Luka: Eu moro em Três Coroas desde sempre. Eu trabalho com teatro, trabalho num grupo chamado Tribu di Arteiros. Agora nesse momento de pandemia a gente tem feito mais projetos de vídeos, coisas assim, mais esporádicos os trabalhos. E tem também esse lugar no audiovisual. Trabalho com o marketing do grupo e tenho trabalhado nos projetos então que nasceram a partir desse empurrãozinho da Lei Aldir Blanc. Foram trabalhos em parceria com o Gustavo - a primeira edição de "Pra (a)colher" surgiu ano passado. Também inscrevi coisas com outros artistas. Ao todo passei em 11 projetos. Eu não tenho um trabalho fixo, mas eu tenho trabalhado muito nessas redes de pessoas que eu conheço, sabe? E assim vão surgindo outros trabalhos também. A partir de pessoas que estão acompanhando os nossos projetos. Então surge uma live, uma conversa pra participar… são trabalhos bem variados. 

Eu gosto muito de conhecer gente. Eu gosto muito de sair, de trocar ideia e conversar com pessoas. Eu gosto muito de conhecer gente além da forma habitual que a gente tá acostumado a conhecer gente. Eu gosto de conhecer gente falando sobre tudo, sobre qualquer coisa, sobre coisas muito íntimas. Eu gosto de conhecer gente através de abraço e de carinho, através de elogios, de uma dança, de um sorriso. Eu gosto muito desse lugar de conhecer gente de todos os lugares, pra onde isso pode ir. Desde um trabalho que possa surgir a partir desse conhecer gente, desde uma chamada pra sair, uma viagem. Gosto muito de estar com pessoas que eu não conheço. Muito. E conhecer essas vivências além da minha e outras visões de mundo. E aí eu vou criando mecanismos pra conhecer gente. Eu vou criando projetos, vou criando negócios. Vou criando essas oportunidades de conhecer. 






Gus: Eu nasci na cidade de Santiago, que é perto da fronteira, onde tem uma tradição gaúcha muito forte e as pessoas são do pampa. Aí, quando eu tinha 10 anos de idade, eu me mudei e vim morar em Bom Princípio, que é uma cidade colonizada por alemães. Então é um pouco diferente de lá. Eu sou formado em Teatro Licenciatura pela UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul). E trabalho como professor de Teatro - trabalhava né, porque eu me demiti do trabalho que eu tinha no Espaço da Arte, uma Associação de Arte-Educação. Eu dava aula de teatro pra várias cidades do interior do Estado. Era um trampo que me deixava muito feliz, me deixava muito contente por poder estar levando arte pras pessoas do interior. Porque eu sou uma pessoa do interior, então eu tive contato com a arte muito cedo, desde os 10 anos.

Como a Luka falou, a gente tá trabalhando com alguns projetos. E que tão sendo muito importantes pra mim porque eu acho que de alguma forma eu encontrei um propósito muito legal dentro da minha vivência enquanto pessoa trans e dentro da minha vivência enquanto artista, sabe? Eu acho que a gente tá conseguindo unir as duas coisas de uma forma muito bonita e de uma forma muito real. E eu fico muito feliz, porque eu fico muito realizado de estar conseguindo juntar a nossa luta LGBTQIA+ num geral, mas principalmente a luta trans, e podendo usar a arte que foi uma ferramenta fundamental no meu desenvolvimento. 

Eu gosto muito de conhecer outras pessoas, mas eu gosto muito de ficar sozinho também. Ah, eu gosto de ficar sozinho sempre. Eu gosto muito de organizar a minha vida, as coisas que eu vou fazer. De ficar na natureza e passear, conhecer lugares. E de viajar, de conhecer histórias de outras pessoas, de conhecer pessoas. Não tenho tanta facilidade de me comunicar e de me conectar com as pessoas quanto a Luka, então eu acho que faz uma ponte bem legal, com ela na linha de frente, conhecendo as pessoas e fazendo o primeiro contato e eu chegando atrás, dando um sorriso… Só fazendo um ponto né, que a gente é muito diferente. A Luka tem essa coisa de conseguir se expressar muito bem, ela consegue criar uma relação e uma conexão com as pessoas muito massa. Ela nunca viu a pessoa na vida dela e ela consegue chegar muito rápido, sabe? Tipo, eu gosto de conhecer as pessoas, só que eu não consigo fazer esse contato tão fácil. Acho que a gente tem um espaço de tempo e de escuta muito bom. E quando eu quero ficar sozinho, quando eu preciso ficar sozinho, quando eu preciso receber ou eu preciso dar… A gente ainda tá aprendendo a equilibrar esse movimento de cada um ter o seu tempo, sabe, mas a gente sempre se respeitou. Existe um respeito muito grande às nossas escolhas, então é super de boas eu falar "agora não quero", ou "agora quero".
Luka: A gente namora há um ano. E muitas coisas que acontecem às vezes são por conta de pressões externas ou por conta dos ambientes que a gente vive - porque somos pessoas que vivem com as suas famílias. Então às vezes é muito difícil pensar e fazer o que nós gostaríamos, no tempo em que nós gostaríamos. Mas a gente tem uma escuta grande e uma consciência também grande disso que tá acontecendo. A gente sabe que é por um momento.
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E esse lugar de conexão vem muito da arte, assim. Eu sempre gostei de conhecer pessoas e de trocar, mas eu tinha muita dificuldade porque eu era muito tímida. Aí a arte veio então com essa mão muito acolhedora e me levou pros lugares que eu gostaria de ir. E me levou pra um lugar de autoconhecimento também. Essa conexão com as pessoas vem muito de um trabalho que eu faço no grupo, que é de intervenção artística, fazer da rua o teu palco, sabe? A gente trabalha muito em feiras literárias e temos um projeto em que os personagens estão soltos nessa feira, livres, andando, e conversando com as pessoas. Aí a gente conta as nossas histórias e tal. E eu gosto de atravessar um pouco mais essa linha... Foi uma construção, o público foi me ajudando nesse lugar. E hoje eu já consigo atravessar essa linha, que é uma relação muito próxima do público, de ir além dessas histórias, de buscar o público, não esperar que o público venha até mim. E aí que eu vou também levando a minha vida assim, de às vezes ir nos lugares e trocar com as pessoas. Em qualquer lugar que eu frequento eu já tenho uma abertura maior porque eu já não tenho mais esse medo das pessoas como eu tinha, por conta desses trabalhos de intervenção.

