Me chamo Christopher Akin Lemos, conhecido nas rodas de rap e de slam como Preto Chrix. Eu sou um empreendedor, tenho a minha barbearia Topher, que é uma elevação de auto estima para pessoas como eu. Sou rapper, faço música, também sou poeta, sou um poeta slammer, que é um poeta que confronta, um poeta marginal. Poesia de slam é poesia marginal, poesia de rua, que quebra muito esse estereótipo da poesia ser coisa feia e tal. É minha forma de sobreviver, através da poesia. Da Topher eu enfrento o mundo, pra além da sobrevivência eu existo. Eu não só sobrevivo, eu vivo. Eu estou vivo, minha forma de revolução é estar vivo.
Faço fotos também. Volta e meia o pessoal me chama para posar de modelo. Dizem que eu sou bonito, dizem que dá pro gasto. Acho que é isso. Sou um homem periférico, trans, retinto. Nascido e criado na Cruzeiro, tenho 26 anos e há 26 anos moro aqui. Sou uma grande referência na minha comunidade. E viva as crianças.
Eu escolhi trazer o ser trans para dentro da Cruzeiro porque eu acredito muito no nosso começo. Acho que a gente tem que saber de onde a gente veio pra saber pra onde a gente vai. Dá muito propósito fomentar as nossas raízes, porque daí não é qualquer evento que derruba nossas ideias, não é qualquer divergência que faz com que a gente desista do que a gente quer. E até o fato de saber de onde a gente veio faz com que a gente saiba o que a gente quer também. Trazer o ser trans para cá é saber que se eu não trouxesse isso agora, nunca iria acontecer, porque não é o um lugar onde existem muitas pessoas trans e também as pessoas trans que existem dentro do morro dificilmente furam essa bolha de sair de dentro do morro pra acessar pessoas como tu, por exemplo. Acho que trazer para cá é dar sentido, é dar propósito, é falar mais do que sobre mim, mais que sobre o Preto Chrix, acho que é falar sobre a comunidade. Bem conforme a gente foi andando, tu viu, a gente encontrou diversas peças dentro da comunidade que fazem ela ser o que ela é. Acho que o interesse nesse lugar é de trazer não para casa, mas para o lar, entender o que eu sou e que eu estou aqui. A gente só tá aqui porque algo aconteceu antes e esse antes merece ser celebrado.
Te levei pro cenário de Olhar de Criança também. Um pouco de algumas esquinas, becos e vielas de Olhar de Criança estão presentes dentro do ensaio, a gente fotografou ali. Acho que ressignificar esses espaços um ano depois - exatamente em janeiro do ano passado foi a gravação e agora em janeiro estar ali com as fotos - vai dar muita margem pra pensar e refletir sobre isso. Aprender com um novo Christopher que está ali. Eu sentei no mesmo lugar, com o mesmo cenário, mas eu já não sou mais a mesma pessoa. BK fala disso com muita sabedoria em "Tudo mudou e nada mudou", inclusive. E acho que muito nesse lugar de ser puro e verdadeiro.
Ontem, conversando com a minha excelentíssima esposa, falei pra ela sobre querer trançar o cabelo, não pro ensaio, mas tava a fim de trançar o cabelo. E aí ela me disse "ah, tu tá com uma cara de que quer estar muito tu, acho que a trança talvez não vai transparecer isso". E aí eu me dei conta de que é real. Acabei de cortar o cabelo, foi uma nova fase. Logo eu sendo barbeiro, eu entendo a importância do que é um corte de cabelo novo, o que isso simboliza. É a minha forma de comunicar para o mundo de que estou em momento de transição e estou num momento muito recluso, onde pouquíssimas pessoas estão me vendo pessoalmente. Eu estou muito fechado comigo na minha casa, literalmente. Então te trazer aqui fala muito sobre o momento em que eu estou, de não querer sair para fazer algo e sim trazer as coisas até mim, usando a lei da atração assim pra tudo. Me sinto muito nessa pira assim ultimamente, e pretendo estar nos próximos meses.
