É um processo doido pra mim toda essa construção que eu estou tendo. Eu fico pensando que é uma estratégia para que existam pessoas que possam se inspirar de alguma forma. Tanto com escrita, de não encontrar poesias. Mas também por não encontrar modelos, por não encontrar referências de mulheres trans, travestis, eu acabo me arriscando, me colocando em alguns lugares. E penso que estar modelo de alguma forma é um pouco para romper esses padrões, de estimular outras para que façam também esse processo.

Mas meu processo com a moda, com estar modelo, vem de muito antes, de adolescência, de ter muito cuidado com a pele, desfilar em casa, - minha mãe tinha um arsenal de roupas - de usufruir disso, não na presença dela, mas tinha esses acessos. Daí vem essa ideia romântica do que é ser modelo, essa glamourização. A partir daí eu fiquei pensando, pensava muito, só que sempre ouvia as pessoas falando que não, "tu não tem corpo pra ser modelo", "tu não é bonita o suficiente"... várias coisas começaram a me desestimular. Eu pensava em fazer faculdade de moda para estar nesse outro lugar de confecção de roupas, mas não sendo modelo. Foi passando o tempo e, depois da hormonização, acabou ocorrendo alguns convites para modelar. A partir daí que eu pensei que sim eu tinha um potencial estético para estar estando modelo. Eu comecei a gostar também disso.

E também na cena ballroom, de voguing, tem algumas categorias que são mais estéticas, tem o run away, que é um desfile. Então também, a partir do voguing, é um lugar que promove uma auto estima, um auto cuidado, uma auto valorização. A partir daí esses corpos, que até então eram fora do padrão, tu percebe essa potencialidade sabe. Por vezes eu fiquei questionando 'nossa aquela modelo ali ela nem faz tanta pose'... Porque eu fico também nessa pesquisa, de pesquisar gestos. Fico pensando, porque eu não ocupo esse espaço? E eu to agora num pequeno projeto de me fotografar, de pensar porque eu não posso estar, o que falta para que eu ingresse no mercado de moda formal?






Eu fui pra Montenegro porque eu entrei na faculdade de teatro na UERGS. E foi lá que eu me descobri Fayola de alguma forma. Foi um momento em que eu estive distante das pessoas que me conheciam muito, da minha família, e que eu também tive essa oportunidade de estar morando sozinha, em outro espaço e questionando meu corpo, junto de uma outra rede. 

E eu lembro do Lau, de Montenegro, que a gente conversava. Eu chamei uma vez ele, era um 19 de setembro, daí a gente combinou de se encontrar pra conversar. Lembro de falar pra ele 'acho que eu to me identificando enquanto uma mulher, acho que sou uma mulher trans, sou uma travesti, não sei... Tu não acha muito louco isso?'. Eu falando com ele, e ele dizendo que não, que não era uma surpresa para ele eu falar sobre isso. E que eu poderia experimentar também, de entrar nesse processo de hormonização e que se não fosse isso eu poderia voltar atrás. Encarar isso como processos assim.

Por mais que seja o interior, a UERGS trazia esse contato com a diversidade, mas a cidade em si era muito branca, muito preconceituosa. Me olhavam de um jeito diferente  - "quem é essa mulher?", "que coisa estranha é isso?". Mas eu não sofria tanta violência verbal e não tinha tanta violência como andar em Porto Alegre com medo de ser assaltada. Então foi um momento e um espaço importante para que eu pudesse estar começando esse processo.







Tem também a questão da faculdade. Dentro da faculdade é um outro rolê muito transfóbico, muito não preparado para outras corporalidades, para outros discursos. Falando um pouco desse contrato com a academia também, de que eu tinha um esforço muito grande em fazer as propostas que eram exigidas dentro da cadeira porque eu sempre tentava achar alguma relação com o meu corpo. Então eu sempre fazia um movimento de ler o que era proposto e ler outras coisas complementares para trazer um pouco do que eu vivo, pra perto da minha prática. Porque eu já era atriz antes de entrar na UERGS e várias das coisas que eu já tinha experimentado eu não via lá dentro. E isso me causava um pouco de estranhamento, de afastamento. E eu tentava de uma forma fazer com que as coisas se mesclassem, mas era bem cansativo estar pesquisando outras coisas.

No começo, meu nome na chamada era um problema para os professores..