Gus: Eu acho muito louco isso. A gente trabalha com a mesma coisa, a gente faz as mesmas coisas, a maioria dos nossos trabalhos são juntos. E a gente é muito diferente, muito mesmo. Tipo, eu também faço intervenção, eu também tenho essa troca direta com o público. E a arte não me deu isso, sabe. Eu acho que eu sou uma pessoa tímida até o momento de conhecer as pessoas. Quando eu tô em cima do palco, quando eu tô dentro do teatro, quando eu tô no meio da nossa intervenção, eu acesso um outro lugar. E uma das coisas que a transição me deu foi um pouco dessa coisa de… tipo, "não quero falar". Eu consigo enxergar claramente o antes da minha transição, de como eu era ativo, como eu falava muito, como eu me comunicava com as pessoas. E depois que eu comecei a transicionar isso mudou bastante. Porque eu não sentia mais essa necessidade de querer ser visto como eu queria ser visto antes. E eu não consigo distinguir se isso é um pouco de maturidade que veio com o tempo - eu comecei a transicionar com 20 anos. Ou se foi por causa da transição mesmo, sabe? Tipo, esse movimento de não ser tão mais ativo como eu era. De não ir tanto, de não conversar tanto com as pessoas, de ser mais meu. Porque eu acho que com a transição eu aprendi a me gostar muito mais. E aí eu não vejo tanta necessidade de, sei lá, ser exagerado, de ter essa comunicação com as pessoas tão, tipo... não to dizendo que a Luka tem isso, tá? Mas eu, sei lá, eu vejo muito o lugar da exposição. Eu acho que antes da transição eu me expunha de uma forma pra não ser "visto", ou talvez como uma defesa tipo "eu sou isso, isso e isso". E aí depois que eu transicionei, depois que eu assumi a transgeneridade, eu não precisei mais me expor. Eu não me expunha porque eu não tinha porque me defender de coisas. Eu acho que foram desamarras.

Luka: Esse lugar da arte é muito incrível, né. Porque quem consegue mergulhar profundamente nisso, ter uma experiência bacana, e pessoas condutoras que conseguem também acessar esses pontos em nós... transborda na gente um aprofundamento incrível. Um lugar de realmente se ver, se questionar e se olhar. Eu acho que eu entrei no teatro muito pra fugir de mim, pra viver outros personagens e outras coisas. E eu acabei vivendo o processo contrário. Eu acabei me conhecendo muito mais, me vendo. Porque não tem como tu viver outras narrativas sem tu estar inteira na tua. E aí eu tive então vivências muito profundas. Eu me conheci. E como isso já era latente em mim, de gostar de conhecer pessoas, isso foi aflorado. Eu acho que por eu ser tão tímida antes de fazer teatro que eu tenho essa vontade de conversar com todo mundo. Porque eu lembro do quão ruim era quando eu queria muito falar, quando eu tava com um monte de gente que eu não conhecia e eu queria muito falar, dar a minha opinião. E eu nunca dava, nunca abria a boca pra nada, guardava tudo pra mim. 

Eu acho que foi nesses lugares, por conta da timidez, que me faz querer hoje abraçar e gerar esse acolhimento pras pessoas. Porque eu acho que essa aproximação com as pessoas gera um acolhimento também delas. Às vezes elas tem interesse de falar com a gente, às vezes tem gente olhando pra gente, e daí se a gente fala "oi, tudo bem", troca uma ideia, elas conseguem acessar o que elas gostariam de dizer, sabe, que tava guardado e elas não falariam. E isso é muito, muito gostoso. Então essa vontade de querer conversar com todo mundo na verdade é uma vontade de querer fazer com que as pessoas se sintam à vontade com uma presença que elas não conhecem. Eu gosto muito de proporcionar esse acolhimento. Não importa se é um lugar que eu não conheço, mas eu vou querer conversar com alguém que eu não conheça pra acolher ela nesse ambiente que não é meu, é nosso, a gente compartilha.



[fotografia analógica - dev/scan por lab:lab]




Luka: Eu vivi uma experiência com o teatro em 2018 numa oficina chamada "O Ator e Sua Verdade", que é pra atores e não atores. Era uma imersão de uma semana inteira. Eu já conhecia a pessoa que conduzia o encontro, e ela foi muito profunda em tudo que ela trouxe de exercícios. Foram sensíveis demais. E aflorou em mim… Ela chegou em pontos da minha infância que eu já não lembrava mais. Quando eu era menor eu tomava antidepressivos porque eu tinha medo de crescer, eu não queria crescer. Eu chorava porque eu não queria uma vida adulta, não queria perder as pessoas que estavam comigo. Eu tinha medo da mudança e de crescer. Síndrome de Peter Pan. No fundo eu acho que eu tinha medo de crescer porque eu era vista como um menino. 

Eu vivi uma época que eu passava muito tempo sozinha em casa, o meu pai saia bastante e a minha mãe trabalhava fora. E eu brincava muito com as roupas da minha mãe, com tudo que era dela, e tinha acesso a muitas coisas. Então - bem indo pros estereótipos - eu colocava peito, ficava o dia inteiro montada. E eu era muito menor. E tipo, eu sonhava, assim... eu já me peguei muitas vezes sonhando que, ah, se um dia eu fosse uma mulher, talvez eu não viveria no amor dos meus pais. Talvez eles não entenderiam. E aí eu queria sair disso, sair de não poder mais estar com eles. Eu tinha medo, porque eu gostava muito de estar com eles.

