[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]

Eu sou a Duda, eu sou uma pessoa não binária, uma bicha - eu gosto de me identificar assim. Na real, quando começo a me apresentar pras pessoas, especialmente em evento ou alguma coisa assim, eu digo "eu sou bicha", e aí tem um pouco dessa jornada de como eu comecei a pensar "sou bicha e não sei o que isso significa, pode ser um homem gay cis ou outra coisa". Ao longo do tempo fui pensando "acho que é a outra coisa..." e foi como eu me entendi como pessoa não binária, pessoa trans não binária. Mas, ainda assim, pensando "não, eu sou uma bicha". Lembrando e acenando pra história da palavra, né? Em determinado momento, todo mundo era "bicha"; as travestis, as gays, todo mundo desse meio era tudo "bicha", e acho que eu converso um pouco sobre e com isso. Pela minha identidade, no momento em que eu penso que eu posso ser... Posso transitar por todos esses símbolos das bichas. O que mais? Eu sou psicóloga. Até no meu instagram profissional eu coloco "bicha, não binária e quase sempre psicóloga". Porque é minha profissão, é o que eu estudo, é o que eu amo fazer, mas não é tudo sobre mim, enfim... Acho que é isso sobre mim.


Eu vejo Porto Alegre bem como uma cidade grande com ar de cidade de interior, menor, mais bairros, esse clima assim de comunidade - foi o que eu senti crescendo [aqui]. Cresci e morava em um apartamento mais ou menos do tamanho desse aqui. Um apartamento de um quarto, cozinha, sala e banheiro. Fui o sexto de sete filhes, então, em um determinado momento eram nove pessoas morando nesse apartamento, era um jogo de tetris, assim, na hora de dormir tentando encaixar os colchões pra todo mundo conseguir dormir. Mas a gente vivia bem. É estranho, outra relação... Sair de casa, morar sozinha, independente, eu e o Jeferson, do que morar com a minha família; acho que mudou completamente a relação que eu tinha até então morando lá com a mãe, com o pessoal. Aos poucos, foi cada um [des filhes] saindo pro seu apartamento, mas, na real, a maioria mora na mesma zona que a mãe, eu que fui a pessoa que foi morar mais longe, vim aqui morar no Centro. Talvez isso diga alguma coisa sobre o que é essa relação em que fui precisando me distanciar um pouco pra poder voltar. Acho que tem muito disso quando a gente cresce: poder se afastar sabendo que pode voltar. Ter esse espaço é importante. Hoje eu não brigo mais com a minha mãe, porque eu não vejo ela mais todos os dias (risos), aí não é no momento em que a gente vai se ver que a gente vai começar a brigar. 

Quando eu coloquei publicamente - eu não gosto da palavra "me assumir" - quando eu me coloquei publicamente enquanto uma pessoa não binária, ela erra o nome, mas, às vezes, tenta se corrigir, ela tá fazendo do jeitinho dela, senhorinha... Senhorinha não, mas ela tem 59, fez 59 esse ano. Nossa, ela tá mais velha agora, né? Ela tem quase 60 agora, mas ela sempre foi meio "senhora", desde que meu pai faleceu, quando eu tinha de 7 pra 8 anos, aí ela virou "a viúva". Envelheceu uns 20 anos, depois disso já tava mais senhora assim. Daí é uma senhorinha tentando se haver com essas questões, e bom, ela tá tentando. Tem esse rolê... A gente não se dava bem, não. Desde que eu falei sobre ser gay, na época, com 15 anos, aí o tratamento mudou, foi mais tipo... Até então, de sete, eram duas mulheres e o resto eram homens. Eu sabia que tinha um tratamento diferente com as duas gurias. Minha irmã mais velha, que é 10 anos mais velha do que eu, e a minha irmã mais nova, que é 6 anos mais nova do que eu. Eu já tinha visto, eu já sabia que meio que tinha um tratamento diferente; e desde que eu falei sobre ser gay, lá com 15 anos, ela começou a me tratar mais como ela tratava as gurias: mal! (risos) Por causa disso, de como ela entendia que era diferente esses papéis - eu não sei se ela tem consciência disso, de que ela tratou diferente, mais próximo de como era com a Cláudia [irmã mais velha], mas teve essa diferença. Enfim, acho que crescendo a gente vai entendendo que as pessoas são mais complexas; que nossos pais são seres humanos, que nem a gente. Que nossa família também erra, que nem a gente, também tem seus próprios processos pra crescer e acho que entender isso foi muito importante pra eu poder ter outra relação com ela, se não eu não teria. Eu também precisei mudar e rever várias coisas sobre mim pra poder entender e ter uma conexão com ela. Não é simplesmente sobre ela me entender e ser unilateral - não é só ela precisar mudar pra mim, eu também precisei mudar, também precisei crescer, amadurecer, entender várias coisas que eu não entendia. Acho que se eu não entendesse, transformava em raiva em relação a ela, aí agora é outro sentimento, é diferente. Que nem eu falei, acho que eu precisei ter um caminho de me separar um pouco, de me desvincular e estar mais na minha jornada solitária, pra poder retornar, pra poder tá mais conectada agora. Diria que, agora morando em um bairro mais distante, eu tô mais conectada com minha família do que quando morava lá. Acho que tar muito junto dificultava esse processo de mudança, porque eu me via só como a pessoa que só sofria - e não é como se eu não tivesse sofrendo, mas complexificar isso, entender melhor, é entender que todos os lados podem sofrer, e acho que estando lá eu só conseguia ver eu sendo atacada o tempo todo. Tendo a chance de não me ver sendo atacada o tempo todo, e, compreender a história de como é minha família, é bem diferente, porque quando eu coloco em perspectiva... Tinha 7 anos quando meu pai faleceu, minha irmã mais nova tinha acabado de fazer 3 anos, aí ele [pai] faleceu e ela [mãe] ficou sozinha com sete cria pra cuidar. Claro, tinha meus irmãos mais velhos que tavam trabalhando já e ajudaram muito ela, mas acho que exigiu muita força dela... Ela é meio louca, mas acho que é justificável (risos).