Mas foi a partir daí, não só disso, mas de outras coisas, porque além de ser transfóbica a UERGS é muito racista. Os conteúdos que são abordados nas cadeiras (matérias), não fala da história, não fala de teatro experimental do negro, não fala sobre outras referências. E tinha um grupo de estudantes que pensava nessas coisas. Eu, a Elena e o Washington fomos quem formaram um pequeno grupo para fazer um projeto de extensão dentro da UERGS, que era o Afrorescer, que era de pensar nessas raízes, nessa cultura de matriz africana, afro-brasileira, pensar nisso como potencialidades, como elementos para cena. Ou como inspiração para o ator, atriz, pro músico, pro bailarino. Era um coletivo de alunos negros que pensava nisso para as artes da cena. Foi um projeto bem destaque para a UERGS, que não tinha nenhum neste formato. A partir disso a gente conseguiu fazer algumas coisas. No segundo momento desse projeto ficaram só mulheres negras e daí também já dá uma outra imagem pro coletivo.

E foi isso, nesse histórico Montenegro, desses pequenos tráficos de informações entre as pessoas que conseguiam de alguma forma mobilizar um pouco do que a sociedade Montenegrina influenciava assim no público geral, na forma de pensar. Porque parece que a cidade inteira é preconceituosa. Mas talvez - e acho que a arte tem um pouco disso, de ter essa utopia de que, a partir do encontro acontecem algumas mudanças. A partir dessas reflexões sensitivas, a partir do que tu vê, percebe, sente, do que eu trago em cena. E isso talvez promova algum questionamento, uma mudança no que tu faz a partir daí. 





Foi toda uma desconstrução de coisas. Eu lembro de ser uma pessoa negra, a única que tinha um cabelo natural grande na faculdade. Porque enfim, já tinha um contato com o teatro, já tinha essa desconstrução de gênero, já me sentia à vontade de 'nossa, eu tenho vontade de usar brinco, eu tenho vontade de usar batom, porque que eu não posso?' Não, né, tu pode, só que tu não experimenta no teu corpo.

Daí eu fui pra Montenegro e acontecia isso de 'nossa, sou a única pessoa negra, sou a única pessoa que consegue se vestir de outras roupas, outros vestuários'... e daí, não sei, sabe quando às vezes a gente vai criando uma rede? Eu vejo que daí alguém olha alguém parecido contigo e se inspira e se sente mais à vontade de fazer esse mesmo processo, depois vai criando uma rede. 

E no começo eu ainda tinha bastante contato com a minha família. Eu vinha muito a Porto Alegre. Então tem um fator que antes de começar a transição pra mim causou um medo, causou uma insegurança do tipo quais são as referências de travesti que eu tenho? Quero ser isso? E de pensar o quanto o meu corpo enquanto feminino e negro já sofria algumas violências. E daí eu fiquei pensando, nossa eu vou estar assinando um contrato de que eu não vou mais ser amada, de que eu não vou mais construir afetos por ninguém. Porque enfim, sendo uma bixa já é um lugar onde as pessoas não querem construir junto, imagina travesti. 

Mas não sei, chegou um momento em que eu não conseguia mais escolher entre ser uma coisa ou outra. E eu vejo que também é um processo muito meu de abandonar a masculinidade em diversos aspectos. Pensava 'ai hoje eu to me vestindo com alguns trajes mas também se eu quiser adentrar o mercado de trabalho eu posso usar outras roupas, criar outra imagem que tá tudo bem'. E tem alguns corpos que não, que também encaram isso numa identidade para diferentes âmbitos. Eu ficava com esse medo, porque de alguma forma era um privilégio que eu tinha de 'ah, se eu não quiser mais eu posso só mudar uma outra identidade a partir de roupas e gestos'.

Eu achava que eu ia ser uma pessoa sozinha, distante do mundo. Acho que ser uma travesti é um objeto muito hipersexualizado, então as pessoas, de alguma forma... - de deixar de ser um abjeto pra ser um objeto, pra ser uma coisa de posse e hipersexualização, de ver pessoas dentro de um carro te olhando.






Quando eu vim pra Porto Alegre eu fiquei numa ocupação, daí eu fiquei durante seis meses desvinculada desse mercado de trabalho. A gente plantava coisas, a gente ia nas feiras e conseguia reciclar. A ocupação Kaliça ainda existe e faz esse tipo de movimento como uma possibilidade de não precisar estar nesse mundo capitalista.

