Quem sou e meus processos... É difícil desassociar, né? Eu sou a Ávine, tenho 25 aninhos, sou formanda em Arquitetura e Urbanismo, faço pós-graduação em Comunicação e Produção de Moda. Acho importante citar essas coisas porque a gente não ocupa muito esses espaços acadêmicos - eu sou a única travesti em todos os espaços acadêmicos que ocupei até hoje. Então acho importante dizer que nós somos travestis formadas, enfim, ocupando todos os espaços que me foram negados desde antes da minha existência. 

Eu sou de Minas Gerais, cresci em uma cidade de 25 mil habitantes, muito religiosa, onde meus pais também são muito religiosos. Com 18 anos eu mudei pra Belo Horizonte, onde fiz pré-vestibular e tive contato com pessoas que eram diferentes, como eu; no sentido de sair de uma norma heterocisnormativa. Não tinha muitos contatos com pessoas trans ainda - a não ser na minha cidade, onde tinham algumas travestis com quem tive contato. De qualquer forma, sair de uma cidade de 25 mil habitantes pra uma capital é sempre um "boom", de se ver em alguns locais e espaços, de se sentir um pouco acolhida ali naquele momento. Em 2016 eu mudei para Viçosa, onde fiz minha graduação em Arquitetura, que depois passou a ser a distância por conta do Covid e aí eu mudei pra Bento Gonçalves, no RS, em agosto do ano passado; mas comecei a vir pra cá desde abril. 

Então, acho que pra falar do meu histórico e entender minhas construções, eu vou contar como foi essa construção de me ver em uma cidade do interior como, antes, uma bicha muito afeminada - eu falo "bicha" porque o termo "gay" ainda era muito ligado à um padrão de homens que, naquela época em que eu me via e me identificava como uma bicha, não me cabia ainda, porque eu tava muito à margem dessa expressão de gênero que não era masculina. Aí eu coloco bicha porque bicha é além de ser gay, né? É uma vertente de luta na comunidade G. Eu já passei por muita coisa, desde nova, por estar fora desse padrão de comportamento, por não estar onde a sociedade esperava de mim, de ser uma pessoa que foi designada homem ao nascer - eu não gostava de usar roupas masculinas, sempre gostava de estar no meio de meninas, vestir roupas femininas. Não que isso seja algo que atribuiu obrigatoriedade para eu ser uma travesti hoje, mas é algo que faz parte da minha construção de identidade desde nova. É importante entender também que a construção da Ávine enquanto travesti, passou por muitas dores, visto que eu cresci em uma cidade muito religiosa, onde eu fui muito apontada como diferente e errada, isso incluindo minha família. Quando me foi imposto a assumir que eu era uma bicha - porque nem minha sexualidade eu pude entender muito bem, porque por eu ser feminina e sendo designada como homem, eu era obrigatóriamente uma bicha. Não poderia ser uma pessoa assexual, bissexual. Tinha que ser uma bicha. Aí eu falava que fui empurrada pra um armário que eu nem sabia que existia, eu só tava vivendo minha vida. Eu escutei coisas como: que deus iria  me condenar, que eu iria pro inferno - isso vindo da minha família! Meu pai, por exemplo, tomou todos meus aparelhos eletrônicos, como notebook e telefone, pra eu não ter contato com mais ninguém! Porque não podia né, ter esse contato, poderia descobrir quem eu era. Até a gente passar por um processo de terapia familiar e conseguir ter o mínimo de diálogo possível dentro de casa. Tirando todas essas agressões psicológicas e um pouco físicas, como o comportamento, que eu não podia sentar de perna cruzada, tinha que sentar de perna aberta, não podia falar gesticulando, enfim... Como eu falo, isso podou muito a raiz do crescimento da Ávine, sabe? 


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A Ávine foi oficialmente exposta ao mundo em um processo que começou a ser dialogado em 2019, quando eu comecei a me relacionar com o pessoal da dança da faculdade e comecei a estudar Vogue Femme. Aí eu participei de um espetáculo que chamava Malakoi, onde a gente estudava o álbum da Linn da Quebrada e fazia performances em cima disso, contando uma história de uma pessoa que sai da norma. No caso, a Linn, nessa época do álbum, se via como uma bicha travesti - e eu ficava alucinada com isso, né? Falava "meu deus do céu, bicha travesti! Como é ser uma bicha travesti?” Eu me via assim. Ser bicha não era suficiente pra mim. 