Olhar de Criança é a minha forma de enxergar a Cruzeiro, é uma forma que eu encontrei de comunicar para o mundo o que é Cruzeiro para além dos holofotes do crime e violência, apesar de ter falas sobre crime e violência dentro da letra. Olhar de Criança é uma música e um clipe, mas também é um projeto. Um projeto que dura 26 anos, que é o Christopher aqui dentro e que a gente transformou em dois dias de evento gratuito para a comunidade, com alimentação, mutirão de grafiteiros. A gente visitou alguns dos grafites realizados dentro da comunidade com letras da música, que é uma forma de potencializar. O clipe é inteiramente focado nas crianças. Eles ficam o tempo todo na frente das câmeras. Acho que é uma forma também de eu poder mostrar pra eles que eles podem mais, mais do que ficar nas esquinas, porque é o que eles vêem, é a realidade do dia a dia deles. Que eles podem sim se tornar repórteres - eu consegui trazer o Seguidor F aqui pra dentro para entrevistar as crianças. A gente tá falando de um repórter preto, retinto, de Black, microfone na mão, cameraman. Então as crianças explodiram de referência naquele dia. É a minha forma de potencializar um pouco o que eu posso fazer. Não é nem sobre o que eu posso fazer, mas sim sobre o que as crianças podem fazer por mim. E foi muito disso assim, energizar real. Tanto é que meu 2023 foi excelente, porque janeiro começou com Olhar de Criança onde eu me alimentei daquelas crianças que me viam como ponto de esperança, mas na verdade elas que são o meu ponto de esperança, porque elas são referências que eu não tive na idade delas. Então provavelmente o futuro delas vai ser de excelência para as crianças. No YouTube tem inclusive o documentário de Olhar de Criança, além do clipe.
"Prestar atenção" é uma característica muito rara hoje em dia e é uma característica de nós, filhos de Dona Santa, eu e meus dois irmãos. A gente lida com pessoas, né, esse é nosso trabalho. Meu irmão é palestrante focado na adolescência. Ele gosta muito de lidar com pessoas, ele escuta muito as pessoas. A minha irmã é referência enquanto cuidadora, ela é afetuosa demais e escuta muito, sempre gostou de cuidar das pessoas. Eu vejo que as pessoas não fazem isso hoje em dia. Quando eu percebi esse poder que eu tinha - que pra mim não é um poder, é algo do dia a dia - eu usei a meu favor. As pessoas gostam muito de calar as crianças, achar que as crianças não sabem nada, é "fica quieto", "não fala", "não se mete nos assuntos de adulto". Mas eu vejo as crianças como a saída para tudo de ruim que a gente tem no mundo. Acho que se tu educa aquela criança de uma forma em que ela seja uma pessoa afetuosa, coloca ela num ambiente afetuoso, aquela pessoa vai crescer e vai ser uma pessoa afetuosa. É uma fórmula muito básica né, mas que se ignora muito, porque as pessoas estão sempre ocupadas demais com estar vivos e sobreviver. Isso é uma característica de comunidade, né, onde as pessoas estão sempre tentando estar vivas, sobreviverem, ao invés de viver. Elas não podem se dar ao luxo de estar vivendo, porque, bom, existem diversos conflitos dentro da comunidade. Então poder dar essa calmaria para as crianças, ouvir elas, entender o que elas têm a dizer, potencializar elas, mostrar que existe mais do que elas estão enxergando, colocar elas em espaços de crescimento… Para mim é… Como não fazer, tá ligado? É a solução pra tudo.
Eu tenho uma poesia que eu falo "hoje eu já não sou mais filho, mas cada mãe do morro me conhece". Entre 2020 e 2022 eu trabalhei como líder comunitário dentro da comunidade, graças à CUFA. Eu atendia mais de 300 mães por mês. Minha cabeça explodia de tanta mãe que eu lidava, com tudo quanto é demanda, assim: um CRAS da vida, um rancho, um gás, uma internet, um celular. Era muita coisa, mas eu vejo que foi um momento essencial para mim. Minha mãe faleceu em abril de 2021. E em maio, no dia das mães, a gente tinha um evento com todas as mães do morro.