Então ela foi fazendo essas ligações assim... Eu não percebi tudo de imediato, mas foi aflorando durante aquele início de ano. O ano passou, nem me dei conta. Naquele curso a gente até fez uma apresentação individual, ela me envolveu com um lençol - porque eu adorava brincar com as roupas da minha mãe e tal, fazia até lençol de vestido. Ela me deu um lençol e eu fui levando pra um lugar de vestido. Aí, tá, eu me apresentei e tal. Durante o ano eu comecei a mudar toda a minha estética, sem perceber, sem fazer ligação. Eu fui adotando outro tipo de roupa, outro tipo de visual. E eu fui aflorando. Então eu acho que a arte tá muito atrelada a esse processo de reconhecimento. Foi através dela que eu fui me reconhecendo inconscientemente pra um lugar que eu não sabia qual era. E quando eu tive acesso, eu fui me identificando primeiro como uma pessoa não-binária. Foi ano passado, não faz muito tempo. Sabe quando tu vai... Quando tu tem acesso ao conhecimento, sabe, algo expande, tu começa a sentir que tudo faz sentido. Eu tive conhecimento e comecei a ter acesso a referências de pessoas, primeiro não-binárias, depois travestis e trans. Eu fui me reconhecendo nesse lugar, fui vendo e me questionando muito sobre isso. Porque a arte me levou pra esse lugar também, de questionamento. E eu acho que é muito isso, sabe, a gente cresce, vão construindo... a gente vai construindo uma coisa... Mas aí a gente vai começando a questionar porque essas coisas nos apertam, a gente acaba não cabendo mais nessas coisas, e daí a gente acaba transcendendo. A gente vai se questionando e é a partir desse processo de se questionar que a gente vai desconstruindo. E reconstruindo outras narrativas. E aí eu tive acesso a tudo isso, a essas referências todas e me encontrei então como uma trava! (risos)

Enfim, eu tô nesse processo de reconhecimento ainda faz... Foi basicamente esse ano que eu senti que eu poderia externar isso. Através também de referências de travestis que têm a mesma estética que a minha. Porque a pessoa não-binária caminha, transita, entre o masculino e o feminino. E o masculino já não tá há muito tempo mais comigo, esse lugar do masculino, enfim, eu não enxergo. E aí esse lugar da não-binariedade tava comigo só por conta da estética, que vem de um lugar de estereótipo. Quando eu tive acesso a essas referências, nossa, foi uma paz de espírito. Ai, sabe quando parece que tem alguma coisa te incomodando, te incomodando no teu corpo e tu não sabe o que é, e aí tu acha isso? E tu tira isso de ti. Tanto que, por exemplo, o Gus também começou a pintar as unhas faz pouco tempo, começou a desconstruir essa imagem de transmasculine, essa quebra do que é ser masculino. Por conta dos estereótipos. Foi?

Gus: Sim. Eu acho que a arte também foi fundamental no meu desenrolar, sei lá, do meu eu. Eu falo que eu sempre fui uma criança trans. Sempre. Sempre, sempre, sempre. Eu nasci trans. É isso. E eu lembro que quando eu morava na outra cidade, quando chegou naquele momento que os meus pais não escolhiam mais as minhas roupas e eu passei a escolher, eu sempre me vestia com bermuda, camiseta. Porque pra mim era muito mais confortável do que usar um vestido ou uma saia. Era muito mais confortável estar sendo aquilo. De usar aquele tipo de roupa, de brincar com aquelas coisas e não com as outras.

E eu lembro que tipo, na minha cabeça, a minha primeira recordação trans foi quando eu ganhei uma boneca dos meus pais - e veio embalado em um pacote né, a boneca vinha numa caixa e era super grande. Lembro que os meus pais chegaram com aquela caixa toda empacotada. Eu olhei aquilo e "nossa, isso vai ser o brinquedo mais legal do mundo, vai ser o maior carrinho", sabe? Quando eu abri e era uma boneca... Nossa, eu fiquei muito triste. Porque eu sempre brinquei com vários carrinhos. O meu pai trabalhava numa concessionária e ele tinha um volante de caminhão que tava por lá e ele levou pra casa aquele volante. E o volante tinha um cabo e eu cravava ele no chão e, meu, eu passava a tarde inteira dirigindo aquele carro. Tipo, eram essas as minhas brincadeiras. Eu corria muito, eu subia em árvore, chutava bola, um monte de coisas. Mas era uma coisa que não era consciente, sabe, eu não ficava "ai, isso aqui é coisa de menino, vou brincar com isso porque é coisa de menino". Não, eu simplesmente pedia isso e os meus pais me davam, sabe. E daí quando eles vieram com essa boneca foi uma decepção, porque eu realmente não tava esperando por uma boneca dentro daquela caixa gigantesca. Mas tá, beleza. Eu fiquei com aquela boneca e, meu, a primeira coisa que eu fiz foi cortar todos os cabelos dela, deixar ela careca. E aí eu tirei a roupa dela, que era um vestido, pedi dinheiro pra minha mãe, fui numa loja e comprei roupa de bebê "menino". E vesti a boneca de "menino". Na verdade eu tava expressando o que eu sentia dentro de mim através daquela boneca. Quando eu transformei a boneca em boneco, daí eu brincava com ele, sabe. Brincava que era meu filho e tal. Só que eu continuei usando uma brincadeira de "menina", mas com aquela transformação, assim, com aquela coisa que eu tinha conseguido tirar de dentro de mim. Tipo, "tá, beleza, vou brincar disso, mas porque agora eu quero brincar, porque agora é um menino". Esse foi um dos primeiros traços da transgeneridade na minha vida.