Enfim, me apaixonei e fui viver um mundo mais "certinho" e capitalista. E recebi essa proposta de trabalhar como educadora social, pensando corpos travestis e transexuais, pensando nessa característica do território, de ter muitas mulheres trans e travestis. E que de alguma forma ser essa mulher nesse lugar gera vínculo, gera outras possibilidades. Nenhuma delas quando eu entrei lá eram vinculadas ao Ambulatório Trans, por exemplo. E daí aos poucos eu consigo fazer com que elas tenham outros acessos.. Por estar no mercado de trabalho formal, hoje em dia eu tenho que estar também nessa briga de pensar outros corpos, de estar fazendo com que esse mercado também pense nas pessoas trans. E ser essa pessoa também de escudo na frente de uma guerrilha que tá sempre - porque enfim né eu sofro preconceito dentro do meu trabalho, mesmo que não me chamem no masculino, mas tem outras falas que de alguma forma as pessoas não pensam mas que são transfóbicas e que me afetam. E de então fazer esse trabalho de mobilização micropolítica dentro desse espaço para que outras pessoas não sofram a mesma violência.






Acontece essa transfobia dentro do lugar onde eu trabalho, mas é em falas entre colegas. É lá dentro. No contato entre os colegas e as pessoas que a gente trabalha acho que não acontece. Mas também, se acontece, isso é percebido? Porque dentro do convívio entre colegas algumas coisas acontecem, do tipo, uma fala: 'ai tô grávida, soube que é uma menina e tal, já tava cansada de pênis dentro de casa'. Daí tu fica 'que?'. De eu estar no mesmo ambiente, olhando pra pessoa e pensando 'será que ela não entende que...?'. Ou de ser também um xingamento lésbico 'não me interesso pelo que tu tem no meio das tuas pernas'. 

Tem uma série de coisas, de microviolências, que eu fico pensando que as pessoas.. Fico pensando não. Porque eu falei com uma colega e ela falou um pouco sobre como é o olhar dela, um olhar cisgênero pra transgeneridade. Ela disse que quando ela chega naquele espaço ela me identifica enquanto corpo feminino 'é a Fayola, uma mulher. Então vou chamar ela no feminino, mas eu não vou além disso'. Agora uma análise minha, que ela não vai além, de pensar 'é uma mulher com pênis', 'é uma mulher que tem uma outra subjetividade, uma outra questão', 'então todos os assuntos que eu for falar no clube de garotas cisgêneras eu incluo a Fayola sem ter nenhum cuidado no que eu falo e trago'. E por vezes eu compactuei com essa violência de certa forma. Não me senti... É que no momento da violência tu fica pensando 'será que as pessoas não estão identificando que elas estão sendo assim?'. Mas eu também não tencionava nada, só escutava e ficava, 'que legal, uma menina, parabéns!' (risos). E que aos poucos eu tento fazer isso porque enfim.

E não é algo novo. Acho que tem pessoas, lá no meu trabalho por exemplo, pessoas gordas que sofrem gordofobia e é algo que a sociedade de alguma forma já naturalizou. E não tenciona, não muda o pensamento. Acha que é tudo bem falar algumas coisas. Enfim, tento dialogar de alguma forma com isso e não sei, as pessoas falam que é tão difícil mas não é tanto assim, aloka.

Eu sinto que é um risco pra eles, de serem transfóbicos, porque eles atendem uma comunidade. Então tá reforçando isso. Mas eu também sinto que tem um movimento de pensar outras possibilidades, sinto que há um esforço da equipe também em fazer que isso modifique. Tem umas falas tipo 'ai, esses hormônios'. Porque também 'hormônios' de alguma forma é algo que engloba a maioria de nós que estamos nesse processo de picos de hormônio. E de falar sobre isso a partir dessa questão hormonal e não trazendo uma genitália, outros aspectos que me excluem, sabe. Sinto que tem resultados trazer esses questionamentos pra equipe em si. Mas é muito sensível né, esse olhar. É muito... É alguém que realmente se preocupa em não ser violento, porque a norma é tu não pensar sobre isso.

Mas enfim, a minha equipe é uma equipe com pessoas negras em sua maioria e de alguma forma eu me sinto acolhida pra falar sobre essas coisas também. Porque começar esse diálogo é difícil, mas seria mais difícil se eu talvez não sentisse abertura pra falar sobre isso com eles. E de alguma forma também é um lugar em que eu encontro acolhimento mesmo havendo essas falas que são transfóbicas, mas que talvez não sejam pensadas. Mas sinto acolhimento trazendo isso e sendo a mulher trans que fala sobre as violências que sofre para que outras não sofram o mesmo. 