Aconteceu ali na mesma rua do Postão, a Sobrinho, onde existia a República, que era uma casa de acolhimento da CUFA para pessoas que não tinham onde ficar. A gente fez um evento ali para as mães da comunidade. E eu lembro que foi um dia muito duro pra mim, porque eu subestimei o poder daquele dia; esse era o primeiro dia das mães que eu tava sem minha mãe. Mas eu não tinha parado pra pensar nisso, porque eu tava tão imerso em cuidar das outras mães, das mães da comunidade, que eu não tinha me dado conta que eu ia pra um evento do dia das mães, onde eu estaria assessorando várias mães e a minha mãe não estaria ali. E foi um dia que marcou muito, me marca até hoje porque eu percebi que por mais que a minha mãe não tivesse mais aqui, as mães do meu morro me conhecem desde que eu era um remelento da vida. Isso faz muita diferença, é bom ter pessoas que sabem da onde a gente veio. Dá sentido, né? Pessoas mais velhas dão sentido ao que a gente faz. Por exemplo, se tu vai te formar, é importante [ter] as pessoas que estavam lá contigo antes de iniciar esse processo, na hora da conclusão elas dão sentido àquilo.
A minha comunidade me lembra muito de onde eu venho. Hoje eu acesso lugares que a maioria das pessoas no meu morro não faz nem ideia que existem, ou que é possível. Então trazer de volta é o mínimo que eu posso fazer para dar sentido e ser coerente com a minha existência. O morro pra mim é o lugar de eu reenergizar e capacitar. Eu me capacito quando capacito outras pessoas e mostro a elas que é possível. Muito num lugar de amenização; assim; amenizo a dor. E elas amenizam a minha. Tanto as crianças quanto as mães. Às vezes tô num dia difícil, num dia triste, ou num dia complicado, poxa eu sou um empreendedor, minha cabeça explode, eu tenho que lidar com tudo: sou eu que administro, que faço gestão, administração financeira, sou eu que atendo, sou eu que marco. Então tem dias que a minha cabeça tá a mil, e aí às vezes eu to andando de jaleco na rua, desço de um carro, ou tô indo num cliente - que eu tenho poucos clientes no morro, infelizmente - criança passa por mim "ah que tri o teu jaleco Chrix!" Às vezes eu passo fazendo um stories, gravando, quantas vezes eu gravo crianças, né, "pede pra me seguir aí!" Então esses são momentos que eles me salvam. Eles não sabem, eles me salvam diariamente. Nesse lugar de afeto, de cuidado, de me encontrar, de estar de pé descalço. O ego fica de fora quando eu entro no meu morro.
Eu vejo que minha existência trans, sendo quem eu sou, quebra muito essa coisa do difícil, do impossível, do árduo, porque é muito simples pra mim ser uma pessoa trans. É só mais uma das coisas que eu sou. Eu sendo uma pessoa retinta, um homem trans preto retinto, como eu sempre falo, meio que já tava me treinando para essa vida de ser uma pessoa trans.
Ser uma pessoa trans veio depois no sentido de eu ter consciência. Eu sempre fui uma pessoa trans, eu só não tinha consciência, mas eu sempre soube que eu era uma pessoa preta. Então esse lugar de obstáculo, dificuldade que a vida trans traz, eu já tive na minha vida. Tanto é que eu não posso dizer se o que eu tô sofrendo é transfobia ou racismo. Na maioria das vezes eu não consigo saber, não tenho essa certeza. Mas eu trago muito nesse lugar leve, de ser realmente uma referência para as crianças, no sentido de "tu é homem ou mulher?", "sou homem", "ah tá", pum, segue. Não tem aquele questionamento da vida adulta, que eu tenho muito com os adultos, "ah, tu é ele mas tu nasceu o que?", aí já vem um monte de perguntas que pessoas trans sabem o que é, né. Com as crianças eu vejo que é muito leve e eu consigo ressignificar isso pra elas. Então o que é ser um cara trans para mim? Eu acho que tornar leve, ressignificar isso para as pessoas cis e também para as pessoas trans. Eu acho que dá pra ser leve, sabe? Dá pra existir para além de ser uma pessoa trans.
Eu não preciso me mostrar uma pessoa trans. Eu só sou. Não teria nenhuma resposta de como a minha transgeneridade entra nisso. Acho que não entra. Ela só está ali, ela já é o contexto, ela já é um ambiente. E a partir disso tudo que eu fizer vai ser algo trans. Eu não preciso forçar para ser trans, eu só sou. Pensando na minha comunidade, é uma grande bolha que eu furo sendo eu uma pessoa trans aqui dentro. As pessoas não tem conhecimento, eu mesmo não tinha conhecimento de entender o que eram pessoas trans. Quando eu fui entender o que eram pessoas trans foi que eu entendi que eu era uma pessoa trans.
