com a tua transgeneridade? Em que ponto ela mexe contigo? E tu tem que estar disposto a mergulhar nesse processo e entrar de coração mesmo. E fazer essas perguntas, essa discussão não tá dada. E tá tudo bem também se tu estiver se perguntando e se tu for cis, tá tudo bem. Ser cis também é debater sobre gênero.  Então tanto para pessoas trans quanto para pessoa cis, vamos mergulhar em si, vamos estudar, vamos ouvir pessoas trans, vamos ouvir pessoas cis falando sobre gênero, vamos ouvir as pessoas falando sobre gênero. E aí tu vê o que cabe pra ti e o que não cabe, o que tu concorda e o que tu não concorda. E tá tudo bem também se tu for trans e tu não corresponder com as expectativas do que é ser trans, tá tudo bem, a gente pode construir esses lugares.



Vicente Lara.
20 anos.
Artista visual 
autônomo e residente de Porto Alegre atua principalmente nas áreas gráficas como desenho e gravura buscando através das linguagens visuais explorar discussões a cerca da transgeneridade, gênero, sexualidade, auto imagem e identidade.


Transmasculino.
Ele/dele.
2 anos e 10 meses em Terapia Hormonal.
@viceny_




*ensaio realizado em Porto Alegre (RS) em outubro de 2020.

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Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por urgência.
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