Aí eu tive esse contato com o vogue femme, e desse contato tive contato também com a ballroom e, nesse meio tempo eu falei pra algumas pessoas que eu era uma pessoa trans não binária. Aí eu tive uma conversa com a minha mãe em 2020, eu já tava em casa por conta da pandemia. Eu mostrei um vídeo da Linn com o Pedro Bial e expliquei pra ela algumas coisas, contei algo que ela já tinha percebido e só esperava eu contar; eu fui lá e contei. Beleza, mas ela não entendeu muito bem o que era uma pessoa não binária, eu fui tentando explicar e tal, só que eu via ainda que não era só aquilo, sabe? Até eu me entender enquanto uma travesti - não enquanto mulher, nem enquanto homem, mas enquanto uma travesti. Isso é muito importante: eu entender ser travesti enquanto uma terceira identidade. É uma construção que foi minha. Uma construção da Ávine travesti, de onde ela espelhou a feminilidade que ela queria recriar pra ela. É libertador ter uma identidade que não se espelhe nesses extremos binários ou em uma cisgeneridade - ser travesti, pra mim, é muito além disso. Então passei por esse processo de me reconhecer como uma pessoa trans não binária e, depois, travesti. Também, de certa forma, de estar no espectro da não binariedade, visto que eu não me ponho nem como homem, nem como mulher, mas como uma terceira identidade, que é uma travesti. E foi muito complicado lá em casa, porque eu nunca esperei aprovação de ninguém pra fazer as coisas. Meu pai é alinhado ao governo Bolsonaro, e, como eu já disse, meu processo, desde nova, foi um pouco violentado porque tinham ideais nossos que não batiam e aí eu não recuava, porque eu queria viver minha vida e minhas vivências, experiências, identidades, expressões, e isso nem sempre entrou no conformismo que esperavam de ter um filho. 

E aí, quando eu me assumi uma travesti, uma das primeiras coisas que escutei foi se eu iria me prostituir para sobreviver e como eu iria me manter; porque, aparentemente, eu já não era uma pessoa que poderia ser mantida naquela casa. Aí, a minha relação com meu pai, que já não era muito boa, piorou muito mais. Ele não aceita muito bem que ele tem uma filha travesti, que se impõe enquanto travesti - porque as pessoas tem medo de falar "travesti", mas eu amo falar essa palavra linda, essa identidade latina! Depois da ballroom eu revi todos os conceitos do que é a família, porque a minha house, que é minha família, dentro dessa cultura, foi quem me apoiou, mais do que minha família consanguínea que dizia que estava comigo. Eu vi que família consanguínea não significava nada, tipo, família é o que a gente constrói, quem tá do nosso lado, é quem a gente adota pra gente. A minha house foi essencial em todos meus processos. Ver as travestis na ballroom, estar com elas, foi essencial pros meus processos. Bom, então, essa sou. Essa é minha construção dolorosa, mas com um final feliz e com muito orgulho. Às vezes eu penso que se eu não tivesse passado todas essas violências que eu passei em casa, violências sociais, bullying na escola ou violências físicas que eu sofria, talvez a Ávine, como eu queria ser, teria nascido antes, a construção dela teria vindo antes. Mas... da forma como aconteceu também foi linda; não foi, talvez, como eu queria que acontecesse, mas aconteceu de uma forma que me trouxe muitas coisas boas, me trouxe muitos amigos, me trouxe família, me trouxe meu namorado... Enfim, me trouxe eu mesma, e isso é uma delícia! Nada mais gostoso do que viver quem eu sou.

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A Linn foi essencial pra muita coisa na minha vida e dela vieram outras travestis que foram mais essenciais ainda pra eu estar viva, sabe? Eu falo sobre travestis serem minhas irmãs sem ao menos conhecê-las, porque a gente se tem. Eu não conheço a Linn, mas eu sou dela. É como se eu tivesse nascido dela. E tem outras que são minhas, porque a gente tá juntas, de alguma forma. Tem travestis que eu nunca vi na vida e tenho trocas imensas, por internet, por apoios... Também outras pessoas trans, não bináries, transmasculinos. É muito foda, muito forte.