Então eu sou muito referência também nisso de "o que é uma pessoa trans? o Chrix!" Quantas vezes já escutei isso de crianças e adolescentes. E aí eu trago muito respeito. Eu tenho muito respeito dos jovens aqui e eu percebo que eu educo eles. Existe o meu afilhado mais velho, o Raí, que tem 17 anos. Eu fui a primeira pessoa trans que ele teve contato, e aí a partir disso eu comecei a inserir ele em espaços, já levei ele pra um Calçada Cuir, ele conhece Zaire. E aí explodiu a mente dele, porque ele é um cara favelado, preto, que pouco tem acesso. A família dele quase não tem estudo, mas ele tem referências trans. A partir do contato comigo ele parou de falar "traveco" que usava muito, foi algo que ele aprendeu com os irmãos dele. E aí ele ensinou os irmãos dele de que isso era errado. Eu vejo que sou um ponto de educação e por isso que eu me blindo também pra falar menos, escutar mais. A minha palavra tem peso duplo, triplo aqui dentro, porque eu sou a referência. Qualquer coisa que eles virem sobre pessoas trans, eles vão associar a mim. Isso me traz uma responsabilidade que por um lado é bom, mas por outro é ruim também, porque tem um peso, assim como toda responsabilidade.
Ser uma pessoa trans é ser uma pessoa leve, mas também é se questionar o tempo todo, porque o que eu sou não existe. Eu sou a minha própria referência. Nós dois somos pessoas trans e nós somos totalmente diferentes. Eu não posso te ter como referência; claro, eu posso porque tem qualidades em comum, mas eu não posso te ter como referência pra ser o que eu sou, porque o que eu sou, só eu sou. Só eu tenho a minha criação, só eu tenho a minha existência e vivência. Então acho que é muito de me questionar, entender o que eu faço e porque eu faço, entender o que é meu, porque muita coisa é do mundo, e às vezes eu estou só reproduzindo sem entender o porquê eu sou.
Pessoas trans já são fora do padrão. E dentro do meio trans eu já sou fora do padrão. É muito difícil encontrar pessoas retintas dentro das nossas bolhas trans, e pessoas que não se hormonizam, por exemplo, ou que tenham seios.
Então isso quebra ainda mais outra bolha que vai dentro da bolha. Eu alimento muito meu interior para que eu não fraqueje, porque senão eu vou reproduzir coisas que não sou eu.
No início eu sentia uma pressão externa, mas, ultimamente, a pressão tá interna. E aí eu percebo a diferença do que é do outro e do que é meu. Porque quando era externo era algo que só me dava gatilho quando eu tinha terceiras pessoas à minha volta me questionando e me chamando de "ela". E aí eu via uma falsa necessidade de precisar estar camuflado ou "passível". Ultimamente eu tenho sentido vontade de me hormonizar, mas é uma coisa minha que eu mergulhei comigo mesmo, assim, de entender as minhas necessidades e me enxergar.
Não é mais sobre como os outros vão me ver, e sim como eu quero me ver. Então eu tô internalizando isso ainda. É um processo que eu já tô ouvindo há muito tempo, desde o IRT (Inspira, Respira, Transpira). Inclusive, o IRT partiu dessa vontade de entender o porquê vocês se hormonizam, eu tava muito no modo aluno, assim. E a partir daí tenho absorvido.
Essa coisa do tempo não me pega, tipo, bá, quanto tempo vai levar pra isso acontecer, ou se vai acontecer. Mas o processo até lá é que me pega assim, esses questionamentos, eu tô sempre me questionando sobre o porquê que eu estou fazendo isso e se isso é meu. Até a forma de às vezes falar mais grosso, [o modo] como eu sento, como eu falo, como eu ajo… Isso eu tenho me policiado bastante para que não seja algo externo, que seja algo meu. Se não, o que sobra, né? Só sobra a casca.
É importante a gente se observar nesses momentos, como a gente age e como a gente se sente agindo assim. E porquê. E aí vem os porquês. Encontrar esses porquês é onde estão as verdadeiras respostas, e a verdadeira essência do teu eu, que nunca vai estar externo, é sempre interno. Sempre interno. Porque o que tu é, só tu é.
