[fotografia analógica - dig/scan lab:lab]


Sou Otávio Lazuli Ricci - nome composto e muitas pessoas confundem isso, mas é Otávio Lazuli e Ricci sobrenome. Eu tenho 26 anos, nasci dia 5 de agosto de 1995. Sou um boyceta, pronomes ele/dele e hoje em dia moro em Porto Alegre, mas sou do ABC Paulista, São Paulo.
Como eu vim parar aqui, né? (risos) Eu conheci o Caru, que é meu companheiro, ele tatua e é aqui de Porto Alegre... Foi uma loucura: a gente começou um relacionamento a distância, nos conhecemos no Instagram e ficamos uns três meses só trocando ideia e se vendo de vez em quando, um indo pro estado do outro. Nessa eu perdi um trampo lá em São Paulo, fiquei desempregado, fiquei "nossa, começar tudo de novo, arrumar trampo no meio de uma pandemia que já tá um desemprego enorme, tudo mais...", ele falou "ah, quer vir pra cá? Se arriscar pra cá já que você já vai ter que começar de novo?", eu pensei "Porque não recomeçar em Porto Alegre? Sei lá, começar coisas novas, diferentes. Um lugar onde não conheço nada, nunca fui. Só tinha passado dois dias e voltava". Eu vim duas vezes pra cá e era assim: dois dias e voltava, dois dias e voltava - era minha folga. Nessa eu decidi me arriscar, ver o que rolava; aí eu vim e foi bem gostoso... Nossa, eu gosto muito daqui. Eu tenho um amor e ódio muito grande por São Paulo, muito grande. Eu gosto daqui, por mim, acho que ficava mais, mas ao mesmo tempo eu sinto falta da rotina de lá, das coisas assim... Eu gosto da loucura de São Paulo, da correria, ter eventos culturais sempre; e aqui eu sinto muita falta disso. Tudo bem que tava mais no auge da pandemia e tal, só que eu me reconheci trans no meio de 2019, e aí eu morava no centro de SP e nessa eu conheci algumas pessoas trans só que eu não tinha contato com outros boycetas, era difícil. Eu me sentia muito sozinho e não entendia muitas coisas, tipo "ai, o que é esse processo que eu tô passando e não tô entendendo?". E eu tinha vergonha de puxar assunto com alguém na internet pra tirar dúvidas sobre minhas questões. Foi bem difícil. Através da minha ex, que é uma mina cisgênero que tinha amigues trans, consegui ter contatos com outros transmasculines e, sei lá, elus me davam uns toques de muitas coisas, só que ela reproduzia muita transfobia, e eu pensava que tinha alguma coisa me cutucando nessas falas que tavam muito agressivas. Ao mesmo tempo que ela tinha contato... Cisaliade, né? Foda. Mas, eu consegui conhecer outras pessoas transmasculinas, conversei, consegui trocar uma ideia, só que não foi o bastante, não tinha uma intimidade maior pra conversar porque eu tava muito travado. Em seguida veio a pandemia, foi doidera, eu fiquei trancado e aí não conseguia mesmo socializar com outras pessoas transmasculines.