Pra mim, ser travesti é fugir muito de uma pré-disposição de feminilidade, que é sempre espelhada na cisgeneridade branca. Eu também acho que é mais sobre um encontro de quem eu sou; eu não nasci enquanto uma mulher cis, eu nasci travesti. Espero que todas as pessoas tenham filhas travestis, também. Além disso, é uma identidade latina e política, e eu sempre fui ligada ao movimento social - por isso eu sempre batia de frente em tudo. E colocar a minha identidade em um movimento político foi abraçador, porque eu sou um corpo político. Eu faço existência,  eu faço marcos históricos em todos locais em que passo. Como já falei, eu sou a única, não só na faculdade, mas em vários locais onde eu passo. Aí, ser travesti, além de ser uma identidade latina, que é nossa, é uma identidade que veio antes de mulher trans, que não foi higienizada, que foi o que abriu realmente as portas para toda comunidade. Foi a identidade que estava na linha de frente. É ser um corpo político, como a Linn fala "não é filho, nem filha, é falha", é falha de gênero. É essa quebra que ninguém espera, mas que tá ali, existindo e coexistindo e vai prosperar, sabe? Então, pra mim, nossa! É Muito forte. Me marcar enquanto uma travesti... É uma delícia ser travesti: tem os amores e as dores, mas os amores são assim... Muito superiores!

Sobre ser a única pessoa em muitos locais que ocupo, às vezes é um pouco um fardo ser a primeira a abrir as portas - não minto. Queria andar só com as travestis pra abrirmos as portas juntas. Mas, eu sei que a gente sempre faz história porque teve as que abriram à frente e eu estou levando as portas com elas pra abrir pras próximas que estão vindo. Ser a primeira travesti no meu curso, no meu departamento, foi um abalo geral lá. Mesmo sendo um departamento de arquitetura, ainda é uma arquitetura muito rígida, voltada para área de exatas, engenharia... Então, tem um pessoal que tem uma ideia mais progressista, mas tem um pessoal mais conservador, inclusive os professores. Uma das coisas que me empacaram muito... Eu só preciso terminar o TCC na minha graduação, de resto já terminei tudo. Eu só tenho que fazer minha defesa. Na arquitetura são duas defesas. Meu primeiro orientador foi um bolsominion, foi até um pouco complicado. Aí eu mudei de orientadora, mas na minha banca eu fui tratada no masculino. Isso me gerou uns traumas que fizeram eu ficar meio travada, de lidar pra frente. Porque nem em uma instituição acadêmica que é de ensino superior, onde as pessoas passaram por mestrado e doutorado, tem o mínimo de estudo ou capacidade cognitiva de acolher ou entender o pronome de uma travesti, sabe? Não é nem sobre estudo, é sobre caráter. 

E, nossa, assim... É complicado, porque toda essa mudança de faculdade, final da graduação, veio com a pandemia, veio o fato de voltar pra casa dos meus pais depois de 6 anos e passar por violência. Eu estava passando pelo processo de contar pras pessoas que eu sou uma travesti, inclusive pra minha família, né, que eu ia mudar o nome, mudar tudo... E foi tudo de uma vez. E isso pesou as coisas. Foi bem complicado já que a instituição parece que não me acolhe ali como deveria. Não respeitam meus pronomes sempre, mas, de resto, com minha nova orientadora foi tranquilo: as mudanças, o respeito, o entendimento dela comigo porque ela é uma pessoa muito humana. O resto da instituição ainda é muito conservadora, mas essa travesti há de formar ainda! Porque ela quer ser a primeira travesti a se formar ali, naquele departamento, pra depois seguir a segunda, terceira, quarta... Alguém tem que abrir essa sequência numérica e eu espero que seja eu pra gente trazer mais. 