Não é sobre eu querer parecer homem. Lembro de a gente estar conversando no IRT e teve uma hora que o Bê falou - bá, até hoje isso me pega - que quando ele começou a hormonização não é que ele queria parecer homem, ele só queria se afastar do feminino. E é muito nesse lugar. Me fere essa coisa de ser associado ao feminino, Não que ser mulher seja uma coisa ruim, pelo contrário, o que seria da gente sem mulheres? Divindade pura. Mas é porque eu não sou. Então não faz sentido para mim. Normalmente sou sempre questionado quando outras pessoas trans me conhecem, elas acham que eu estou recém iniciando a transição. Quando perguntam há quanto tempo estou em transição e falo que já tô há seis anos, indo pro sétimo… fica aquela coisa...
Tem essa coisa, essa necessidade. Então se tu é trans tu tem que te hormonizar, como se não pudesse simplesmente estar de boas com teu corpo. O que traz aquela frase que as pessoas gostam de falar: nasci no corpo errado. Isso daí não é sobre se aceitar, acho que isso daí é sobre querer ser uma pessoa cis. E nós não somos pessoas cis. Como falei, a resposta tá dentro. Quem eu sou, meu corpo, me entender e me adaptar com ele, porque é ele que tá comigo todo dia, ele que acorda comigo e ele que vai dormir comigo. Não um corpo cis. É nesse lugar de auto aceitação. Quanto mais a gente mergulhar dentro de si mesmo, potencializar nossas qualidades, aceitar nossos erros, aprender com eles e melhorar… é a resposta pro mundo feliz. Qual o objetivo de sucesso? Eu acho que estar bem consigo mesmo, esse é o grande sucesso.
É muito apego ao corpo. E a essência? O que sobra para além do corpo? Eu tava lendo uma pesquisa, que dizia que até um ou dois anos a gente não tem noção corporal, a gente não tem ciência de que o eu existe. A gente só existe, a gente é só essência. Então, o que é um bebê? Um bebê é o máximo de inocência. Ele não tem noção do exterior. Então é muito de focar nessa pessoa, quem é essa essência que há dentro de nós? O corpo é só o nosso veículo para transitar nesse mundo físico, mas o que a gente tem que alimentar é nosso espírito, que é ele que nos guia diariamente. Por isso é importante a gente conversar hoje, porque eu estou passando por essa transição. Eu já estou fortalecendo o meu espírito, eu já tô encontrando as respostas dentro de mim. E isso tá me ajudando bastante, porque eu não me questiono mais em relação às coisas do mundo, coisas externas, no sentido de "por quê eu não tenho isso?" ou "por quê eu não sou?" Potencializando o que eu sou e o que eu tenho, valorizando e agradecendo.
Minha casa é muito importante. É a herança física que a minha mãe deixou para mim. Valorizando o trabalho. Eu tô entendendo ainda o tamanho disso. Eu sempre valorizei muito o trabalho. Trabalho é aquilo que te dignifica, aquilo que dá propósito para a vida. Minha mãe sempre foi sinônimo de trabalho para mim. Desde que eu me lembro, me entendo por gente, minha mãe estava trabalhando. Ela trabalhou durante décadas como doméstica. Quando eu nasci, ela foi trabalhar de gari, ela foi gari durante 13 anos. Então essa coisa do trabalho duro sempre esteve presente na minha vida.
Hoje em dia eu entendo que não é sobre trabalhar duro, é sobre trabalhar inteligente. E aí são coisas que eu tenho privilégio, porque minha mãe se sacrificou lá atrás para que eu pudesse ter esse momento de parar pra pensar, refletir, que foi uma coisa que minha mãe nem pode. Então minha casa é muito esse lugar assim de trabalho duro, de lazer, de segurança. E não importa o que aconteça lá fora, sempre vou ter minha casa aqui. Não romantizando essa coisa de certeza, porque nada é certo, mas o que já foi feito é certo. E o que já foi feito está bem aqui. Isso me potencializa.