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]



Tava pensando esses dias sobre de onde que veio Duda, e foi em 2016, quando eu comecei a trabalhar em um banco e tinha um "Eduardo" trabalhando lá, que era o "Dudu", e até então, meu apelido era Dudu em casa, aí "ai, mas a gente não pode chamar os dois da mesma coisa", falaram "pode ser outro apelido", pensaram "é Duda". Eu acho que tava vinculado com alguma questão de gênero, sexualidade ali, mas eu gostei. Foi assim que eu comecei a ser chamada de Duda no trabalho: pra separar quem era quem, quem tava sendo chamado. Depois eu comecei a levar pra vida, carreguei dali e comecei a utilizar "sou Duda, vocês podem me chamar de Duda", comecei a ensaiar esse lugar. Eu me dei conta que "Duda" pode ser tanto "o Duda" ou "a Duda", e eu gostei, ficou comigo. Então eu diria que desde aquele momento que essa possibilidade começou a se construir. Acho que já era um entendimento em algum lugar, em algum momento, meio que latente, e quando eu comecei a entender a possibilidade de ser uma pessoa não binária - porque tem isso né? Às vezes não tá no nosso repertório e por isso não se manifesta, não vem. O que tu não sabe que existe não vai surgir, não vai simplesmente acontecer. Se não é uma possibilidade palpável, mesmo que simbolicamente, não vai acontecer. Então a palavra, os entendimentos, surgiram pra mim e eu "ah, talvez tenha alguma coisa por aí" e fui pensando, tendo meu caminho, minha jornada interna. O momento em que eu bati o martelo, comecei a me sentir melhor. Eu comecei a ensaiar esse símbolos e é difícil dar um nome pra uma identidade ou pra quem a gente é... É complicado esse momento. Só que no início desse ano, eu procurei o ambulatório trans e, depois que tive minha primeira consulta lá, eu pensei "tá, é isso, é esse caminho que eu vou seguir. Não tem porquê eu não mostrar isso", aí eu publiquei no meu instagram, foi no início de agosto, preparei um monte de coisa: vídeo e conteúdo, coisas assim - eu queria, também, falar mais sobre mim e as coisas que eu gosto de falar. Foi aí que eu publiquei, é bem recente; quando eu penso "bem recente", ao mesmo tempo eu penso "não, mas tem todo um outro caminho que é muito mais longo", não é "ah, acordei um belo dia...". Até mesmo assim, acordar um belo dia "ai! Eu sou trans. Ah então tá, vou seguir a minha vida...", não. É um processo mais... É um caminho que vem desde... Que nem uma plantinha crescendo, tem uma sementinha que vem crescendo aos poucos.