E enfim, eu fui crescendo. Eu tinha um irmão mais velho, eu morava com ele, e eu sempre cuidava as coisas que ele fazia. Era quase como um espelho pra mim. Quando ele ia se encontrar com os amigos ele passava desodorante e eu achava muito legal ver o meu irmão passar desodorante. Quando ele saía e eu ficava sozinho no quarto eu ia lá e passava o desodorante dele, fazia as coisas que ele fazia, sabe? Lembro que eu cortei meu cabelo bem curtinho, que nem o dele. Daí as pessoas me viam muito como um menino. Só que eu não gostava quando as pessoas me chamavam de menino, me tratavam no masculino, sabe? Porque eu não era. E de uma certa forma isso me afetava. Porque por mais que eu gostaria de ter sido ou de ser, eu não era um menino. E quando me tratavam no masculino era quase uma ofensa pra mim. Eu chorava, me sentia mal. Então, sei lá, durante toda a minha infância, minha pré-adolescência, eu estive nesse lugar. E quando eu entrei pro teatro foi um lugar muito bom, porque eu sempre acabava me expressando no meu vestir, nas minhas ações, no meu existir. Eu sempre me expressei de uma forma "masculina", digamos assim, falando nos estereótipos. Quando eu entrei no teatro eu pude aflorar muito mais isso, sabe. Porque daí eu podia ser um menino. O meu professor deixava eu fazer personagens masculinos, então eu me senti muito bem ali, eu me senti muito acolhido. Eu podia ser quem eu era, falar do jeito que eu falava. E as pessoas não me julgavam, elas me tratavam com respeito, me tratavam com carinho. Então o teatro foi muito fundamental nesse período de aceitação, quando eu, na escola, já não era mais aceito, porque as pessoas sabiam que eu era uma menina. E aí eu sofria bullying, eu ouvia coisas que eu não queria ouvir. No teatro tinha esse espaço de acolhimento. Eu fiquei muito apaixonado por isso, foi uma das coisas que me fez ser apaixonado pela arte, esse lugar de poder ser. E isso fez total sentido na minha vida. Não podia ser outra coisa se não isso, sabe. 

Aí eu fui pra faculdade e tive contato com outras pessoas, com pessoas da comunidade LGBT, mas principalmente da comunidade LG, que eram as meninas lésbicas e os meninos gays. Então eu me senti muito em casa ali, eu me senti muito bem, eu me senti abraçado... Eu me senti pertencente ao comum, sabe? Dentro daquele espaço. Quando eu entrei na universidade, inconscientemente as minhas cenas, as minhas escritas, tudo voltava pra esse lugar do pensar do porque os meninos podiam fazer tal coisa e as meninas não podiam fazer. Isso foi cada vez crescendo mais assim. Teve uma cena que eu fiz numa cadeira de atuação onde eu falava sobre a transgeneridade sem saber da existência dela. Eu tomava pílulas, e a última parte da cena era eu com um canetão em cima de um cubo desenhando a cirurgia no peito. E eu nem sabia que isso existia! Eu não tinha tanto acesso a isso. Essas coisas foram, através da arte, saindo de dentro de mim. Até que um momento chegou em que eu não aguentava mais, eu não aguentava. Eu precisava entender o que tava acontecendo. Foi nesse momento que fui pra internet, fui pesquisar, fui atrás desse conhecimento. Tipo, "meu, isso não é normal, eu acho que tem mais pessoas que sentem a mesma coisa que eu", sabe. E quando me deparei com um vídeo de um cara que mostra a transição dele de 8 anos, as fotos dele antes e as fotos dele hoje depois da transição... foi tipo: "caralho, é possível, isso existe, mais pessoas passam por isso". Foi um momento que esgotou, assim, porque eu já não aguentava mais, as coisas já tavam saindo de dentro de mim, eu só não tava olhando pra elas com o foco que precisava. Quando eu me reconheci em uma outra pessoa, quando eu me identifiquei com uma outra pessoa, eu vi as possibilidades que podiam existir, que eu podia me transformar, que eu podia viver aquilo. E não precisar mais me esconder. Então a arte sempre foi esse abraço que eu precisei. E um empurrãozinho. Eu acho muito legal como as coisas foram saindo assim de dentro de mim, sem eu saber, sem eu ter muita consciência sobre isso.

Ocupar esses lugares hoje é muito bom. Ter essas referências, ter essas pessoas que, enfim. Como a Luka falou... Eu lembro que quando eu comecei a transicionar eu evitava muito o feminino. Muito mesmo. Então eu me sujeitei a coisas que eu não queria me sujeitar, mas eu me sujeitei porque eu queria ser lido como um homem. Logo no início as pessoas me confundiam muito, me chamavam de gay, gayzinho. Porque eu era afeminado. Eu sou afeminado. Eu tenho 20 anos dessa construção, sabe. Só que hoje eu entendo que ela é minha, que eu aceito ela, que eu quero ter ela. Não é uma coisa que eu vou excluir da minha vida, porque ela foi importante no meu processo de me reconstruir. Então no início me incomodava muito ter esse jeito afeminado. Mas é muito legal como a transição nunca tem um fim, sempre vai evoluindo, sempre vai se transformando. E é muito legal o processo de escuta própria. De tipo, o que é meu e o que não é meu. Porque tenho que excluir totalmente a feminilidade da minha vida? Eu não preciso fazer isso. Isso é o que as pessoas esperam de mim, não o que eu quero fazer. Se eu quiser pintar a unha, eu vou pintar. Se eu quiser deixar o meu cabelo comprido, eu vou deixar. Se eu quiser usar brinco, se eu quiser usar maquiagem, eu vou usar. Porque pra mim faz sentido. Se pra cisnormatividade não faz sentido, foda-se. Eles que lidem com isso. Se pra mim faz sentido, eu vou usar.

Luka: E todo esse "feminino", esse "ser afeminado", toda essa "masculinidade", é tudo entre aspas. É tudo estereótipo. E a gente cresce... Acho que muitas das nossas angústias na infância vem por conta disso. Tipo, o Gus falou que ele ficava bravo quando chamavam ele de menino. E que loucura, porque nossos pais não podiam saber disso. Porque às vezes as nossas brincadeiras mais íntimas levavam a gente pra um lugar que a gente sabia mais ou menos qual era, mas fora daquele lugar da nossa intimidade a gente não tinha muita liberdade pra falar. Porque era considerado algo "feminino" ou "masculino", enfim, desse outro lugar. E isso é bem forte.