O processo de ser escritora, poetisa, foi um processo que agora é mais consciente pra mim. Mas que começa naquilo que eu te falei, de uma escritora de diário. Eu sinto que uma estratégia para que eu pudesse sentir afeto, ou verbalizar meus afetos, era a partir da escrita. Não podia só chegar na minha casa e falar 'estou apaixonada por um rapaz na minha escola e acontece isso e aquilo' ou 'essa pessoa que está aqui em casa é uma pessoa que eu gosto'. Então eu tinha cadernos onde eu escrevia sobre isso assim. E que foi uma estratégia né, o silêncio pra mim. Eu trazia isso nas minhas escritas mas não falava com outras pessoas sobre esses lugares. E fui ficando adulta e isso continuou de certa forma. então acontece isso, de ter tido muitos relacionamentos em que eu não era assumida, que era tido como segredo, que eu ficava com pessoas onde outras pessoas não viam, de não andar de mãos dadas, de ter um relacionamento meio às escuras.

E de não poder expor isso, eu acabava escrevendo e tendo isso pra mim. E chega um momento que eu começo a compartilhar isso. Porque enfim, a minha escrita não é tão linear. Por exemplo, eu falaria que 'o garoto de boné de cor verde-azulado metálico' mas não falaria o teu nome, porque enfim, é um pacto que a gente acaba assumindo com a violência, de não expor. E eu fui encontrando potencialidades nisso, mas a maioria das poesias é falando sobre coisas tristes, sobre como eu não sou amada, sobre como as violências se repetem… E no projeto de trazer diversos aspectos atravessados com a minha vivência. E por mais que eu escreva sobre dor existem outros momentos também. Acho que eu experienciei o amor, experienciei outras coisas. 












E pensando em arte, tem isso também atrelado de que por muito tempo eu pensava... Eu lembro de prestar vestibular e olhar a tabela de cursos disponíveis nas universidades e não me identificar com nenhum desses lugares. E num momento um rapaz falou para mim que eu deveria fazer teatro, que eu deveria ir num encontro. E daí eu vou e descubro - porque eu sou muito tímida, muito envergonhada - mas de alguma forma dentro do teatro eu consigo encontrar uma potência para falar sobre essas questões, esses atravessamentos. Questões que eu quero discutir, com o social, mas a partir da arte, da atuação. E tenho feito isso.

Também gosto muito de Butoh, que é uma arte que nasce no Japão, mas o que me interessa nessa arte é falar sobre ancestralidade, falar sobre morte e vida, renascimento. Trazer isso que já faz parte da minha história… O Brasil é o país que mais mata mulheres travestis e transexuais - inclusive esse ano, que teve um aumento de mortes. E é sempre o corpo feminino que é o alvo. E pensar que eu sou uma pessoa negra e a cada 23 minutos uma pessoa negra morre. A expectativa de vida de pessoas trans é 35 anos. Enfim, eu fico pensando que, de alguma forma, o meu corpo é um alvo. Ibejis, na mitologia, são crianças que nasceram para morrer. E eu fico pensando muito em trazer isso como uma analogia pra mim, como uma pessoa que nasceu para morrer de alguma forma, que já está predestinada a uma morte. Mas tem o mito deles que os dois enganam a morte. A morte é Ikú, ela personifica. E daí eles enganam ela. Então acho que eu fico fazendo essa série de projetos e me experienciando na arte pra enganar de certa forma essa morte.

Eu me experiencio em muitas coisas. Eu tô fazendo aula de canto agora porque eu quero romper com o meu silêncio. Deixar de ser só escritora e usar a minha voz. Pra algumas rupturas, rompimentos, pra me experienciar enquanto slammer, enquanto poetisa, enquanto cantora, não sei. Usar minha voz de alguma forma. Eu lembro de ler Audre Lorde falar que se a gente permanecer em silêncio as coisas vão continuar da mesma forma sabe, então porque não falar? Porque não gritar? Berrar?

E a voz é outra coisa né. É o que me causa mais disforia nesse processo de, ah, quando me escutam falando 'ai, é uma travesti'. Ou também de cantar quando criança e 'tá com dor de barriga?', sabe? De não haver um apoio, um suporte pra que tu utilize a voz como potência. É um processo inverso. Também cantar é um projeto de técnica, ar, respiração. E talvez eu não queira ter uma voz comercial. Quero também buscar outras potências a partir de outro lugar.










