Eu comecei a pesquisar sobre o que era ser trans, eu tinha 17 pra 18 anos. Na verdade, eu pesquisei algo sobre o que eu sentia, não era “o que é ser trans", mas as coisas que eu sentia e que eu via que eu não me encaixava no mundo. Só que aqui no Brasil era bem raro eu encontrar alguma coisa que me explicasse ou que fizesse eu me enquadrar. Aí foi quando eu descobri que o que eu tava sentindo, na verdade, não era porque eu era um ET e sim que existiam pessoas como eu, [que se sentiam] como eu me sentia, e que sim, eu era trans. 

Mas, como eu falei, aqui no Brasil não tinha muita coisa pra se entender ou pra entender qual seria o próximo passo. Quando eu comecei a pesquisar sobre isso eu via muito vídeo de pessoas dos Estados Unidos, do Canadá… Era muito gringo falando e, por eu não ter o entendimento de inglês, era mais difícil pra entender, mas nada que me fez desistir de compreender o que eles tavam querendo explicar e como funcionava toda a questão. De lá pra cá eu fiz uma vasta pesquisa sobre muitas coisas até começar a minha terapia hormonal, que aí sim eu comecei por conta. Foi o primeiro "erro" que eu cometi porque não foi legal o meu começo com a testo, foi bem conturbado, então hoje eu acho fundamental a ajuda de um médico pra isso, porque eu sei o que eu passei naquele começo. Foi isso que aconteceu, até eu chegar nessa parte foram anos de pesquisa. Fazem sete que eu to em terapia hormonal, então eu fiquei cinco anos nesse negócio de pesquisar, claro que aí passou várias situações comigo que também me fizeram deixar essa parte um pouco mais de lado, de relacionamentos antigos que quando eu questionei ou cheguei a falar que eu poderia ser trans, me olharam e me disseram “ou é isso ou tu fica comigo”, “ou tu vira homem ou tu fica comigo, tu tem que escolher”. Na época minha cabeça era diferente, acabei optando por ficar na relação que eu estava e nesses cinco anos minha confusão mental foi muito grande. Minha situação financeira não era das melhores, eu trabalhava mas ganhava muito pouco e aí acabei ficando preso nesse negócio de tipo “se eu fizer essa transição, se eu for à frente, talvez eu fique sozinho pro resto da vida” porque era essa a visão que eu tinha, era essa a visão que o relacionamento me passava. E aí então nesses cinco anos a minha confusão mental aumentou muito por causa disso, porque eu deixei de lado uma coisa que eu queria fazer por causa de terceiros, por causa de outras pessoas. E aí quando eu comecei a trabalhar em outro lugar e minha situação financeira melhorou, já havia mais coisas aqui no Brasil, já haviam mais respostas pras minhas perguntas, aí eu comecei a ir atrás e “é agora, e independentemente de com quem eu esteja a pessoa vai ter que aceitar” aí o jogo virou, “ou tu me aceita como eu sou ou a gente termina”.
Antes do início da minha transição foram duas pessoas que me falaram isso de “ou tu faz a transição ou tu fica comigo”. A segunda pessoa, em um primeiro momento eu disse “ok, vamos deixar de lado de novo” e aconteceu toda essa questão financeira e tudo mais, eu consegui me erguer e comecei a pensar “não… porque eu tenho que deixar minha vontade de lado? Não vai ser assim.” Foi quando eu cheguei pra essa pessoa e disse: “vai ser ao contrário agora, ou você me aceita como eu sou, ou você me ama como eu sou, pela essência ou a gente termina”. Em um primeiro momento a gente terminou. Mas eu consegui entender que era porque a pessoa não entendia o que era ser trans, as pessoas, naquela época, não entendiam muito bem o que ia acontecer. A pessoa em essência não muda, tua essência não vai mudar, vai continuar sempre a mesma. O que vai mudar vai ser o teu físico, tu vai adequar o teu corpo ao que tua mente sempre foi. Aí a gente ficou um tempo afastado e tal, depois a gente voltou e aí ela pediu pra que eu ajudasse ela a entender o que era. Nessa fase ela super me apoiava, claro que existiam algumas coisas que… em algumas brigas assim, sempre saia uma transfobia junto, tipo “tu não é homem de verdade”, “ah, tu é ridículo assim”. E, de novo, eu me condicionei a um relacionamento que pra mim foi tóxico durante seis anos. 