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Começando do início: foi através de uma amiga que se reconheceu trans, ela falou "preciso conversar com você, vamos sentar numa mesa do bar" - acho que em julho de 2019 - a gente começou a conversar, ela começou a desabafar e eu comecei a chorar. Eu falei "amiga, tudo que você tá me falando... É isso, eu sinto isso!" Me bate esse desespero porque é me olhar no espelho e não entender, sabe? Todo dia olhar no espelho e "tá, e aí? É isso?" Sei lá... Tava me sentindo muito mal, não conseguia me encontrar, não conseguia me ver, não conseguia entender. Várias questões. Nenhum rolê me encaixava. Isso me dava desespero. Ela [amiga] falou que era isso e a gente conseguiu se entender, foi uma choradeira da porra, mas foi bem bom. Aí foi difícil a convivência, eu pensei "ai meus pais...", eu morava na casa deles. Daí fui trocar ideia como eu sempre troquei ideia. Tipo, me assumi bissexual pra minha mãe com 12, 13 anos. Falei "sou bi e ponto, acabou", foi uma loucura, mas foi desde novinhe. Quando decidi que era o momento de falar que sou trans, eu não ia ficar fingindo... Nem me questionava tanto com o nome, eu só aceitava o nome de registro e tal. Aí, na hora que conversei com ela [mãe], falei "então, eu sou trans, me identifico como pessoa trans. Ainda não me identifiquei real, assim, tô me entendendo. Eu não sei o que tá acontecendo, mas sei que sou um corpo trans e tal e é isso", e ela "tudo bem, eu já sabia, tá tranquilo". Aí foi mil amor, foi muito gostoso. Só que, no dia seguinte, não sei o que ela conversou com meu pai que nossa! Os dois tem um relacionamento muito abusivo. Aí ela começou a ser fria comigo, tipo "não é desse jeito, não sei o que...", e meu pai começou a me tratar muito mal. A gente já não tinha muito diálogo e começou a ser pior ainda. Teve um dia que a gente discutiu e me chamaram de "ela", eu falei "é ele!", ele [pai] me falou que não tinha nenhum homem ali - e eu queria questionar que eu não sou homem, né? Não era essa a questão, mas eu não ia discutir, até explicar... Eu não queria dar aula, não queria nada; e aí foi uma discussão louca, louca, louca... Aí ele falou "então vaza daqui, se não é desse jeito que você quer lidar, do seu jeito não vai ser."

Eu saí fora, arrumei um hostel na paulista, foi tudo! (risos). Eu cheguei, caralho eu tava na paulista, tava na loucura. Foi bem bom, foi uma experiência bem boa, mas ao mesmo tempo eu não tinha contato com pessoas trans, meu vínculo continuava com a galera cis. Eu fiquei "ai, to perdido ainda. O que tá acontecendo?" Eu precisava que alguém falasse que tava tudo bem - eu precisava disso. Aquela minha amiga... Eu precisava de outros transmasculines, que tavam com o meu corpo ao mesmo tempo, que me entendessem melhor. Ela era meu conforto, muito grande, mas faltavam explicações que ela não tinha; a vivência dela foi outra. Aí eu fui pra lá, e, mesmo assim, foi através da minha ex que tive contato com pessoas trans, só que não era suficiente, não foi o bastante. Eu sofri num relacionamento extremamente abusivo onde ela me agrediu e tudo mais - e eu tava desempregado, eu tava muito fodido. Caçando lugar onde morar e, até acabar meu dinheiro, eu fui pulando de casa em casa, quando acabou eu fui pra rua. Fiquei alguns dias na rua, até que consegui um abrigo que abriga pessoas trans e consegui colocar meu nome e ser chamado; eu fiquei feliz por ter onde dormir. Eu fui pra esse lugar e, nossa! Foi muito louco, eu agradeço de ter onde dormir, mas, ao mesmo tempo, foi desesperador, porque tive coisa furtada, tinha uns preconceitos extremos e dava desespero porque eu tava tentando me entender - eu conheci outras pessoas trans e achei que ia me entender, mas elas reproduziam coisas horríveis, tipo que não-binário não existe, sabe? Eram umas coisas de agressão física, uns negócios muito fortes, eu fiquei sem acreditar que eu tava vivendo isso. Eu tava tentando entender e passei a tentar não generalizar isso, pensar que ia ser só aquele momento, que as pessoas ali tinham seu corre, que poderia ter sido um corre difícil, e comecei a tentar pensar que tava tudo bem. Foi bem foda, foi horrível, horrível, horrível. Eu fiquei lá quatro meses, por aí. Até que eu consegui um trampo. No início eu tava só com o auxílio que eu demorei pra pegar, porque bloquearam tudo e eu não conseguia pegar, foi horrível. Eu fiquei sem grana, sem nada. Eu tentei até recorrer com meus pais, engoli o orgulho e fui ver, mas me trataram tão mal que eu pensei que preferia ficar na rua do que vivendo aquilo. Eu continuei... Foi horrível. Até que eu consegui um emprego em um bar. A base do meu currículo é bar, desde os 16 anos trabalhando em buffet, bar e restaurante. Daí rolou, eu fiquei feliz pra porra, consegui um espacinho meu. Daí consegui sair de lá, foi um alívio. Aí, até que foi de novo, começou a fechar tudo de novo por causa da pandemia em fevereiro de 2021. Aí foi demissão de novo, aí eu fiquei "fudeu, como eu vou viver de novo?" 