Eu lembro de uma vez, às vezes eu brincava de noite. Era quando eu fazia as roupas de lençol porque eu não tinha acesso ao guarda-roupas da minha mãe. Eu coloquei um sutiã dela, que eu tinha pego escondido, fiz um peitão bem grande, aí usei a coberta e tal... Fiz um vestido e deitei na cama, e eu fiquei brincando deitada, como se eu tivesse em pé, mas pra não fazer barulho. Mas nisso eu dormi. E aí meu pai me pegou (risos) e ele... Nossa. Eu não lembro direito porque eu tava meio que dormindo. Mas quando ele viu, tipo, ele arrancou o sutiã de mim, tirou.. Tudo que tava... tipo, peito e tal. E ficou muito chateado, bá, muito mal assim. E assim foi com todos os outros... os meus trejeitos ditos femininos, com todas as coisinhas, ele sempre foi podando ou sempre ficou incomodado. Sempre nesse lugar. Meu pai e minha mãe. Minha mãe um pouco menos. Ela faz mais agora... E como isso é louco, porque quando a gente tem acesso às coisas e a gente se transforma, a gente acaba transformando tudo ao nosso redor. Por exemplo, faz uns 3 anos que meus pais se separaram. E hoje meu pai namora outro cara. Porque ele teve acesso... porque ele me viu livre, me viu vestindo o que eu queria, me viu muito feliz com a verdade que eu encontrei. E aí ele se sentiu seguro pra viver os conceitos dele e pra abraçar as inquietudes que ele tinha. Hoje eu sei que ao longo da vida ele já traiu a minha mãe com alguns caras e que já aconteceram algumas coisas, sabe, mas hoje ele vive seguro pra abrir pra todo mundo que ele tem um relacionamento com outro cara. E a primeira pessoa que ele contou foi pra mim. E me contou de um jeito muito humilde, muito falando de mim também... Claro que ele contou do jeito dele, um pouco culpando a minha mãe de algumas coisas. Esse rolê meio machista de "ela só me incomodava", mas foi contando assim. E isso é muito gostoso de sentir, que a gente acaba sendo ponte para outras pessoas também se verem, se sentirem, sendo representantes. 


Gus: Eu tive um acolhimento na minha infância, dos meus pais, muito bom. Tipo, eles não ficavam me podando... Quando eu era criança eu era muito livre, eles me deixavam brincar do que eu queria, usar as roupas que eu queria. Quando eu cheguei na adolescência que a minha mãe e o meu pai me cobravam um pouco essa feminilidade, tipo "porque tu não bota um vestido? porque tu não bota uma saia? fica tão linda". A minha adolescência foi um pouco mais dura em relação a isso, mas eles sempre foram muito de boas. A minha mãe me perguntava muito se eu gostava de meninas, ela questionava a minha sexualidade. E eu sempre falei que não. Porque eu tinha medo. Mas ela era aberta, sabe, porque ela me perguntava isso. Então tipo... Mesmo eu me sentindo acolhido em alguns momentos, eu sempre tive medo de assumir isso, de falar pra eles isso. Por mais que eu ache que de certa forma eles já sabiam que isso ia acontecer. Porque na minha infância eu era um piá, eu era um menino. E eles me davam tudo que eu queria. Eu sempre pensava que eu nunca ia poder ser um menino porque não existia essa possibilidade, mas que se um dia existisse essa possibilidade eu ia ter que esperar os meus pais morrerem [Luka: eu também pensava isso] pra eu poder ser, pra eu poder assumir isso. Porque eles iam ficar muito chateados, eles não iam me aceitar. E é muito louco porque eu era muito criança. E como que isso já tava na minha cabeça, como que isso já tava na minha consciência sem ninguém ter falado? Como que eu sabia que eles não iam me aceitar? Ou como que eu sabia que eles não iam reagir bem? - por mais que eles tenham reagido bem.

Luka: Realmente, tudo vem das construções que a gente vai tendo. Tipo, o meu pai era alguém que teve que fazer piada escrota. Então como se vai ter uma abertura pra falar de qualquer coisa, sabe? E aí tu cresce às vezes num ambiente que já tá te esperando. Um ambiente do universo - enfim, eu do universo masculino -, dentro de todos os estereótipos que esse universo carrega. E aí como que... Meu guarda-roupa cheio de roupa de "menino", tudo ao meu redor... Como que eu ia dizer que eu gostaria de ser outra coisa? A gente já entende isso como um erro, como algo errado. 






Gus: Eu nunca tive problema com o meu corpo, tipo "odeio meu corpo". Mas eu tinha muita disforia com o meu peito. E depois que eu fiz a cirurgia foi tipo... meu, mil maravilhas, me amo muito. E aí comecei a realmente construir o meu corpo como um lar, meu mesmo. Onde eu me sinto bem, onde eu me sinto seguro, onde eu gosto de estar. Então essa tatuagem representa muito o meu amor por mim, pelo meu corpo principalmente. "Lar" remete à casa. Faço essa relação de casa, de lar, de se sentir bem, de se sentir bem vindo, de me sentir acolhido... por mim mesmo. E achei que tatuar em cima do peito, do ladinho do coração e acima da cicatriz, tinha um significado grandioso.






Luka: Foi muito a partir do nosso relacionamento que eu fui tendo acesso a mais referências. Então esse reconhecimento também partiu do nosso relacionamento. Eu sinto que o nosso afeto foi me levando pra esse lugar de encontro comigo também.