Cursar psicologia me mudou muito porque quando eu tava no colégio eu era muito um bichinho do mato - ou uma bichinha do mato. Não falava muito, era muito mais introvertido do que sou agora e aí acho que teve um caminho. Depois que eu terminei o colégio eu trabalhei no Zaffari, como operadora de caixa e aí era o dia inteiro falando com pessoas - aí eu comecei a treinar isso. Depois eu entrei na faculdade e comecei a trabalhar no call center e passava o dia inteiro falando com pessoas e até é minha profissão agora - eu passo o dia inteiro falando com pessoas. Eu acho que assim eu consegui colocar pra fora várias coisas sobre mim. Mesmo que a gente não esteja falando sobre a gente, quando a gente fala e se comunica, a gente tá sempre mostrando alguma coisa sobre a gente. Mostrar e colocar em ação, é a gente construir isso também, porque vai indo, né? A gente não nasce nada, a gente vai agindo no mundo e vai criando essas possibilidades na hora em que a gente faz alguma coisa a respeito, seja refletir sobre, seja sair na rua, colocar um esmalte na unha e ver como tu se sente na prática. Então, eu diria que é uma mistura: as coisas que eu fui fazendo com o que eu consegui entender a respeito disso através do curso de psicologia que me ofereceu alguns repertórios, algumas possibilidades de repensar quem eu sou, de estar me colocando em questão. Acho que, pra mim, foi muito sobre isso: me colocar em pergunta. A pergunta clássica: "quem sou eu?", ou pensar em todas as certezas e transformar elas em dúvida; "mas é isso mesmo?", pode ser que esteja confortável assim mas porque? Acho que isso me ajudou bastante, mas tem muito sobre o que eu consegui fazer e não só sobre o que eu consegui pensar, sabe? Tipo, usar determinados símbolos de feminilidade e colocar isso em mim que me possibilitou viver algumas coisas que eu nunca tinha vivido. 

Tem alguns exemplos, no sentido de... Até trabalhado, falando no telefone sempre, desde criança, falavam "a senhora", às vezes eu nem corrigia, às vezes achavam que era minha mãe, algum telemarketing, algum cobrador, falava assim "ah, não, sou eu", alguma coisa assim, quando eu atendia o telefone. Ou pra ligar pra Net ou alguma coisa assim, eu falava "aqui é a Dona Sônia [mãe], cpf tal". Aí era isso. No banco, uma vez, tava com a unha comprida - não podia usar esmalte, mas tava com a unha comprida - aí veio um senhor assim, começou a fazer alguns comentários sobre a minha unha, me senti muito desconfortável, mas assim, tá, ajudei ele no caixa eletrônico, que era uma das minhas tarefas, e me fui. Aí, outro dia, era uma criança e a vó dela, aí ela [criança] me olhou de cima a baixo, olhou pra minha unha e falou assim "porque tu tem unha comprida?", eu falei "eu gosto, eu gosto de como fica em mim", "ah, mas é pra menina", eu falei "tá, então tá" (risos). Ela continuou, ela tava inquieta, olhou pro meu cabelo "é peruca?", e a velha, a vó dela, tava já querendo se esconder, porque eu tava ajudando a senhorinha a tirar dinheiro no caixa eletrônico. Aí eu falei "não, não, é meu cabelo mesmo", ela virou pra vó dela e falou "ah, não, porque minha vó ela usa peruca" (risos). A velha "para de falar assim, não é pra falar!", "não, mas é, tu usa peruca, vó!". Eu caí na gargalhada, tentei não cair na gargalhada, mas fiquei vermelha e rindo, aí "não, então tá. Era isso." 

Acho interação com criança muito interessante, porque várias vezes já teve criança que me olhou de cima a baixo e perguntou "tu é menino ou tu é menina?". As mães sempre ficam assim "não pergunta, não fala isso pras pessoas." Eu acho que é sempre melhor perguntar, pergunta. Uma criança, eu não consigo ver com malícia, e sim como uma dúvida genuína; porque foi sempre ensinada certos símbolos, uma certa rigidez, ela fica com dúvida. Teve essa vez no elevador em que entrou a mãe, uma criança no carrinho e um menino um pouco mais velho - acho que devia ter 8 ou 9 anos - aí entraram os três no elevador, eu tava no elevador descendo, ele ficou me olhando de cima a baixo, eu tava com minha unha, com o cabelo preso, já era pandemia então eu tava de máscara, e ele me perguntou assim "tu é menino ou tu é menina?", eu olhei pra ele e falei "o que tu acha que eu sou?", ele falou "acho que tu é menino", eu falei "então tá". Eu não respondi pra ele porque não acho que é uma pergunta que precise ser respondida. Ele pode me ver do jeito que ele quiser me ver. Até eu tava falando com um paciente esses dias - acho que é importante pra mim dizer e repetir essas coisas, porque às vezes eu tô falando pra pessoa e também tô precisando daquela fala - que o que ele acha sobre mim, não sou eu, não faz parte de mim, é o que ele tá vendo com as conexões que ele tá fazendo, com os entendimentos que ele tem e é isso; ele achava que eu era um menino, então tá. 