Com isso também, com todas essa mudanças, teve a mudança pra Bento [Gonçalves]. No ano passado, em agosto, eu conheci o Léo, meu namorado que é um transmasculino não binário, e isso, no meio desse caos, no olho do furacão… Eu fico até emocionada porque foi um afago, sabe? Foi, nossa, assim, um aconchego. Por mais que eu esteja no Rio Grande do Sul, que é um lugar onde eu nunca estive na minha vida, onde eu demorei pra ter amigos, onde deixei tudo que eu conheço, parece que me encontrei nele. E isso é muito bom, eu me sinto vista, eu me sinto amada. Outras travestis, às vezes, passam a vida sem saber o que é afeto, e eu tenho certeza que eu já tive afeto pra uma vida só nesse meio tempo; e acolhimento. Eu tive outra família aqui que é a família dele que me abraçou e me acolheu, então, foi uma dualidade muito forte, mas que me possibilitou estar viva também, sabe? Onde, não sei, eu tive alguém que me deu amor e isso é muito bom. Alguém que entende minhas dores, minhas disforias, minhas angústias, meus medos e que abraçava essas dores comigo e normalizava sentir elas - porque a gente tem que normalizar algumas dores, porque ninguém é forte o tempo todo. E eu acho que foi essencial em tudo. Não que Bento seja o melhor local do mundo enquanto cidade, ou o sul, porque acho que são [lugares] muito conservadores, mas eu conheci e vim morar com uma pessoa incrível, conheci outras pessoas incríveis, conheci outras pessoas trans que somaram demais comigo e que já sinto como família também.

A mãe dele [do Léo] me chama de filha, nem meu pai me chama de filha. 

Foi uma distância de 1500 quilômetros que eu nunca esperei, sabe. Pra vir pra cá eu pegava três ônibus e dois aviões... E valia muito a pena. Sempre valeu muito a pena, né, eu tô aqui. Foi um fator muito importante pra eu tá viva, eu acho. Espero que minhas irmãs sintam isso também. Não necessariamente trans com trans, mas que outras pessoas deem afeto à elas; não necessariamente romântico porque a gente precisa de outros afetos, também.




Posso chorar? Tenho um recado, acho que pra mim mesma... Só vou tomar uma água pra hidratar porque eu to hormonizada e meu estradiol sobe (risada). 

O recado que eu dou é de que nunca duvide da sua força. A gente tem milhões de pessoas dentro da gente e a gente nem acredita que a gente vai conseguir usar essas forças dessas pessoas pra gente prosseguir. Eu falo "pessoas" porque a gente nunca tá sozinho em um certo ponto, a gente sempre vai ter alguém dentro da gente que vai ajudar a gente a passar por processos ou dificuldades. A gente é muito forte, sabe? A gente tem uma força que a gente nem imagina, não que isso seja bom, que a gente tenha que ser forte o tempo todo, porque isso significa que a gente passa por muitos obstáculos, mas a gente tem uma força e um brilho que é nosso e a gente tem que investir nele. Por mais que as pessoas digam que não, a gente tem uma verdade da gente, que ela brilha, brilha muito mais do que o que as pessoas falam. Então acho muito que a gente tem que acreditar na gente, no nosso potencial e na nossa força. Por muito tempo eu pensei que eu era fraca e sozinha, mas tem algumas conexões que são muito além de físicas, que dão força pra gente. Então acho que é isso: a gente sempre acreditar que a gente vai conseguir passar por isso com a força que tá na gente mesmo, porque a gente passa por muita coisa. A gente vai conseguir. Prosperidade. 

Eu choro...

A gente merece estar juntes e bem. É um local nosso. Não tem as pessoas colocarem a gente em um lugar de ruim ou em um local em que a gente se sinta mal, a gente tem que ocupar espaços onde a gente se sinta bem. A gente tem que se sentir bem porque a gente merece! A gente não tem nada diferente dos outros. É muito ruim carregar isso [ideia de que não merece] por muito tempo. A gente não faz nada, a gente só quer andar na rua... As pessoas não conseguem conceber nossa existência, a gente tem que impor nossa existência... Eu existo, eu sou apagada... É muito louco isso.







Ávine
1996
Travesti, transfeminista e militante. Produtora de moda e criadora de conteúdo no Instagram! Formanda em Arquitetura e Urbanismo, e pós graduanda e Comunicação e Produção de Moda!

Travesti
ela/dela
@euavine
1 ano e 25 dias em hormonização


*Ávine é de Bento Gonçalves (RS) e esse ensaio foi realizado em janeiro de 2022
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Esse projeto é idealizado por Gabz, trans não-binário e multiartista. Ser Trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemens, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. 
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

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Autorretrato de Gabz revelado por Eloá Souto, digitalizado por Lab:Lab

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