É um processo contínuo, eu percebo. Minha mãe. Eu lembro dela falando que tudo bem eu ser uma bixa, mas perguntando 'mas tu não quer ser mulher, né?' e refletindo nesse lugar transfóbico. E eu dizendo que não. Eu usava roupas femininas e pensava 'nossa, quero construir uma outra masculinidade possível'. E daí em um momento eu chego pra ela e digo 'então, mãe…' (risos), 'sabe tudo aquilo que eu te falei? Mudou. Agora eu quero ser chamada, identificada enquanto uma mulher. Gostaria que tu me chamasse no feminino e eu me chamo agora Fayola'. E a partir daí aconteceram muitas coisas bonitas. Um momento que eu recordo muito forte é minha mãe no Natal, que ela nunca teve muita grana então no natal ela dava pequenas coisas, tipo cueca e meia pros meninos. E nesse Natal ela quis me dar uma corrente dourada fininha assim, de eu dizer 'ai, que delicada essa corrente, mãe' e ela disse 'que nem tu'. E aquilo ficou assim… 

Ou de outro momento que ela perguntou 'filha, filha, como é mesmo o teu nome?'. Nesse processo de ela aos poucos ir se abrindo assim. Hoje em dia ela fica 'ai, como tu tá linda'. Acho que é um processo que ela abraçou. Demorou, mas ela acolheu, assim, a Fayola, esse estar. Que de alguma forma eu acho que ela já percebia esse movimento mas ela não aceitava. A minha irmã também. A gente sempre foi muito cúmplices pra tudo, durante toda a nossa trajetória, mas houveram uns momentos que a gente teve um afastamento.

Agora eu tenho me aproximado mais da minha família e percebido o benefício que isso causa, sabe? Porque eu ficava pensando que eu nunca mais ia ter uma família… Que eu não… Não sei… Eu fazia um movimento assim, de negar muitas coisas, de 'o amor não existe', 'pra que família?' sabe? Pra poder sobreviver a essas coisas. E de um tempo pra cá a minha família tem aberto portas para que eu possa de alguma forma estar em diálogo.

O meu pai sempre foi muito agressivo, autoritário e machista ao extremo. Eu lembro do meu irmão apanhar muito porque ele usava um brinco de coco - que era um símbolo ainda muito hetero. Os caras todos usavam. Meu irmão usava também e meu pai achava que aquilo era um símbolo muito feminino então ele apanhou muito por isso. Meu pai é uma barreira que eu sofri por muito tempo. Já ouvi ele falando que pra ele eu nunca seria Fayola. E hoje em dia ele me chama pelo meu nome. Hoje em dia ele se importa mais comigo. E a gente tenta, a passos curtos assim, se aproximar, tá mais junto… E eu também, de entender que o meu pai não quis ser o transfóbico, o violento comigo. Mas talvez aquele jeito era o jeito que ele sabia como ensinar, como me proteger do mundo talvez. E é isso. O meu irmão também é uma pessoa que tem se aproximado. Mas sinto que eu fui muito traumatizada por figuras masculinas cisgêneras sabe… Então, não sei. O meu irmão, meu pai, e outros homens cis, eu tento me afastar de certa forma porque pra mim parece um objeto de violência, então.. Tô trabalhando isso. Mas é muito forte, muito marcante. 

Minha vó. Eu lembro que, no meu relacionamento anterior, de ir eu e meu namorado, que é um boy trans, chegar na casa da minha vó em Pelotas, e falar pra ela sobre isso, sobre ser Fayola. E ela me disse 'teus tios já mostraram as tuas fotos aqui', (risos), 'já vieram, já me falaram aqui ó'. E eu tava careca e lembro dela falando 'com trança ela até parece uma mulher, né', falando pro meu namorado. Mas enfim, acho que a minha família tem essa coisa meio, essa fobia do diferente, mas no momento que a gente vai chegando e se apresentando e mostrando como possível pra uma interação na relação acho que as coisas vão mudando. 

Mas tudo é um processo, é tempo. E agora tem sido um tempo bom, tempo de felicidades. 











Primeiro, é muito positivo assim, tu começar a notar essas mudanças. E de alguma forma em algum momento sentir uma conformidade assim do teu gênero e do teu corpo e isso causar uma felicidade interna sabe. Ou de pequenos detalhes que alegram o cotidiano, de me sentir à vontade de estar pelada em casa ou de gostar de si assim. Não sei, parece tão pequeno mas pra mim foi um processo que surgiu ao longo do tempo que agora, tendo percebido isso, adquirido isso, eu noto o quanto traz felicidade pra mim.