Gus: Quando a gente começou a se relacionar, Luka se identificava como um homem gay. E eu me sentia muito inseguro com ela. Porque eu não sabia o que fazer. Eu não sabia como me relacionar, eu não sabia como eu me sentia. Eu acho que isso foi uma das coisas que fez eu me apaixonar muito, por ela e pelo nosso relacionamento. Essa escuta. Essa relação que aconteceu sem que a gente precisasse falar alguma coisa. E ela sempre fez eu me sentir muito confortável, em várias situações. Eu me sentia muito confortável na presença dela. E isso foi acontecendo meio que naturalmente, a gente foi encontrando limites, a gente foi encontrando gostos, a gente foi encontrando prazeres. E sei lá, parece que foi muito natural. Porque havia nela essa escuta muito grande pra comigo.

Luka: Em ti também. Também foi uma escuta muito grande pra mim. E também até do que eu não tinha noção, sabe? Até do que o meu corpo falava. E do que o meu corpo pedia. E ele tinha essa escuta e conseguia traduzir pra mim também. Isso foi bem gostoso, assim. Eu não lembro de verdade quando foi, o que marcou o meu reconhecimento enquanto pessoa não-binária inicialmente. Mas naquele período eu já tava muito nesse processo de transição, isso tava muito mais aflorado. Entrando em estereótipos, mas toda a minha caminhada já tava muito... dentro de mim eu sentia muito o feminino transbordando, mas mais o sentimento do que... Esteticamente era, né. Falando sobre padrões... Meu deus, me enrolei toda agora. (risos) Mas eu quero dizer que eu já estava caminhando nesse lugar da não-binariedade. 

Gus: Mas não tinha conhecimento sobre isso.

Luka: É, não tinha acesso a referências.

Gus: É, porque... Por exemplo, quando a gente se conheceu, Luka não se apresentava assim, mas se entendia como um homem gay afeminado. Isso foi uma das coisas que fez eu me encantar muito, sabe? Porque o jeito como ela assumia isso era muito lindo de ver. Como ela assumia essa coisa feminina, tipo, ela usava uns brincos muito compridos, e as roupas "femininas" também. E tinha essa postura muito forte de quem ela era. Me encantei muito por essa coragem.

Luka: Dentro desse relacionamento eu acho que uma das... eu já parei muito de - né, vamos abrir. (risos) Eu já parei muito de me relacionar com pessoas por questões sexuais. Muito mesmo. Porque eu sou uma pessoa muito sexual. (risos) E.. como é que eu posso dizer? Enfim, sou uma pessoa muito sexual então isso pra mim é um ponto bastante importante. Pelo menos foi. Talvez hoje eu ressignifique isso. Enfim. E essa questão sexual, nossa, eu tinha muita dúvida. Mas eu ia sempre, eu ia num processo mais devagar, porque a gente precisava se escutar. E se entender. Sexualmente falando, eu gosto muito...

Gus: Não me deixa envergonhado. (risos)

Luka: Não, de boas. (risos) Sexualmente falando, eu sou uma pessoa passiva que gosta de penetração. E eu tinha muito esse lance da dúvida de como que ia ser, porque a gente nunca conversava, era só ali no ato e a gente ia sentindo. E como que a gente ia fazer? Porque eu tô me relacionando com uma vagina, com uma vulva. A primeira da minha vida. Eu não sabia o que tinha que fazer. Então muitas vezes eu pensei "será que nosso sexo vai ser condicionado a eu ter que penetrar?", ou pode ser que ele nem goste de penetração. Até, no início, a gente tentava fazer penetração porque, sei lá porque. Porque olhando... é o que a gente... E isso foi transcendendo também, ao ponto que a gente foi se escutando e se sentindo. E enfim, a gente começou a se sentir mais à vontade nesses lugares e começamos a conversar sobre as possibilidades.

Gus: Eu acho que o mais legal disso tudo é que a gente pode construir o nosso sexo, entende? A gente pode construir os nossos prazeres mais uma vez longe de o que as pessoas esperam de nós. Tipo, uma pessoa que tem uma vagina e uma pessoa que tem um pau, o que elas fazem? "Ah, elas fazem isso". Não, tá ligado. Não é assim que funciona. E pode ser assim que funciona também, mas não é só isso, é pra além disso. Isso também foi uma das coisas muito incríveis do nosso relacionamento, sabe. Essa escuta, esse diálogo e esse espaço onde a gente construiu e a gente vai conversar sobre essas coisas. Porque por mais que a gente tenha as coisas que a sociedade cis espera que a gente tenha e que a gente faça, a gente não vai fazer. Porque pra mim não é isso, não é dessa forma que se dá. Então o nosso relacionamento sempre se construiu dentro desse espaço de diálogo, onde eu vou falar "pra mim é importante isso, eu me sinto mais confortável assim", etc. É muito legal porque a gente constrói um relacionamento do zero. Do zero. Sem expectativa de ninguém, sem nada. Sem nada. A gente entende as construções lá fora, a gente entende como funciona a cis-normatividade, a gente entende como funciona a heterossexualidade, principalmente nas relações sexuais. E elas não fazem parte da nossa vida. Então a gente vai construir o nosso relacionamento do zero. E os nossos prazeres, as nossas vontades, os nossos desejos, as nossas fantasias, tudo do zero, a partir do que a gente se sente confortável.

Luka: E desse lugar também de conhecer coisas novas, descobrir pontos, lugares e por onde transitar. Descobrir coisas muito gostosas que antes a gente não conhecia e que a gente não tinha se permitido a isso. Nós encontramos coisas muito gostosas que simplesmente só não nos permitíamos.

Gus: E é muito diferente das relações que eu tive antes. A relação que a gente tem hoje, sexualmente falando, é tipo, sei lá, mil vezes mais legal do que a que eu tinha antes, mesmo sendo com uma mina cis. Na época eu namorei quatro anos - dois anos antes da transição e dois depois. Então tipo, de uma certa forma também já tinha esse sexo estabelecido. Já tava dado. Tipo, duas pessoas com vagina, então vocês vão se relacionar desse jeito assim. E é muito legal de ter essa consciência hoje sobre essas coisas. De tipo, tá, somos uma pessoa com uma vulva e uma pessoa com um pênis, mas não vamos nos relacionar desse jeito. A gente vai transgredir isso.