[Antes] eu tava morando no abrigo, [então] arrumei emprego no bar, [e] saí do abrigo porque eu conseguia pagar o aluguel. No hostel, que foi quando eu pisei em SP, também dividia com um monte de gente, mas pelo menos tinha caixas com cadeado. Foi bem puxado, todo dia tinha que ter seis horas trabalhadas no hostel pra pagar minha diária. Foi bom porque comecei a trabalhar com outras línguas, com inglês, foi maravilhoso porque eu tinha que me virar pra me comunicar com uma galera gringa. Eu tinha o básico do inglês e foi bom conseguir desenrolar. Fiquei uns cinco meses morando ali. Na hora que eu consegui um lugarzinho foi um alívio pra ter uma privacidade, porque no início, no hostel, era um quarto de oito pessoas: sete caras cis; era difícil ter trans ali. Era um hostel LGBTQIA+, era legal só que tinha esse giro, todo dia pessoas diferentes no meu quarto e era o quarto masculino - só as gay padrão (risos). 
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Eu não me hormonizava, fui me hormonizar em 2020, no meio da pandemia. Eu tava já na loucura. Eu não queria injetar, mas o preço do androgel era muito alto, daí deixei, pensei que em outro momento iria iniciar. Aí tinha um casal transmasculine que mandaram mensagem falando que precisavam de lugar pra ficar dois dias em SP, eu falei "ah, vou hospedar essas pessoas, tô com espaço grande e tal", aí falei pra galera ficar lá, passar dois dias lá em casa. Nessa eles ficaram os dois dias e eles tinham testosterona e eu tinha comentado que tinha vontade de iniciar a testosterona, que já havia tentado ir ao médico, ao posto de saúde, mas que sempre eram atendimentos horríveis - teve atendimento que o médico pediu meu telefone porque ele não sabia o que fazer comigo, que ele entraria em contato depois. Daí eu fiquei "tchau, então eu não preciso de nada de ti, eu me viro". Nessa, eles me deram uma caixa de testosterona como agradecimento e um deles ofereceu pra injetar, eu falei "tamo aqui, porque não, né?" (risos).



*aviso de gatilho: injeção, agulha. o parágrafo abaixo contém descrição gráfica da aplicação de testosterona*

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Foi o desespero da ansiedade, porque eu fiquei com minha bunda de fora, encostado na parede, pensando "fudeu, fudeu, fudeu", na minha direção tinha um quadro, começaram a injetar e eu "gente, minha pressão tá indo embora", eu só fui vendo que eu tava descendo e comecei a pensar que eu tinha que ficar em pé. Nossa! Foi uma viagem muito louca, acho que eu desmaiei, mas não do corpo cair, só viajei muito grande e aí voltei e já tinham terminado de me injetar. A pessoa que me injetou tava desesperade (risos). Elu desesperade, tipo "essa agulha vai quebrar dentro de você, você tem que ficar em pé" (risos). E foi. Injetou e eu sobrevivi. Hoje em dia eu só aplico deitado. No [posto] Modelo, as enfermeiras até me zoam, mas tem que ser deitado, não dá! Até sentado, o Jamil - ele é do Piauí e eu já hospedei ele -, ele falou pra gente fazer a aplicação na coxa e eu "beleza", daí ele aplicou e eu só "amigo, eu tô indo" (risos). Não deu certo sentado também, só fui desmaiando e só senti ele me abraçando e me dando vários beijinhos na cabeça, "volta amigo, volta!"
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Eu comecei a T, daí foi doido. Nos meus 21 anos, por aí, eu me prostitui por um tempo, e na pandemia voltei a me prostituir e ai... Eu tinha outra cabeça, foi muito mais problemático de engolir as coisas. Eu precisava da testosterona. Eu comecei a me prostituir justamente pra pagar minha testosterona, e o meu suggar - praticamente era um suggar; e era tão problemático, ele falava que eu era o "menininho dele", e eu ficava "ai meu deus, me tira disso!", só que, ao mesmo tempo, ele tava bancando tudo: exame médico, tudo assim, tudo que precisava ele bancava. Eu pensei "pelo menos tô nesse conforto, tô conseguindo minha testosterona e fazendo a aplicação, tudo certinho", e eu morava no abrigo. Quando eu consegui o emprego eu só sumi e pensei que eu não precisava mais disso; aí eu vazei. Isso foi antes de vir pra cá [Porto Alegre], eu decidi fazer uma consulta, tentar de novo e aí rolou de me atenderem de uma maneira que seria o certo de atender: perguntar meus pronomes, perguntar meu nome, me chamar pelo meu nome. Foi umas três, quatro tentativas pra fazer o exame. No ambulatório trans - que só tem um em São Paulo - tava sempre cheio, aí na correria louca eu não conseguia e era muito longe de onde eu morava e trabalhava - não dava. Eu conseguia de graça a Hormus [testosterona] lá [SP] e aí quando vim pra cá, eu achei absurdo não ter testosterona no ambulatório. 