Eu acho que várias pessoas se sentiriam bem ofendidas com a pergunta [de ser menino ou menina], eu não me sinto porque eu tento ter esse lado de entender que a pessoa tem uma dúvida genuína, mas eu não tenho nenhuma responsabilidade com a dúvida da pessoa. As pessoas podem ter dúvidas sobre mim. Eu não tenho dúvida de quem eu sou, eu não tenho dúvida de como eu me coloco no mundo, mas as pessoas podem me olhar e ficar com dúvida, tá, e é isso, pode achar o que quiser, não tem a ver comigo. Ou melhor, é algo sobre mim, mas pelo olhar de outra pessoa, então não é meu, não sou eu, não faz parte de quem eu sou. A pessoa pode me olhar ficar com dúvida ou não, sei lá, foda-se.




Esses tempos, também... Eu adoro essa coisa assim da pessoa ficar confusa ou falar alguma coisa e não saber, eu acho muito engraçado: "como é que eu me refiro à ti?". As pessoas sempre me perguntam, falam "ai amigo... Ai, desculpa, amiga! Tô me acostumando ainda", eu falo "tá, se acostuma como tu quiser, na real. Fala o pronome que tu quiser, vai tentando." Na minha lista de preferência, se eu pudesse colocar em uma lista de preferência eu diria: pronomes femininos, pronomes neutros e pronomes masculinos. Nessa ordem. Eu acho que também, muitas vezes [o pronome masculino] pode ser usado como um reforço de "não, tu nasceu nesse corpo, então vou usar sempre pronomes masculinos", mas não que seja um grande problema, é a pessoa que tá escolhendo se posicionar daquela forma. Se eu perceber que é malicioso, daí pode ter algum desconforto, mas se eu não ver como malicioso, tipo, de propósito, pra me machucar, daí não me afeta muito. Enfim, eu não tenho muito apego a isso porque sou uma pessoa pra além do que é minha profissão, o que é meu gênero, ou qualquer outra característica sobre mim; é só um recorte, só uma parte. Eu fico pensando porque eu chamo todo mundo de "miga", mas às vezes a flexão de gênero não vai tá certa, mas aí a pessoa vai me corrigir, me falar alguma coisa... 

Ah, esses dias um senhor na fila do banco falou "a moça aqui tá na frente", eu fiquei "ai moça, to passável. Hoje eu saí bonita então!" (risos) Mas é engraçado porque me pegou de surpresa que ele fez essa leitura, assim, metade do meu rosto tava coberta mas... É interessante essas formas que determinados lugares são diferentes. Acho que isso fala muito sobre onde a gente tá colocados territorialmente, acho que em outros lugares seria mais difícil de poder exercer com mais tranquilidade isso. Acho que de tanta pressão que a gente sofre, a gente acaba tendo que fazer esses movimentos de ter uma rigidez, criar uma barreira. De "não, tu não vai fazer isso comigo", etc, porque de tanta coisa que a gente recebe de ataque, ai... Acho que tem a sorte de poder estar exercendo isso com mais tranquilidade, mas bom, também, eu tava trabalhando com escolas - ainda tô -, quando eu publiquei isso [sobre ser nb], falei com as pessoas sobre o nome, duas das escolas que eu tava acompanhando, deixaram de agendar, pararam. Primeiro eu mudei no sistema, que é numa plataforma online, depois eu fui conversar sobre isso e pouco tempo depois essas duas escolas deixaram de agendar, mas a outra escola passou a agendar mais. São escolas públicas do estado de São Paulo, é uma parceria da empresa que eu tô atendendo. Depois vieram outras escolas, com isso já colocado, e vieram por indicação dessa outra escola que passou a agendar mais, que falou em reunião, tal coisa. Aí começaram a agendar mais, eu achei que foram movimentos interessantes. Dá pra dar o benefício da dúvida de que foram outras questões que fizeram essas escolas solicitarem meu desligamento, o meu desvincular enquanto profissional na escola, podem ter sido outras coisas, mas muito coincidência, na mesma semana! Não foi um timing muito bom não, mas enfim, faz parte. 