Porém, tem esse movimento assim, social, de pensar 'ah não, não vou ser bem quista em nenhum lugar'. Enquanto mulher eu vejo que agora a opressão aumentou muito. Pessoas me hipersexualizam demais. E de ouvir discursos, de ouvir outras mulheres cisgêneras falando sobre esse medo de andar sozinha na rua, e pensar que tu fica 'bá, que merda' mas ao mesmo tempo tu não sofre tanto isso ou não presencia esses episódios, sabe.

Por exemplo, eu andava a noite na rua sozinha de boas, mas agora quando eu vou ao encontro desse feminino eu me sinto muito mais insegura nas ruas, sou muito abordada. Agora eu ando com spray de pimenta, eu tenho medo de andar sozinha na rua por conta de abordagens assim. Em plena pandemia, que eu tô de máscara, que eu tô assim, tipo querendo fugir de contato total e aparecer assim, de taxista perguntar se eu quero carona, homens na rua me abordando, me chamando pra alguma esquina, independente do horário. Na esquina da minha casa, né. Morar no centro também tem isso. Enfim, eu sinto que por mais que eu tenha me sentido bem com esse corpo, me gostado com esse corpo, esse corpo ele tem que de alguma forma... se eu não quero sofrer alguma violência eu tenho que tampa-lo, tenho que escondê-lo, para que eu fique bem na rua. Mas se eu quero vê-lo, se eu quero usar uma roupa - como esse vestido que desenha mais o meu corpo assim - eu sei que pode ser que eu sofra mais violência, né, que eu vou ter um olhar de uma pessoa que tá te engolindo ali, enfim. Eu sinto que a diferença é essa, de me hipersexualizarem.

Além disso, eu sinto que eu sou pouco ouvida agora, sabe. Que a minha voz, de alguma forma, a minha opinião, ela não é tão valorizada em alguns lugares que eu frequento. E isso é foda, porque eu tenho muita dificuldade em fazer projetos sozinha. Eu sempre convido alguém. Eu tenho muito medo, receio de parecer que eu não sou capaz de fazer as coisas sozinha.

Noto também essas mudanças que ocorrem né, de estar mais sensível às coisas, ser mais chorosa. Mas também encontro conexão com Oxum, que é uma entidade feminina, uma orixá que tem sua conexão com os rios, com a cachoeira. Então esse choro acontece por alguma coisa, uma ancestralidade. Sinto que é um pouco isso.

Também sinto que - falam né, que a hormonização influencia na libido, que eu vou ter uma libido mais baixa... Isso né, do feminino e masculino 'Testosterona é muito tesão, músculos, deixa mais forte, traz mais raiva' e o feminino é 'fragilidade, vai estar mais emotiva e perder a libido'. Eu fico me perguntando isso, essas diferenças... E pensando que a minha libido não diminuiu e às vezes isso me causa aflição, tipo 'ai meu deus, pára' (risos). Mas também de pensar essa libido de outra forma, esse tesão, de conhecer esse tesão, de pensar porque uma mulher negra, uma mulher travesti não pode sentir e falar sobre isso, sabe? Lembro de falar com amigas tipo 'ai meu, se tu tá afim dele vai lá e fala tô afim de transar contigo'. Não sei, parece que esse papel é muito do homem né, do masculino, mas eu não posso falar.. Não sei. Fiquei viajando também nisso, desse lugar do erótico, de demonstrar, de dominar esse poder também, sabe.










Eu fico também pensando na terapia hormonal, do quanto... ah não sei, de consultar e saber o ideal que tu deve usar, mas também de tornar isso mais autônomo. Eu fico viajando nisso, de tu fazer essa administração do que tu toma, do que tu sente no teu corpo, como reverbera. E de pensar que não é um padrão, do que funciona, do que é pro teu corpo, do que é pro meu. Eu vejo que os homens trans têm essa questão, uma facilidade em se tornarem passáveis, enquanto que para pessoas transfemininas é mais difícil. E a estratégia às vezes é aumentar a dosagem. E não sei, fico pensando... Tenho uma amiga que os seios dela desenvolveram menos num período de tempo considerável. E daí ela tá agora administrando, aumentando a dose... Eu acho que é legítimo tu pensar no que tu quer e almeja. Ai, não sei. Porque também tem a trombose, risco de trombose para quem passa a dosagem. Eu lembro também de, tem umas loucurinhas né... Mas teve uma época que eu usava muitos hormônios diferentes. Daí eu usava ***** a cada 15 dias e mais outros hormônios, mais anticoncepcional, bloqueador. Daí eu sentia câimbras e... De estar parada e cair. Um babadinho assim básico, mas que me assustaram assim. Então de saber o limite também. 