Aí consegui a T, consegui um trampo, consegui largar desse boy aí, consegui ficar de boa... Ele era uma pessoa mais velha, era bem problemático, ficava "ai meu garotinho, meu menininho", me tratando como uma criança, sabe? Eu ficava angustiado pensando em quão problemático era isso, pensando que eu tava passando pano pra uma pedofilia; me dava muito desespero viver isso, mas, ao mesmo tempo, era uma forma de fugir. Até em questão de mimos, às vezes eu queria comer uma besteira, um chocolate, e não tinha dinheiro, nessas acabava sendo um conforto. Era uma troca pra eu ter o meu conforto. Ah, eu consegui sair disso, foi um alívio. Consegui um trampo bem massa onde comecei como bartender e eu tava ganhando um salário legal. Foi uma doidera muito grande, porque eu tava na miséria e do nada virou. Cara, que alívio. Foi quando fechou tudo de novo, fechou os bares e lá vai eu, de novo, sendo demitido. Então eu fui demitido, falei "fudeu, fudeu, fudeu". Aí eu decidi me expor na internet, pedindo trampo porque não queria viver aquela vida de novo. Falei "ai gente, se alguém puder me indicar trampo, tal, tal, tal", até que rolou numa creche de cachorro - foi bem da hora! Trabalhar com os petzinhos, foi muito bom. Só que não chegava nem perto do que eu recebia. Na hora que eu arrumo um trampo legal, fecha tudo de novo, lá vai eu de novo... Sério, eu acho que trabalhei quase dois meses, 24 horas, no hotel e na creche. Trabalhei dois meses e no final do mês fiquei chateadão, fui pegar meu salário e deu 2.500,00, trabalhando 24 horas por dois meses, eu morava lá, eu só ia pra casa lavar roupa, pegar alguma coisa e voltar. Daí, nessa, 2.500,00 pelos dois meses, eu fiquei "sério mano? eu me matei aqui de trabalhar." Era maravilhoso trabalhar com os cachorros, só que a galera... Os funcionários e as chefias eram bem horríveis, e era muito doido... Vou expor mesmo: o done é uma pessoa trans não binária, mas era um babaca comigo, em nenhum momento me valorizava. Eu sinto, realmente, que eu fui demitido porque as pessoas não sabiam como lidar comigo. Eu vejo, de verdade, que foi essa a demissão; porque falaram que iam cortar verba, mas eu vejo que durante o tempo todo as pessoas não sabiam como lidar comigo, erravam pronomes. Eu avisei a pessoa, que era um dos gerentes, só que não adiantava nada. Não fazia nenhum movimento de falarem com ele. Me invalidavam. Aí, depois disso, quando o Caru fez a proposta eu decidi me arriscar em Porto Alegre. Foi doido vender tudo. O cara que alugava lá falou que poderia diminuir o aluguel e tal, fez uma proposta mó legal pra me manter lá; e foi o lugar mais confortável que eu já tinha morado, eu pensava "até que enfim encontrei um lugar confortável, uma casinha boa", e era muito legal porque era um estúdio de música e fotografia dentro da casa. Era a galera desse ramo com quem eu morava, da música e da fotografia. Às vezes chegava e tava rolando ensaio, era bem legal. No começo eu achei que seria muito difícil por serem dois boy cis, eu nunca tinha morado com boy cis antes, achei que ia ser maior doidera, mas até que não, foi bem gostoso. Foi bem chato dar tchau, falei "gente, não vai rolar continuar aqui, mas, é isso, vou me arriscar. Eu quero me arriscar." 