Luka: Transcender.

Gus: Transcender isso. 




Luka: Esses dias a gente até assistiu um espetáculo online, da Ofélia, uma travesti que fala durante o espetáculo que infelizmente ela gosta de se relacionar com caras cis. E a gente ficou dialogando, né, o quanto isso pode ser talvez transfóbico. Porque o que diferencia o cara cis de um cara trans? É a questão da genital.

Gus: Todas as possibilidades que a gente tem hoje... Vamos supor que - eu acredito que ela estivesse se referindo ao sexo, né, ao homem cis ter um pênis e ao homem trans não ter um pênis. Só que, meu. Onde essa pessoa vive? A gente tem milhões de acessórios que podem ser usados pra satisfazer essa talvez insana vontade de ter uma coisa penetrando a pessoa.

Luka: Não insana... (risos)

Gus: Não, mas isso que tô falando -

Luka: ...mas só tipo, se fechar pras possibilidades, só por conta disso. 

Gus: Tô falando do fato do homem cis ter um pênis e ela pensar que talvez o homem cis vá penetrar ela e o homem trans não vá penetrar ela. Tô falando do fato de que a gente vai penetrar sim, de diversas formas, porque existem milhões de acessórios que podem trazer o mesmo prazer pra ela do que um homem cis.

Luka: É só por conta desse lugar da insanidade, assim, que não é talvez tão insana, é um ponto de prazer, mas daí limitar tudo por conta disso, sem pensar que existem possibilidades... Porque sim, dá sim pra penetrar. 

Gus: E aí será que ela teria uma mesma relação com uma mulher trans, por exemplo, que também tem um pau?






Luka: O Gus já tá nesse processo de transição há muito mais tempo. Na real a gente sempre tá. Somos pessoas efêmeras e, tudo bem, a gente tá sempre se questionando e às vezes não sabendo quem a gente é. Que bom que isso acontece, porque isso vai movimentando a vida. Mas digamos que na transição de gênero o Gus tá a muito mais tempo que eu. Foi ano passado/esse ano que eu comecei nesse processo de reconhecimento e afirmação. Socialmente eu sinto que as pessoas me leem muito e me veem muito ainda como um menino. Então às vezes o nosso relacionamento passa a ser um relacionamento homossexual. E...

Gus: Que não deixa de ser.

Luka: A gente é, óbvio. Heterossexual eu não sou. A gente é outra coisa. Às vezes eu também sinto que... essa questão da dúvida das pessoas. As pessoas são muito invasivas, elas têm muitas dúvidas e querem saber. Pessoas que me conheciam antes, provavelmente pessoas que conheciam o Gus já antes e que conhecem os relacionamentos da gente de antes, têm muita dúvida, de perguntar "tá mas e agora, como que tu faz", etc. Isso é muito ruim. Eu sinto um... ai, detesto. E a gente enquanto casal tá num processo também de reconhecimento enquanto um casal transcentrado. Afirmando sempre, às vezes muito mais a minha identidade de gênero, usando dessa afirmação, porque só o visual às vezes não chega e... Sei lá, eu me vejo muito nesse lugar de afirmação constante.

Gus: A gente não costuma andar muito em lugares onde a gente não conhece. Quando a gente sai na rua eu sou sempre a pessoa que fica cuidando as pessoas olhando pra Luka. Tipo, eu sempre, não sei, eu olho. Porque eu sei que as pessoas ficam olhando. Tipo... E elas não entendem e elas ficam nessa coisa de olhares e eu não quero que ela se sinta mal, sabe, quando a gente tá caminhando na rua. Eu quero que seja bom e que seja tranquilo como é pra todos os casais. Então eu sou a pessoa que tipo, vou ficar olhando pra pessoa até ela parar de olhar. Mas isso não acontece muitas vezes, porque as pessoas não tão nem aí, vão ficar olhando mesmo. Porque elas acham que elas têm esse direito de ficar olhando pra gente, tipo "ai meu deus, o que é isso", sei lá. Mas eu acho que a gente não... até hoje a gente não sofreu nada estando juntos. Homofóbico ou transfóbico, não me recordo. Eu acho que as pessoas até são de boas assim.

Luka: É, juntos a gente não viveu essas coisas, mas separados já. E juntos a gente costuma transitar por esses lugares des nosses amigues, nossas famílias. E lembrando que a gente tá há um ano nesse namoro. Tipo, a gente se conheceu no final de 2019 e logo já veio a pandemia. Os lugares que a gente vai também tem muito a questão da máscara, então às vezes as pessoas nem... sabe? Por exemplo, às vezes quando eu vou num lugar para comer e eu tô de máscara, as pessoas me chamam de "ela", usam o feminino comigo. Aí quando eu tiro a máscara pra comer ou alguma coisa, elas já mudam o discurso. Então assim, nessa pandemia, usando máscara e tal, às vezes os olhares são um pouco menos ainda do que talvez seriam se não tivesse máscara. Mas sim, a gente tem muitos lances visuais que um casal transcentrado normalmente tem. O lance da altura, tamanho. E gera esse lugar de atração pras pessoas. No sentido de, sabe, atração de circo, de entretenimento, de curiosidade. Esse tipo de atração. E às vezes eu sinto que tem pessoas me olhando - às vezes eu nem reparo porque o Gustavo já fez esse trabalho de encarar, olhar, enfim. Mas às vezes quando eu sinto esses olhares, eu vou pra um lugar que eu não gostaria. Às vezes eu até falo alguma coisa, mas normalmente eu encaro de volta. Eu encaro, às vezes eu paro, mudo, me posiciono bastante porque eu quero que a pessoa sinta o que eu também tô sentindo. Então eu dou de volta o que dão pra mim, assim, o que é ruim às vezes eu tento transformar. Mas esses olhares eu levo pra esse lugar de querer proporcionar o mesmo sentimento pra pessoa. 