Eu comecei por amigas. Eu tinha duas amigas trans. E eu perguntei pra elas como funcionava, o que elas tinham feito. Eu tava em Montenegro, então era muito solitário esse processo, porque eu tinha uns amigos mas eles eram transmasculinos. E daí elas me falaram de cara pra tomar um mês de bloqueador e depois começar essa hormonização. E me indicaram L***, que é o melhor, que é bioidêntico, só que ele é mais caro. Daí chegou um momento que eu usava P*** que é um hormônio que é de baixo custo, mas que é mais grave porque, enfim, ele incha, ele traz a água e aumenta os seios, essas coisas, mas ele é uma bomba de hormônio. E eu sempre escutava desse acompanhamento, de buscar por isso, mas não sentia necessidade. Daí quando eu vim pra Porto Alegre e soube dessa abertura do Ambulatório Trans e essa acessibilidade, por ser via WhatsApp pra marcar consulta, foi a partir daí que eu... Ah, eu já achava que era importante, mas essa acessibilidade pra pessoas trans, um ambiente que se demonstrava seguro, foi aí que eu comecei a fazer acompanhamento.










É incrível, de tu perceber, de tu ver o nível de hormônio no teu corpo, perceber o efeito de cada hormônio. Porque P***, por mais que seja uma bomba de hormônio, tem o efeito de uns 5 a 10 dias. Então o teu nível de estrógeno aumenta muito, mas depois baixa muito rápido. Enfim, acho que nesse acompanhamento tenho tido isso, tenho falado com outras pessoas sobre. E também tenho conseguido falar no meu trabalho. 

Porque é isso, é muito foda de entender que esse processo de disforia, e de pensar que uma forma de romper isso é aumentar a dosagem. É um pouco perverso né. E eu fico sempre indicando o Ambulatório Trans porque talvez diminua a ansiedade das pessoas, de perceber 'olha, o teu organismo tá respondendo de tal forma'. Porque é isso. Tem relatos de pessoas que fazem uma aplicação uma vez por semana de hormônio, uns hormônios que eu nem sei qual o nome, nem conheço, daí tão lá de cama 3, 4 dias sabendo que aquilo lá te faz mal, sabe e não estão procurando um acesso à saúde.


E também né, que a gente sabe que saúde nunca foi uma aliada forte para questões trans. Acho que frequentar uma instituição de saúde já causa um desconforto, com o nome, como vai ser tratada. Então acho que começar esse acompanhamento também pode ser um lugar corajoso, assim. Eu vejo que as gurias que estão em situação de rua tem uma dificuldade em ir a esses espaços pra começar um acompanhamento. Eu acredito que seja por isso. É um fator bem forte de elas não se vincularem a esses espaços por essa transfobia.

O que tem acontecido é que eu explico, falo um pouco sobre o Ambulatório, a gente marca e daí elas tem cancelado, não tem ido. A gente tá marcando agenda porque o ambulatório funciona só no turno da noite. E eu trabalho só no turno da manhã e tarde. Então a gente tem visto de prolongar o nosso horário pra fazer um acompanhamento delas até lá, pra estar junto, pelo menos na primeira consulta. E tem a Gabriela, que é a coordenadora do Ambulatório, que tem tido um contato com a equipe. Porque tem alguns casos que são mais complexos, né. Tem pessoas que estão em uso de substâncias psicoativas e que talvez cheguem lá bêbadas ou sob o efeito de alguma droga. Ou que tenham dificuldade em esperar... Enfim, tem algumas coisas que a gente tenta pautar com ela - e ela se mostrou disponível a isso - antes de uma primeira consulta. Enfim, é um processo também de tentativa com as pessoas em situação de rua. Às vezes tu discute o caso, faz tudo, vai lá e encaminha, chega no dia e a pessoa 'não, hoje eu não quero ir'. Só que ela não sabe tudo que tu tem que mobilizar para que isso aconteça. Mas eu tenho investido nisso pensando que é importante. É importante que tu tenha uma oportunidade caso tu queira, de acompanhar isso. De optar por um processo menos violento.











Estar trans é um processo que de alguma forma eu pude fazer algo em conexão com o que eu sentia, sabe? Como um processo de criar verdades para mim, para o mundo. Então no momento que eu aposto nisso e faço isso e sou uma pessoa trans eu de alguma forma legitimo de que existem outras formas de ser, de estar, para além da cisgeneridade. Ser trans também é ser feliz, é encontrar uma possibilidade de vida. Porque eu fico pensando que não ser trans me causaria um desgaste mental, físico. De alguma forma, estar trans é um lugar em que eu consigo encarar a minha identidade e abrir espaço pra minha subjetividade.