A gente vai seguindo, vou tentando, vou fazendo meu rolê. Acho que diz muito... A gente, que tem que se divulgar, me deu um frio na barriga de pensar "essa vai ser a primeira informação que vão ver sobre mim e isso vai estar muito presente na minha prática", dá um medo de fracassar. Todo mundo gosta de dar like no instagram, comentar "arrasou! Quebrando o tabu!", mas ninguém quer contratar, pagar o serviço, pagar nossas contas, contratar nosso trabalho. Gente pra dar biscoito tem um monte, mas pra de fato fazer a diferença... O biscoito dá uma auto estima? Dá. Ajuda, né? Mas não paga as contas. Então acho que aproveitei esse timing de colocar publicamente pra me divulgar mais, colocar mais conteúdo - que é isso que a gente tem que fazer agora nessa vida pra ter trabalho -, então, veio um fluxo muito grande de outras pessoas trans e pessoas LGBT em geral, de me procurarem. Foi um movimento interessante. Tem um risco de cair muito no nicho, de ficar "sou profissional das LGBTs", que não é algo que eu quero ser, não é algo que cabe pra mim enquanto profissional, mas eu entendo que é como as pessoas se sentem mais confortáveis de procurar outra pessoa que tem uma história, ou que tu presume que tem uma história de vida parecida. Especialmente quando se fala de psicoterapia - que é falar sobre si, abrir essas questões - e pra se sentir confortável que não vai rolar [preconceito]. Foi um rolê me colocar assim, mas é isso, eu vou me virando; são movimentos que dão medo, dão um friozinho na barriga, mas que valem a pena, tanto pra gente enquanto indivíduos, como sujeitos, tanto no sentido de criar uma comunidade mesmo. Não no sentido de "A comunidade LGBT", porque não acho que isso exista. Existem as comunidades que a gente cria, as conexões que a gente faz com as pessoas que a gente tá em contato. E isso que eu acho muito importante, criar esses vínculos. Uma das primeiras coisas que eu fiz foi pesquisar pessoas não binárias no instagram, pesquisei "não binário", "nb" e fui seguindo os perfis, e um desses perfis que eu segui, me seguiu de volta e achou interessante uma pessoa não binária estudando psicologia, aí fez um post de divulgação de psicólogues não bináries e me incluiu. Depois desse post, muito mais gente veio me procurar também. É aquela coisa também, dez pessoas procuram, uma de fato vai fazer o serviço, mas vieram várias pessoas a partir desse post, até hoje vem - pra tu ver que tem uma certa escassez de profissionais, mas é aquela coisa, num mundo ideal, qualquer profissional estaria preparado pra lidar com essas questões, e não só um profissional LGBT, assim como um profissional LGBT também pode ser escroto pra caralho. Mas acho que faz diferença pras pessoas poderem enxergar isso e eu fico feliz de ser reconhecida através dessa parte de mim.