Cheguei aqui no final de junho do ano passado. Cheguei no inverno, nossa, nunca passei tanto frio na minha vida. Aqui eu realmente vivi mais o rolê trans, o corre trans. Eu me senti mais abraçado. Não sei se por ser mais fácil de encontrar o pessoal, não sei o motivo... [Antes] eu só fui à alguns encontros trans, mas eu tava com pessoas cis ao meu redor, isso que dá raiva: eu não vivi o corre. Tipo "meu corre trans" e aqui eu vivi mais isso, foi mais confortável por conta disso. Eu cheguei em julho e em agosto foi meu aniversário, eu consegui até reunir uma galera trans, foi mó legal! Eu acho que duas pessoas não eram trans, eu fiquei feliz de conseguir montar esse ciclo, de estar nesse meio. 

Em questão de cidade, eu acho aqui muito mais confortável, bonito; eu gosto, mas vejo muito um clima interiorano. Eu acho bem preconceituoso, bem doido, e o que me dá agonia aqui é de como passam pano pra paulista. Eu to trabalhando na empresa lá, quando eu falo que sou paulista as pessoas mudam comigo, elas ficam me valorizando. Eu fico "gente, para de passar pano pra paulista". Eu vejo que, a maioria das pessoas de lá [da empresa] são de fora, são de SP, as pessoas não chamam as pessoas daqui, os artistas locais e tudo mais. Mas, eu gosto daqui. Eu gosto de ter acesso a prainha do Guaíba - acho que é um dos meus lugares favoritos. Eu gosto de poder sair à noite, a noite é meu horário favorito. Ter acesso ao Guaíba eu acho tão bom, sentar ali na Orla... Mas, a gente mora no Centro, né? Eu cheguei no Centro e, realmente, dá uma diferença morar no Centro da cidade. 


É bem gostoso o relacionamento com Caru. Sempre foi muito intenso. Tudo começou com ele postando uma foto de uma rifa que ele tava fazendo no Instagram. Mas, como eu cheguei até ele? Vou te contar. Eu lembro que quando abriguei o Jamil em casa, ele foi cortar o cabelo com Loren, em SP. Aí ele cortou junto com Laurie, cada um pegou um lado e cortaram o cabelo do Jamil - e foi bem engraçado porque um lado cortou a barba e o outro não, ele ficou bem engraçadinho. Aí eu vi o perfil do Laurie, aí eu stalkiei e achei o perfil do Lau, pensei "nossa que gatinho, vou seguir também", até que eu vi a foto do Caru e achei gatinho também (risos). Ah, são os transmasculines, mano, é isso (risos). Aí segui ele e vi que o Caru tinha postado uma rifa que ele tava fazendo, eu mandei uma mensagem, falei "pena que é de Porto Alegre", e ele começou a responder, falou que tava vendo de ir pra São Paulo, aí a gente começou a desenrolar. Foi uma intensidade enorme, todo dia a gente conversando, até que começaram as chamadas de vídeo, eu chegava do trampo e a gente ligava. Foi, nossa! Foi logo quando arrumei o trampo na creche de cachorro, aí a gente começou a conversar e eu dormindo lá no trabalho e a gente fazia vários vídeos, uma doidera, doidera... Foi bem intenso, bem gostoso, até que ele veio pra SP, falei "nossa, nosso primeiro date vai ser ele chegando com mala na minha casa". Ele chegou e na hora que eu vi ele, eu falei "ai, perfeito, perfeição." Não sei, só bateu muito gostoso. Ao mesmo tempo que dava aquele medo, eu tava confiante. Foi muito gostoso, muito gostoso mesmo, a presença dele... Acho que foram as duas semanas mais perfeitas da minha vida, foi incrível, incrível. Nessas eu consegui ficar uma semana em casa, foi incrível. Nossa, a gente aproveitou horrores! Na casa tinha um quintal muito grande, tinha uns jardins... Foi bem gostoso com ele, ele se deu super bem com o pessoal da casa. Isso foi a primeira vez que ele foi lá, foi bem bom, aproveitamos bastante. A gente não saiu muito porque era um auge pandêmico: muita gente com covid, muita gente morrendo, muito mais do que tá agora. Aí a gente deu uma segurada e só ficamos em casa - não tinha vacina ainda. Realmente foi só pro nosso date e foi muito gostoso, a gente aproveitou bastante e na volta dele pra POA foi bem triste. 