Por isso que quando eu falo de preconceito que eu sofro, eu sempre digo que sofri muito mais preconceito dentro do meio, entre as pessoas LGBTQIA+, do que fora. Eu perdi amigos, eu era motivo de piada, as pessoas meio que se afastaram de mim no começo. Depois disso, depois que essas coisas começaram a acontecer bem no começo da minha transição, eu percebi que poderiam ter pessoas que assim como eu também se sentiam excluídos, se sentiam sem ninguém e aí foi onde eu decidi criar a Liga de Homens Trans aqui de Caxias, com mais quatro meninos. A gente se ajudava, né? Além de ajudar o próximo, a gente se ajudava entre nós, porque ninguém entendia muito bem o que tava acontecendo com a gente. A gente sabia que junto ia ser um pouco mais fácil e aí cada um ia pra um canto e tentava tirar alguma informação dos órgãos públicos pra ver o que a gente poderia fazer em questão de saúde e de outras coisas. E aí se criou esse grupo com o intuito de ajudar outros meninos aqui de Caxias - mais pra essa parte de meninos porque já existiam as ONGs aqui de Caxias, mas a gente sentia essa falta de homens trans. O G sempre predomina, né? O G sempre é o auge, é o foco. E as ONGs aqui de Caxias tinham gays, tinham lésbicas, tinham travestis e tinham mulheres trans, mas pra homens trans era mais difícil, havia até um certo preconceito - por isso a gente criou a Liga nessa época aí. Mas também não deu certo, depois acabou que cada um tomou um rumo diferente pra sua vida e ela acabou ficando em off. O começo da Liga foi em 2014 pra 2015, se eu não me engano. Foi bem quando eu comecei a minha transição, foi bem no começo mesmo. Eu já conversava com outros meninos aqui de Caxias sobre fazer a transição, sobre ser trans e tal, aí a gente resolveu criar este grupo. Foi mais ou menos no final de 2014 pro começo de 2015 e perdurou até 2017, eu acho. Não me recordo direito porque eu saí há um tempo e a Liga continuou funcionando. E depois os meninos também acabaram se mudando e os que assumiram depois também não deram andamento no trabalho e meio que ficou adormecida essa ideia. 



É muita diferença de quando eu comecei a pesquisar pra agora. Nossa, muita diferença! Hoje em dia o acesso é muito mais fácil, tu consegue pesquisar sobre isso na questão de tratamento, tu consegue ter uma pesquisa via SUS sobre isso. Na época que comecei a pesquisar não se falava. Quando a gente montou a liga eu tinha… A minha mãe sempre participou da política, sempre esteve envolvida e ela me disse “vai até o CES (Centro Especializado de Saúde), na parte de infectologia que se eu não me engano tem alguma coisa alí pra essa questão trans. Vai dar uma olhada”, aí eu cheguei a ir nessa parte e foi onde me falaram que existia uma lista de espera pra ir até Porto Alegre pra fazer o tratamento todo por lá, aí comecei a pesquisar sobre isso, procurar médico. Só que nesse meio tempo eu já fazia a minha terapia hormonal sozinho porque eu entrei em muitos grupos [de Facebook] e comecei a perguntar pra quem já fazia terapia: “ah, como funciona? Que testo tu usa? Como tu usa?”. A diferença da minha cabeça hoje pra aquela época, naquela época eu não entendia que era uma coisa que ia afetar totalmente meu organismo, meu psicológico - querendo ou não, afeta também o psicológico. Aí comecei a aplicar Durateston toda semana, uma vez por semana. Começou a me dar muita dor de cabeça, ficava muito irritado, às vezes um “oi” atravessado já me deixava puto, eu queria bater em todo mundo, eu queria quebrar tudo. Um dia eu pensei “vou no médico, vou tentar procurar uma lista de exames pra ver como tá meu organismo nessa questão. Se o médico não quer me dar a receita, ok, eu continuo comprando no método que eu to comprando, mas pelo menos eu vejo como tá meu organismo.” Aí comecei a conversar com meninos que já faziam acompanhamento com endócrino, tipo “que tipo de exame eu posso pedir?”, fui com essa lista de exames, pedi pro médico e a partir daí comecei a fazer meu "acompanhamento" dessa forma. Então eu comprava testo de uma maneira clandestina mas tinha meus exames em dia porque isso os médicos não negavam. 