Eu lembrei agora de uma discussão que um tio meu teve com minha irmã mais velha, a Cláudia. Eu não sei o que eles tavam discutindo, era no Natal - sabe discussão de família no natal? Que não é uma discussão brava, mas era uma discussão porque tava todo mundo bêbado. Minha irmã falou pro meu tio "tu não é humilde", ou alguma coisa assim e aí ele falou assim "eu não sou humilde mesmo! Eu vou ser humilde porque?" [Vou] deixar as pessoas cagar na minha cabeça ou ficar reverenciando alguma coisa? Não! Não sou humilde, não. Eu faço minhas coisas, pago minhas contas, viajo, faço meus rolês, não vou ficar baixando minha cabeça pras pessoas assim. Eu não sou humilde, não. Humildade não me serve.
Eu achei interessante assim, porque a gente fala muito de orgulho em Junho [mês do orgulho LGBT] quando a gente tá falando de questões de gênero e sexualidade. Eu entendo que tem esse uso por a gente ser tão rechaçado por ser quem a gente é, e aí a gente precisa muito bater no peito e ter orgulho de fazer parte dessa população. Quando eu penso pra mim, orgulho... é eu ter orgulho de ser quem eu sou, não só no aspecto de ser trans ou quando eu me entendia enquanto gay ou enfim, é ter orgulho de várias escolhas que eu fiz na minha vida que não necessariamente tem a ver com questão de gênero ou sexualidade. Ter orgulho da minha história, dos erros que eu cometi e pude aprender, ter orgulho de ter vomitado na rua bêbada às quatro da manhã e aí pude aprender que tenho uma questão com álcool e tenho que maneirar, chegou a pandemia e me forçou porque não tinha mais ocasião pra beber. Mas, enfim, ter orgulho de crescer, de poder ser melhor... Eu não sei, pensando nisso agora, acho que orgulho é olhar pra mim hoje e saber que eu sou melhor do que era ontem, isso é orgulho. É eu perceber que eu tô num caminho de me melhorar e tentar ser o melhor que eu consigo ser hoje; que é pior do que eu vou ser amanhã. Acho que é isso, porque não é sobre uma característica específica. Eu posso esquecer de tudo que eu sou, de outras coisas que eu sou e que eu não sou, e que remontam tudo. Não é só... não passo o dia inteiro pensando "Eu sou trans, sou não binária. Eu sou trans, sou não binária", "Oi, tudo bem? Eu sou trans e sou não binária", não! Eu falo tipo "tá, e aí eu quero um cacetinho. Obrigado, meu bem. Tchau", e eu não to pensando nisso. Tô só ali, só quero comprar meu pão. Não quero sair de casa e pensar em quais símbolos de gênero eu tô usando ou não, eu só quero sair de calça de moletom e meu casaco de abrigo enorme, não tem formato nenhum pro meu corpo; por mais que eu goste de, às vezes, usar roupas que dão um formato pro meu corpo. Só quero comprar meu pãozinho, fumar meu cigarrinho de boa aqui. Não é o tempo todo a respeito disso. Aí quando se fala de orgulho, parece que isso é tudo que a gente é, e não é! É várias outras coisas.

Já aconteceu comigo, tinha uma pessoa atrás de mim "moça, com licença. Moça.. Moça..." Aí me cutucaram no ombro e perguntaram de um ônibus. Eu fiquei meio "que? ãh? Ah, é comigo." Eu tava meio avoada, aí "ah, não. O ônibus passa ali mesmo". Era comigo (risos)


[Meu recado é] não esquecer de lavar atrás da orelha - essa é uma coisa muito importante e que pouca gente fala, só as mães, só que quando é a mãe falando tu não liga. Passar protetor solar, lavar as mãos, passar álcool gel e, também, é sempre bom ter um hidratante porque a gente passa o tempo todo passando álcool gel e esquece de hidratar as mãos.

Eu acho que colocar em ato vale mais do que qualquer reflexão sobre si. Acho que quando a gente se coloca em novas situações, a gente consegue pensar novas coisas sobre a gente. Passa a usar um apelido novo que porventura pode virar teu nome, eventualmente, como foi o meu caso. Usa símbolos que tu gosta, sai na rua, bota a cara no sol. Tipo, faz coisas sem pensar a respeito de necessariamente isso te fazer trans, bi ou não sei o quê. Vai, sai, faz o que tu quer e vê como tu te sente enquanto tá fazendo isso. Não existe "a gente" antes de existir o que a gente faz. A gente coloca as coisas em prática e aí vê o que vai rolar. Que nem a gente tava falando: tô me questionando, vou me questionar, me questionar, me questionar, até que boom, agora tô tomando hormônio, não! A gente vai fazendo outras coisas na prática e vai vendo como a gente é. Depois a gente faz o cálculo, se der 100 pontos, ah! Aí é trans! Tô brincando! (risos). Depois tu faz o cálculo de como tu te sente naquela ação, naquela situação e vê. Ah, talvez vai surgir alguma coisa aí, não sei... Pode não surgir nada também e ser só mais uma experiência legal que tu teve. Fazer, vale mais do que mil anos de reflexão. Não que não precise refletir, mas colocar em ato dá outra perspectiva. Acho que é isso.

[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]








Duda
1996
Bicha, psicóloga, eternamente tentando captar quem sou com a certeza de que quando souber já não serei. Ajudo pessoas a se encontrarem mas também a se perderem.

Bicha, não-binária
Ela/elu/ele
Não se hormoniza
@psicoduda


*ensaio realizado em Porto Alegre (RS) em outubro de 2021
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
-

Esse projeto foi idealizado por Gabz, trans não-binário e multiartista. Ser Trans retrata e abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-binárias possam ser protagonistas da sua próprias histórias. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista; e Morgan Lemens, homem negro trans, roteirista, pesquisador e assistente de fotografia. 
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

APOIE ESSE TRABALHO

Autorretrato de Gabz  revelado por Eloá Souto, digitalizado por Lab:Lab

You may also like

Back to Top