Aí, beleza, a gente continuou por vídeo chamada e tal, aí eu vim pra cá, falei "vou passar o final de semana aqui", foi quando eu conheci POA. Foi engraçado porque na minha adolescência eu queria vir pra POA conhecer os emos (risos). Depois de adulto eu comecei a ter outra visão, achar a cidade coxinha. É muita coisa militar, me dá agonia. Militares em todo canto… Aí, foi. Vim pra cá duas vezes, até que, quando eu fui demitido ele me perguntou se eu tinha vontade de vir pra cá, falou que queria estar mais próximo de mim. Aí eu falei "ai que convite maravilhoso, vou." Eu vim pra cá e é uma convivência bem gostosa. Agora a gente tá com um filhinho, um gatinho, tá sendo incrível. Só é difícil ter filhos, até sexo dá uma baixada (risos). Mas assim, tudo bate, às vezes bate umas coisas de morar num lugar pequeno, a gente só quer tá num lugar maior, pra ter uma convivência melhor. A gente tá morando em um cômodo onde é quarto, sala, ateliê, dos dois. Isso meio que sufoca. Eu trampo mais na rua, o Caru mais em casa, mas ficar no mesmo cômodo às vezes é difícil porque se eu quero ouvir música alta, eu só ouço quando ele não tá. Às vezes eu quero ver TV e ele quer ouvir um som, aí não bate; então, acho que nisso deve ser meio chato. Às vezes eu só quero ouvir um áudio, responder do meu jeito, mas não tem essa privacidade, tá no mesmo espaço, tá dividindo sempre, sempre. Nisso, às vezes, dá umas fisgadas, mas é bem gostoso, a gente sabe conversar, a gente é bem transparente um com o outro. Toda treta que a gente tem a gente pega e tal, tal, tal, conversa e resolve. Acho que a treta é até engraçada, porque a gente é bem sincero um com o outro. Não de uma maneira agressiva, mas a gente é bem sincero, fala "não gostei disso, não gostei daquilo e é isso", os dois são muito sinceros, acho que por isso é engraçado. Eu acho engraçado. Sei lá, eu curto muito me relacionar com ele, me sinto bem confortável com ele. É meu primeiro relacionamento com uma pessoa trans; eu sempre me relacionei com pessoas cis, principalmente minas cis. Aí tá sendo um conforto muito grande, ele entender do meu corpo, entender tudo... Ambos se respeitarem bastante. Foi uma relação que eu não esperava ser tão intensa, tão rápida. Tô morando com uma pessoa de novo, tipo trá! assim. Mas foi completamente diferente, meu outro relacionamento era extremamente abusivo, ao ponto de eu falar que pensava em tirar as mamas e a pessoa pegar e falar "se tu tirar tuas tetas a gente não se relaciona mais", era uns negócios muito agressivos, o tempo todo. Tipo, uma transfobia que eu fiquei quieto - não tava entendendo, e não sei porque fiquei quieto, mas beleza, passou - mas foi a questão dela tretar com uma mina trans que tava tentando usar o banheiro no bar. Eu olhei aquela cena e me deu uma angústia e a pessoa falando que era uma mulher trans e ela não entendendo aquela cena, sabe? Aquilo foi um choque bem grande. Então em vários eventos eu vi que não tava batendo. E aí foi outra coisa de morar junto, entender, saber do corre; tá sendo uma relação bem gostosa, completamente diferente de outras relações. É bem mais confortável. Tá tão saudável que é até estranho e é muito louco ter essa sensação tipo "porque é saudável, tá estranho", mas isso é o necessário, é o básico. É muito louco... Tá mil maravilhas. 