No começo, bem no começo, quando eu tentei procurar um endócrino pelo SUS me retornaram a ligação me dizendo que era futilidade e que o endócrino não ia atender. Aí pelo clínico, o clínico olha pra ti e fala bem assim: “não é mais fácil tu ficar como tá?”. Tu tenta um psicólogo pelo SUS, eles não tão aptos à isso “ah é porque tu é rebelde, tu quer não sei o que, tua família, não sei o que, não sei o que.” Naquela época não se tinha profissionais capacitados pra te atender; hoje em dia já é mais fácil até nesse ponto. Por isso que por muito tempo eu fiquei sozinho fazendo minha terapia hormonal. Adaptei, troquei de Durateston de sete em sete dias pra 21 em 21, que é o ciclo normal dela. A Durateston no meu organismo não funcionou, fui pra Deposteron de 15 em 15 dias e foi nessa que fiquei por cinco anos fazendo tratamento. No começo desse ano minha endócrino - agora faço acompanhamento, tudo certinho com uma endócrino - ela resolveu trocar pra testo que é de três em três meses, o ciclo é melhor, não oscila tanto. De lá pra cá nos testes que eu fiz comigo mesmo foi muito complicado de lidar com todas as reações. Me dava muita dor de cabeça, eu sentia cólica… Não menstruava mais mas sentia muita cólica - que depois descobri que tava atrofiando [o útero] - e dor nas mamas porque eu usava dois coletes de compressão pra esconder… pra esconder os peitos. Quando eu fiz a minha cirurgia eu tinha muita pele por causa disso, porque foi atrofiando e a pele foi ficando e aí eu sentia muita… Bom, até hoje eu tenho as marcas embaixo dos braços dos coletes de compressão que apertavam.
Eu encaminhei a minha papelada pelo SUS quando eu comecei a transição, em 2014. Fiz a minha mastectomia em 2018. Eu só fui receber a ligação pra começar o acompanhamento em Porto Alegre depois que eu já tinha feito a mastectomia. Foram quatro anos de espera, se não me engano, pra começar o acompanhamento em Porto Alegre. Aí quando me ligaram eu disse “bah, eu não vou nem ocupar esse lugar na fila, deixa pra alguém que realmente precisa porque eu já fiz toda essa parte sozinho por fora. Consegui acompanhamento com médico, psicólogo e tô fazendo essa parte por conta.” A cirurgia também eu fiz por particular, não foi pelo SUS. A muito custo, porque quando comecei a pesquisar sobre a mastectomia, fui no médico, ele falou “a gente faz”, super querido, mas aí o hospital negou. “Automutilação” e negou a cirurgia. Aí foi mais um tempo pesquisando até os hospitais começarem a aceitar. Aqui em Caxias começou aquela fase de processar a Unimed, porque o plano tem que cobrir uma parte da cirurgia, e aí os hospitais começaram a entender. Depois disso consegui encontrar um outro médico - que tinha feito uma cirurgia em um amigo meu de Bento [Gonçalves] - pra fazer a minha mastectomia. Foi bem complicado o começo, sabe? É complicado. A vida é complicada. O acesso às coisas pra nós é um pouco mais difícil, digamos assim. No começo, sem informação, foi pior eu acho. Teve casos da gente tá em um lugar e meu amigo passar a sentir falta de ar porque o binder tava muito apertado e se ele soltasse mais ia marcar. Então tu fica nesse impasse, o que é melhor: tu te sentir mal fisicamente ou tu te sentir mal psicologicamente?