[fotografia analógica - dev/scan por lab:lab]




Gus: E uma coisa que eu já venho pensando há um tempo é que, tipo.. Eu, não sei, eu acho que a Luka não passa muito por isso porque a minha passabilidade é muito grande, do tipo, eu sofrer algum ataque na rua ou em algum espaço público é bem pouco provável assim, quase mínimo. Mas pra mim não é assim. Porque eu vejo... Sei lá, a Luka tá o tempo todo batendo de frente com esse sistema. E às vezes eu fico muito inseguro, quando ela vai sozinha pra algum lugar. Tipo, esses dias ela tava vindo de Três Coroas, de ônibus, e eu tava na rodoviária de Novo Hamburgo esperando ela no carro. Aí eu vi o ônibus chegando e ela demorou MUITO tempo pra vir pro carro. E eu comecei a ficar muito nervoso, comecei a ficar muito ansioso, porque ela tava demorando demais, o ônibus já tinha chegado. Então, tipo, eu carrego muito esse lugar da violência que pode acontecer com ela a qualquer momento, entende? Eu comecei a ficar muito nervoso, eu comecei a mandar mensagem, a ligar. Em algum momento ela apareceu e falou que tinha ido no banheiro trocar de roupa. E tipo, sei lá, quando ela sai e vai pegar um Uber em algum lugar... Então eu tô o tempo todo mandando mensagem, perguntando "onde tu tá", se já chegou, se não chegou ainda. É uma preocupação que eu não gostaria de ter, mas eu tenho. E é bem ruim ter que lidar com isso às vezes, sabe? Um casal cis não vai passar por isso. O cara não vai ficar com medo se a namorada dele demorar pra descer do ônibus, ele vai pensar que talvez tenha acontecido alguma coisa, mas não que talvez ela tenha apanhado, ou talvez tenha sofrido algum tipo de violência. Então isso é uma coisa muito recorrente no nosso relacionamento, principalmente pra mim, do meu lado.

Luka: E daí tu acaba ficando nesse lugar de vulnerabilidade também. Às vezes se tu for ferido é muito porque tu estás em um relacionamento comigo. A gente passa essa visualidade de um casal gay. E aí... muito disso se dá na violência.

Gus: Isso é um direito nosso. Por isso que às vezes é difícil a gente frequentar alguns lugares. Por exemplo, aqui na minha cidade tem um pub que é bem famoso, tem várias atrações e a grande parte dos meus amigos vai lá. E a gente já namora há um ano e eu já fui lá algumas vezes, só que eu vou sozinho. Nesse um ano que a gente namora a gente nunca foi juntos. Eu nunca me propus a levar a Luka. Porque eu não quero que ela ouça coisas que ela não precisa ouvir. Ou que eu ouça coisas que eu não preciso ouvir. Ou que a gente passe por situações que a gente não precisa passar. Porque eu já estive lá e já sofri transfobia lá de uma mina que me conhecia antes da transição. E ela ficou dizendo que ela não ia me chamar pelo meu nome. Que ela ia me chamar pelo meu outro nome porque foi assim que ela me conheceu. Tipo, no meio de um bar. O que eu vou fazer, sabe? Foi horrível, foi uma situação péssima. Porque todo mundo ao redor tava tipo "meu, que mina escrota, que minha chata", e ela muito bêbada falando um monte de coisas, gritando. Então eu não vou... vou parar de frequentar esses lugares, que são lugares que a gente devia frequentar porque todo mundo frequenta. E eu não vou frequentar porque eu tenho medo de violência, não vou frequentar porque eu tenho medo de sofrer transfobia. E tipo a transfobia é a mínima, tá ligado, é desde o olhar. É desde a pessoa levantando de um lugar e indo pra outro. Ou vendo as pessoas rirem num canto.

Luka: Eu me considero uma pessoa muito corajosa, mas coragem não vai salvar minha vida. A gente deixa de ir em lugares assim, mas também, ao mesmo tempo a gente passa a ir em outros lugares que ligam pra isso, que fazem de tudo pra acolher a gente, que, nossa, nos abraçam de uma maneira gigante, que fazem festas exclusivas pra que a gente vá. Tem um bar em Igrejinha que a gente vai muito, o Sobrinhos, e lá eles nos acolhem muito, sabe. Quando eu sofri um ataque em Três Coroas, que eu apanhei e tal, eles fizeram maior movimentação, fizeram uma homenagem pra mim, num muro, pixaram lá uns negócios pra mim. Daí eu fui e todo mundo me abraçou e me acolheu muito. E pra mim foi tão importante, então a gente começa a olhar mais pra esses lugares também e a dar força, comentar. Porque esses lugares precisam crescer também, eles precisam ser vistos como pontos de acolhimento pra pessoas como nós. E isso também é bonito. É uma parte micro desse todo que é muito ruim. A parte micro que é boa. E é isso, eu não tenho muito medo de sair às vezes na rua e tal, eu não deixo de vestir algo que eu gostaria de vestir, mas é... É horrível precisar estar sempre prestando atenção em tudo pra correr se precisar. Pra enfim... é muito ruim.













Luka Machado
1998.

Atriz, artista visual, ativista, poetisa y pesquisadora de linguagens e visualidades decoloniais. A busca por redes de apoio e conexão de pessoas LGBTQIA+ têm sido norte de pesquisas para projetos futuros e suas mídias são portas de divulgação deles e sempre um convite a quem busca acolhimento y acesso a outras vivências LGBTQIA+.
Travesti.
Ela/dela.

Não hormonizada
@_lukkam



Gustavo Deon
1997.

Artista de muita alegria! Ator, diretor, professor de teatro e poeta.
Atualmente desenvolve projetos de acolhimento e visibilidade da comunidade LGBTQIA+ pela internet.
Transmasculino.
Ele/dele.

4 anos em hormonização
@gus_deon

*ensaio realizado em Montenegro (RS) em fevereiro de 2021.  
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Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por urgência.
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