Eu tenho as batatas da perna definidas, sempre tive muita batata da perna, assim como minha mãe. Ano passado eu ganhei um slam na Bom Jesus, e uma das premiações era uma tatuagem. Eu nunca tinha feito uma tatuagem, mas poxa, eu ganhei né. E aí eu lembro que quando eu pensei no que eu faria, foi de imediato, eu pensei "vou começar pelo começo". Minha mãe. Aí fiz um "1967" na batata da perna, muito nesse símbolo de minha mãe, trabalho, começo, pra onde eu tô indo, pra onde eu estiver indo eu preciso trabalhar, então nesse lugar de cura, de afeto. Eu acho muito interessante, porque a minha casa conversa comigo diariamente, assim. Eu me lembro dela desde o início, desde quando era pouca coisa. De ter uma geladeira hoje em dia, na infância não tinha geladeira. O lugar onde a gente tá gravando hoje em dia é uma área de serviço, mas aqui já foi quarto, já foi só o solo. A primeira parede erguida na casa foi aqui. Antes era só chão batido, minha mãe tava aqui numa primeira peça com meus dois irmãos e eu pequeno. Ela começou a construir sozinha. Pensar que a minha mãe sozinha, com três filhos, trabalhando de gari, construiu uma casa que antes tinha sete cômodos - agora tem menos porque a gente abriu um quarto... É gigante!
Ela não morava aqui, ela veio de Arroio Grande. Ela veio com nada, veio só com as crianças, separada do pai dos meus irmãos, que nós não somos do mesmo pai. Ela veio com uma mão na frente e outra atrás, com três crianças, e construiu uma casa. Pegou um terreno e construiu uma casa. Fez desta casa, um lar. Então vou sempre valorizar a casa, mas não pela casa, mas sim pelo que ela significa. Vou sempre olhar pros cômodos e lembrar como eram antes, lembrar da casa sem reboco, lembrar da casa com telhado ruim, lembrar da casa sem pia, sem geladeira, sem armário. Então, muito nisso. E é muito engraçado porque tem fotos de quando eu era criança, e a cozinha acabada, tinha nem chão, mas no armário, que tava tudo errado, tinha uns mucilon - que é caríssimo, mas minha mãe comprava para mim. E hoje em dia, depois de adulto, eu tenho essa noção, de ver o esforço que a minha mãe fazia para mim. Ela sempre dizia que eu fui o primeiro a usar fralda descartável, que meus irmãos usavam fralda de pano, que ela deixava de sair, as amigas dela saiam e ela ficava em casa com a gente. E eu só fui valorizar isso depois de adulto, porque só depois de adulto eu fui entender. Então [tinha] muito desse amor e afeto. Minha mãe não era muito de "eu te amo" mas ela era muito de se sacrificar por nós - então ela era muito de "eu te amo". A casa é um "eu te amo" gigante.
E foi minha mãe que me ensinou a amar o meu morro. Se tu acha que eu sou conhecido, tem que ver minha mãe. Muita gente nem sabe quem eu sou, só sabe que eu sou filho da Dona Santa. Eu via como ela tratava as pessoas na frente das pessoas e como ela lidava por trás da pessoa, quando a pessoa não estava. E foi aí que eu entendi o que era ser uma pessoa sincera, uma pessoa aberta, porque minha mãe era uma pessoa muito pura; agora [ela agiria] na tua frente é da mesma forma que ela iria agir quando tu não estivesse ali, para falar de ti. Então vem muito desse lugar de ensinamento da minha mãe, eu aprendi muito a lidar com as pessoas através dela. Amar as pessoas, valorizar as pessoas.
A gente está pisando no chão que ela quis que a gente pisasse. Acho muito poderoso isso. O poder da mudança. É muito querer criar seus filhos. Parece básico, mas não é o que normalmente as pessoas fazem. É muito louco, porque por mais necessidades que a gente tenha passado, nunca passei fome. Não tinha o que eu queria, mas eu não passei fome. Minha mãe sempre nos deu muita coisa, fez com que nos sentíssemos em casa, mas com muita humildade; com muita necessidade também Acho que essa abdicação de si mesmo para o outro eu aprendi com a minha mãe.