A gente sofre preconceito, não adianta. Eu sofri preconceito, como falei antes, muito mais dentro do meio LGBTQIA+ do que por fora. Não gosto muito dessa palavra, mas pela passabilidade acho que pra mim foi mais fácil. Tanto por causa da Liga, por causa da maioria dos meus amigos serem trans, eu percebo que pra mim, eu tive um privilégio nessa questão. A testo começou a fazer efeito muito, muito rápido. Eu já tinha traços mais masculinos antes da transição e eu tenho amigos que têm, basicamente, o mesmo tempo de terapia hormonal que eu e a minha passabilidade veio um pouco antes. Não gosto dessa palavra, mas enfim, acho que meu tempo de sofrer na rua foi mais curto. Eu acho que por isso sou privilegiado. É bem complicado, assim.





Quando eu me assumi - me assumi não - quando eu me descobri trans, eu fiz toda uma postagem no Facebook falando para as pessoas que haveria mudança de nome, que eu gostaria que me chamassem pelo nome que eu escolhi, que era assim que eu me enxergava e tal. Foi a partir daí que minha rede de amigos trans, vamos dizer assim, começou. Muitos meninos vinham me chamar, tipo “ah! como tu descobriu isso? O que tu sentiu? Como é? Como funciona?” Começou a partir daí, bem por aproximação, as pessoas começaram a conversar comigo por aproximação de sentimentos. Foi muito importante porque cada um tinha uma informação diferente e uma informação importante, então a gente conversava muito sobre tudo e jogava essas informações ali que sempre ajudaram muito. Tipo “eu descobri que tem um binder que o material é um pouco mais tranquilo, não agride tanto, não marca tanto, é bom porque segura” e aí ia atrás disso. “Ah, eu descobri que tem chás que tu pode tomar que aceleram o efeito da testo”. “Eu descobri que lá em Bento tem um cara assim, assim, assim que conseguiu fazer a transição dele só com ervas”, “ótimo, legal, vamo conversa com esse cara”. E assim foi crescendo nossa rede de apoio. É muito importante porque tu tá com pessoas que passam basicamente as mesmas coisas que tu e os mesmos apertos. 

Hoje em dia não tenho mais tanto contato com essas pessoas do começo da Liga porque acabou que cada um foi pra um canto e acaba perdendo o contato, mas quando a gente consegue conversar é bem legal ver a troca de experiência e como cada um vibra com a vitória do outro - acho que isso é o mais importante nesse meio, estar junto mesmo, pegar junto, independente de se tu conversa com a pessoa todo dia ou não, mas sabe que a pessoa tá torcendo por ti, isso é incrível.