Eu sempre tento ajudar ao máximo pessoas que tão iniciando, que tem dúvidas, porque eu lembro do que eu passei, que eu não tinha contato com outras corpas trans, principalmente transmasculines, que me entendessem, me escutassem. No que eu puder ajudar acho que seria bem massa. Eu queria muito estar ajudando, estar nesse apoio.

No começo do processo de transição, eu me questionava muito quanto aos meus jeitos, tipo "como devo agir? Como devo falar?", e, ao mesmo tempo, tava me questionando quanto a hormonização, pensando se eu poderia ser feminino, o que eu era, como eu poderia agir. Nessa pegada eu me travava muito. Eu não tinha conforto, não tinha alguém pra me falar, pra me entender, pra eu desabafar sobre as mudanças no meu corpo... Eu comecei a me hormonizar sozinho, então, tipo "tá, minha cabeça tá mudando", tipo, uma bomba de testosterona, meu pensamento tava a mil, com quem eu podia conversar sobre isso? Eu queria alguém pra [me] falar que tava tudo bem, que o que acontecia era normal, tipo "você pode fazer isso pra melhorar", sabe? Coisas que seriam uma ajuda enorme; não sei, era o que o Google não me ajudava. Eu fui catando na internet, depois comecei a caçar em perfis de pessoas transmasculinas, eu acompanhava fotos... E, assim, eu não faço de mim, mas acho muito legal quem faz o antes e depois, isso me ajudou muito, tipo "com 5 meses de T, com 2 meses de T". Me ajudou a saber se era isso que eu queria. Foi catando essas coisas que foram me ajudando. Fui vendo as fotos pra entender o que acontecia. Quando tu pesquisa dá um medo, qualquer coisa que tu pesquisa no Google fala que tu vai ter câncer. Falava que precisava parar o cigarro porque ia dar não sei o que... E eu "calma gente" (risos).

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[Sabe] aquela coisa "você é um homem!" e eu tipo "não é nem isso, isso nem passou ainda, nem chegou a esse ponto" (risos). [Me identifico como] boyceta em questão de ter orgulho do meu corpo trans, do meu corpo com buceta. Eu tenho sim orgulho do meu corpo com teta. É mais essa coisa assim, que eu sou um boyzin com uma buceta e esse orgulho dessa luta que tem. Eu tenho um conforto bem grande... Cada um tem sua questão com seu corpo, mas, sei lá, eu tenho muito orgulho de ter assim e tal, e, também, a questão até das minhas tetas - não que esteja ligado ao boyceta, tem uma ligação, mas não necessariamente pra você ser boyceta tem que ter teta ou não - mas, sei lá, eu vejo que tirar minha teta é mais uma pressão social, não é uma coisa que tipo "nossa!", é mais pressão social pra eu tá confortável sem camiseta, sem binder, sem faixa... Eu vejo isso me batendo muito. E a questão do boyceta é uma luta que eu vejo de se entender que tá tudo bem ter uma buceta, ter esse corpo e mostrar isso pra sociedade que é isso, existem boys sim com buceta. Eu sempre me apresento como boyceta, tanto que meu user é boyceta. E é isso, sempre tento mostrar, assinar boyceta, mostrar mais que existem garotos de buceta, homens de buceta - não formalmente "homens", mas assim, a masculinidade com buceta. 






Lazuli Ricci
1995
Lazuli ou Zu, 26 anos. Boyceta, multiartista. Atualmente atua como tatuador e styling.

Boyceta
ele/dele, elu/delu
@boycetaa
1 ano e 8 meses em hormonização


*Lazuli é natural do ABC Paulista e o ensaio foi realizado em fevereiro de 2022 em Porto Alegre (RS)
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Ser Trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Projeto idealizado por Gabz, trans não-binário e multiartista. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemes, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. Esse trabalho começou por urgência.
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