Como eu estava dizendo antes, tô em um momento onde estou me alimentando muito, regando as minhas raízes. Estou crescendo para baixo. E esse momento envolve eu ser egoísta. Eu tenho que dizer muito "não" para proteger o meu sim. Tô até lendo sobre isso no livro "A Única Coisa", é maravilhoso esse livro. Eu percebo que quando a gente tá num espaço em que a gente enxerga coisas que as outras pessoas não enxergam, temos a responsabilidade de fazer algo com isso. A escolha é nossa, fazer algo ou não fazer algo. E não fazer algo também é uma escolha. Mas equilíbrio… não existe equilíbrio. Eu já aceitei. A gente procurar equilíbrio é só querer se machucar, se mutilar, porque o equilíbrio não existe. O que existe são oscilações, altos e baixos. É saber identificar isso e a partir disso, agir. Por exemplo, falando do lado empreendedor, épocas sazonais, que são grandes épocas, por exemplo, a minha época do ano é dezembro. É um mês que sei que eu não vou ter dois segundos para ir no banheiro cagar. E eu não posso ficar querendo ter esse tempo, porque vou me frustrar e não vou ter. Então é muito de estudar e planejar para não se surpreender, para não se frustrar e fazer as coisas acontecerem, não deixar as coisas acontecerem contigo.
Por isso eu acordo cedo. Eu inicio quando nada iniciou. Acordo cedo para planejar meu dia, para entrar em contato comigo mesmo, para entender quem eu sou naquele dia, porque eu não sou a mesma pessoa de ontem.
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A Topher é o problema que eu decidi resolver no mundo. E é por isso que eu digo que eu vou ficar rico, porque vai ser consequência. Porque eu resolvo um grande problema no mundo, que é afeto. Afeto através de cura, autocuidado. A Topher é o modo que eu encontrei de fazer as pessoas enxergarem que dá para fazer tudo o que elas quiserem se elas se sentirem bem consigo mesmas. Mas não era isso no início. Como eu falei [antes da entrevista começar], eu vendia café na rua. Não lembro se a gente tava gravando já nessa hora. 2019 eu tava trabalhando num shopping, já fazia algum tempo. Comecei no início de 2018. Acho que foi até o que potencializou eu ser uma pessoa trans; quando eu decidi que eu era uma pessoa trans, eu comecei a trabalhar com público, então era todo dia lidando com mais de 200 pessoas com "oi, meu nome é Christopher, eu sou ele". Então assim, eu fiz isso até dizer chega, isso em shopping, dentro de um padrão do padrão. Então, tipo, foi muito louco. Eu literalmente comecei me rasgando, assim. Lembro que eu chegava em casa e chorava, chorava. Chorava horrores. Mas também foi um processo de meses que trouxe resultados durante anos. Hoje em dia tu não vai me abalar me chamando de ela, pode falar o que quiser comigo que tu não vai me abalar, porque a minha mentalidade está muito forte. Aperfeiçoei muito a minha mentalidade nesse momento. Foi quando eu decidi que eu não queria mais trabalhar para os outros, que eu estava batendo metas enormes e ganhando 50 pila a mais por isso. Aí eu procurei um curso em que eu pudesse aprender algo e que eu ganhasse por isso. Foi quando descobri a CUFA (Central Única das Favelas), aqui na Mariano de Matos, dentro da Cruzeiro. Eles têm o Centro de Juventude Cruzeiro. São seis centros de juventude na nossa cidade. O da Cruzeiro é o único que a CUFA administra. E lá dentro tinha vários cursos: barbearia, culinária, informática. Sei lá eu porque, eu fui para barbearia.
Nunca pensei em ser barbeiro, nunca nem tinha pensado nisso. A minha única experiência como barbeiro era a Manu, desde sempre toso ela com tesoura. E aí tá, beleza, vou fazer. Cheguei lá e era a professora Sônia Silveira. A gente está falando de uma mulher preta, de turbante e salto, de 69 anos, que dava aula para adolescentes. Quando a dona Sônia começou a contar a história dela, foi impossível eu não amar a barbearia. Ela começou com nove anos, fazendo o cabelo da mãe dela, porque a mãe dela desenvolveu Parkinson e não conseguia fazer o próprio cabelo. Então ela aprendeu a fazer cabelo, e começou a fazer das vizinhas. Hoje em dia, dona Sônia Silveira é conhecida no país todo. Ela dá aula no Senac, Embelleze, em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, ela gira! E ela parou tudo para dar aula de graça dentro da Cruzeiro, tá ligado? Foi quando eu amei minha profissão. Nunca vou esquecer da frase que ela falou: se vocês entrarem aqui achando que vocês vão cortar cabelo, podem ir embora, porque vocês vieram aqui para aprender a cuidar de pessoas. E a partir daí tudo mudou. Acho que aprender com uma pessoa mais velha, uma pessoa que já viu tudo quanto é moda, né - que agora a gente tá na moda do degradê e eu vejo que a maioria dos professores entra nisso. Ela veio com corte em tesoura, corte em camadas, veio outras pegadas, assim. Ela realmente me trouxe pra esse mundo da auto estima, de elevar as pessoas em possibilidades de fazer isso. Foi quando eu entendi o que era possível. Não era proposital no início, fazer cabelo de pessoas pretas e trans foi consequência. As pessoas se identificavam comigo e queriam cortar o cabelo comigo. Eu sempre muito aberto, trocava com as pessoas de forma inconsciente, não era nada planejado. Eu trocava, falava sobre mim, a pessoa falava sobre ela, e a gente "boom", juntos tínhamos uma terceira coisa. Aos poucos eu fui entendendo essa potência, de entender, porra, isso aqui é uma necessidade.