Fico pensando que... talvez, ao longo do tempo, dos anos, ser trans não vai ser uma questão. Acho que a partir do momento - e não trago esse discurso como ideal, utópico, pra todas as pessoas pensarem - mas, de alguma forma, quando tu propõe um desafio pras pessoas cisgêneras de pensarem os seus corpos e às vezes pensar além, de achar que essa possibilidade de ser trans é de questionar que isso vai pra além de um binarismo de homem e mulher. Que existem outras possibilidades. Acho que ser trans é um pouco de romper com isso assim. E fico pensando nesse processo de ruptura pra além da questão de gênero, existem outras coisas.

Fico viajando nisso tudo e é um processo contínuo.
Fico prevendo cada coisa no decorrer do tempo.







Aquele recado do Lau foi muito importante pra mim. De poder estar aberto a experimentar. O que tu quiser. No teu corpo. E que nada é fixo. Assim como tu pode ser, tu pode deixar de ser. Mas fico pensando em trazer coragem pra essas pessoas. E de pensar que se há medo, receio em começar esse processo, eu vejo que as pessoas que dão vazão pra essa possibilidade acabam tendo um resultado sempre muito positivo, muito potente. Então, se é um desejo, acho que seria bom investir, de pensar em redes de apoio. Em conversar com outras pessoas que estão nesse processo. Porque há estratégias, há pessoas pensando nesse acolhimento. De pensar que o Ambulatório Trans... São propostas que estão acontecendo agora e que tendem a observar essa comunidade e talvez começar isso seja agora um lugar mais possível. Atualmente as coisas têm mudado de certa forma, alguns discursos acontecem, tá mais seguro. 

Pode parecer meio estranho, mas, tipo, não me arrependo nem um pouco de ter passado por todo esse processo. Mas fico pensando em como seria não precisar passar por tanta coisa, sabe. E que talvez essa pessoa esteja pensando nisso possa ser uma pessoa que esteja contribuindo para que outras pessoas não tenham esse receio, essa barreira em 'começar ou não'. Fico pensando que a gente que tá falando sobre isso, que tá trazendo isso, são possibilidades de que no futuro essas coisas talvez não aconteçam, seja mais natural falar sobre transgeneridade.

Eu fico pensando nas pessoas que começam a transição muito cedo. Do tipo, da família estar atenta aos detalhes, de isso não precisar ser um processo de 'tenho que fazer essa ruptura com a família, tenho que evadir da escola, tenho que sair do meio social que eu convivo para me possibilitar de ser outra coisa', de que não. Esse processo pode ser natural, de 'eu to aqui contigo e a gente vai juntos fazer isso'.

De uma forma é uma estratégia também da... Eu lembro muito do Demétrio sempre e me emociono com o pensar, porque eu já pensei também sobre suicídio, de parecer de alguma forma que tu não tá em conformidade com a sociedade, que talvez a estratégia seja essa assim. Fico resistindo na intenção, no otimismo de que as coisas vão mudar.


Fayola
1994
É uma travesti negra, natural da cidade de Porto Alegre.
Filha de Ana Beatriz e Júlio César. Regida pelo signo de touro.
Exerce a função de Educadora Social de Rua. Mother da Kiki House of Kaliça inserida na cena Ballroom Vogue. Poetisa pela necessidade de ocupar espaços, burlar o cistema e produzir narrativas a cerca da vivência travestigenere. Integrante da Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta Favela. Discente em Teatro – Licenciatura pela UERGS, onde foi criadora do Projeto de Pesquisa  Afrorescer, com o intuito de cultivar as raízes da cultura afro-brasileira por meio das artes, para reivindicar e debater sobre o protagonismo negro nas artes da cena. Formada em Teatro pela Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo, em 2016. Além do Teatro, pesquisa performance, dança, butoh e fotografia.
O eco das vozes insurgentes.


Travesti.
Ela/dela.
2 anos em Terapia Hormonal.

@negra.faya



 

*ensaio realizado em Porto Alegre (RS) em outubro de 2020.
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Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por urgência.
Eu ofereço todo esse conteúdo de forma gratuita, pois não quero privilegiar o acesso só para quem pode pagar. Porém, para que esse projeto continue, eu preciso da sua ajuda. Compartilhe em suas redes sociais! Se você tiver condições financeiras, você pode também fazer uma doação única ou recorrente. Até mesmo 1 real já ajuda a tornar esse projeto possível. Me ajude a nos ajudar!

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