Quanto mais relatos eu tinha dos meus clientes, de que entravam em barbearia de rua e eram extremamente violentados, eu entendi a potência da Topher. Porra, eu tô conseguindo gerar um lugar de afeto, de cura. E comecei a observar como eu me sentia quando eu fazia isso. E a partir daí nasce o conceito da Topher, de elevar a autoestima das pessoas. Topher é a barbearia que vai até você. Mas não é nem sobre o deslocamento de ir até ti fisicamente. É de tocar, de entender, de explorar. Quantos clientes que nunca fizeram um corte diferente quiseram explorar e fazer porque se sentiram seguros, porque eu disse que era possível e a gente fez se possível. Então muito nisso, assim, nesse lugar de cura, de afeto. A Topher nasce numa forma de eu poder assumir as rédeas da minha vida e somar no mundo de alguma forma, resolver um problema. Estamos só no começo.
É sobre isso. Eu dou valor ao momento presente.
O que eu tinha de mais importante pra falar, pensando no projeto ser trans, que comunica com pessoas trans, era sobre isso, alimentar nossas raízes, entender que a resposta está do lado de dentro, todas as dúvidas estão do lado de dentro e as respostas também. O mundo externo, ele só serve para somar. Quando a gente olha com essa ótica de que o externo tem que só somar, a gente fica muito mais leve, muito menos na defensiva, muito mais entrando para ganhar do que entrando para não perder. Se alimente, se cuide, se conheça, principalmente se conheça.
Quando a gente se conhece, tudo fica mais fácil. Se a gente não se conhece, a gente não entende porque as coisas estão acontecendo, porque a gente tá reagindo dessa forma ou porque a gente não é de determinado jeito. Então se conheça, entenda e se aceite. Ou se não gostou de alguma coisa, muda, mas faça isso por si mesmo. Esse é o recado que eu deixaria: faça por si mesmo. Entenda que o único representante do teu sonho na face da terra é tu mesmo. Emicida fala disso com uma sabedoria esplêndida. Acho que quando eu entendi isso tudo ficou mais leve, tudo ficou mais fácil e eu comecei a enxergar o mundo de um jeito afetuoso e não de confronto. Apesar de confrontar muito, sou conhecido como um poeta que confronta dentro das rodas de slam, os jurados ficam com medo de mim, as pessoas ficam com medo de mim, porque eu declamo e meto o louco. Mas se eu tô te confrontando, e tu tá sentindo alguma coisa, é algo teu que tá comunicando contigo, não sou eu, eu sou só a forma que o externo usou para chegar até ti. Mas se algo está te machucando, se alguém está te machucando, ninguém tá fazendo nada, é tu que tá deixando fazer. É tu que tá se permitindo fazer isso. Assim como a gente se permite ser feliz, se permitir as lágrimas, chorar, tocar, a gente se permite também ser violado. Então não se permita. Fortaleça a tua mente para que nada ou qualquer coisa te atrapalhe ou te desvie do teu caminho. Saiba qual é o teu caminho e o destino.
É uma baita oportunidade poder comunicar; não tô falando só com as outras pessoas, tô falando comigo mesmo. As nossas palavras reverberam dentro da gente. Então poder reafirmar e falar isso, é daora saber que vai impactar outras pessoas, tem um outro espaço dentro de mim. E estar escorado na primeira parede desse terreno inteiro é significativo demais, quando vê a minha mãe até já sabia.
*ensaio realizado em janeiro de 2024 em Porto Alegre (RS), Brasil
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ser trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias, repensando um arquivo trans brasileiro.
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