Nossa, o Rapha de agora é outro Rapha, é outra pessoa. Eu agradeço muito a minha história, minha trajetória até aqui. Porque todo mundo tem aqueles pontos “ah, que vida de merda, que bosta que as coisas dão errado comigo…” Mas hoje, pensando assim, na minha vida até aqui, eu agradeço muito por tudo que eu passei, porque foi tudo isso que me tornou o que eu sou hoje. Não foi fácil, o começo nunca é fácil, quando eu me assumi pra minha família, eles sempre deixaram bem claro que se eu quissesse me matar eu ia fazer isso sozinho, eles não iam me ajudar com nada - me matar seria aplicar a testo. Aí, depois de muito conversar, de muito mostrar pra eles que não era assim que funcionava, que era tudo supervisionado e que né? A relação mudou completamente, hoje em dia eu sinto muito respeito da parte deles. Até essa parte de estar sozinho me ajudou. O Rapha de hoje é o Rapha que não conquistou tudo que quer ainda mas que batalha pra isso. Que tem uma família incrível, que tem uma esposa incrível - que a Deise me ajuda muito, sempre me ajudou, desde o começo, desde antes. Talvez ela nem saiba disso, mas sempre foi meio que um espelho pra mim, era meu foco, sabe? Desde quando eu tinha 10, 11 anos, eu meio que me espelhei nela pra seguir a minha vida. Tenho um filho lindo. Não tenho do que reclamar porque depois de muito esforço, de muito “não”, de “emprego não tem" - levei muito “não”, perdi o emprego por ser trans. Quando eu comecei a transição eu tava trabalhando num lugar e me demitiram depois - claro que não falaram que era por isso, mas dois meses depois que eu comecei a transição me demitiram. De lá, até uns dois, três anos atrás eu só conseguia bico, que era o que dava pra fazer. Aí fui pra barbearia, que foi um ramo que me aceitou e eu consegui guinar na vida; encontrei um cara incrível, eu considero ele meu pai, porque ele foi muito importante na minha vida, me deu uma oportunidade de começar nesse ramo na barbearia, me ensinou tudo que eu sei e quando foi embora ainda deixou de presente a barbearia pra mim. Aí consegui essa questão de bartender, que também é uma outra área incrível de se trabalhar. Eu acho que a perseverança me fez chegar até aqui, tipo, não desisti no primeiro não, porque cara, a gente leva não a vida inteira né? O não a gente já tem, a gente tá em busca do sim. Eu acho que o Rapha de hoje deve muito ao Rapha do passado, deve muito por tudo que aguentou e que passou pra hoje chegar onde tá de cabeça erguida.


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]




Eu sempre quis muito ter um filho, sempre foi um sonho. Nos meus relacionamentos passados nunca se falava em filho, “nossa, não, vai acabar com a minha vida” - essas coisas que eu escutava. E aí quando eu e a Dê a gente começou a ficar eu sempre falei isso pra ela, que eu sempre quis muito ter um filho, tanto que a gente começou com esse sonho de ter um filho antes mesmo de casar. A minha relação com a Dê foi muito rápida, foi tudo muito rápido - eu voltei de Erechim solteiro no começo de Abril e em Maio a gente já tava namorando, em Junho já tava morando junto, em Novembro a gente casou, então foi tudo muito rápido. Vai fazer dois anos que a gente tá casado. Aí em Junho a gente tava morando junto, em Novembro a gente casou, em Abril do outro ano veio a notícia de que o Noah viria, em Janeiro do outro ano o Noah tava aí. Então foi tudo muito rápido e incrível, foi tudo… Tá sendo tudo incrível. Ter um filho é uma gostosura, é uma delícia. A gente passa noites em claro, a gente tem que trocar fralda, a gente passa frio por causa deles, mas é muito gostoso. Eu tenho o sono muito pesado, então não vou dizer que super ajudo porque não ajudo, faço mal e mal meu papel, digamos assim. A Dê é muito guerreira porque é ela quem toma conta 100% basicamente, mas nas noites em que eu fico com ele e ele não quer dormir, às vezes tu tá tão cansado que tu pensa em xingar, tipo “vamo dormir!” Aí tu ergue o cobertor e um sorrisão assim… Não tem o que fazer, não vai xingar, começa a brincar porque passa toda a raiva do mundo. E chegar em casa e ver que ele te procura, é a sensação mais gostosa da vida, é muito bom. E ter uma esposa, como eu tenho a minha esposa, é pra poucos, porque ela me apoia muito, se hoje eu tenho a barbearia e tenho o que eu tenho hoje é por causa dela, porque nesse pouco tempo que a gente tá junto ela me fez mudar de pensamento muito da água pro vinho, ela me fez crescer muito. Hoje eu agradeço a ela tudo que eu tenho, pela família, pelo lado financeiro, pelo lado… Enfim, por tudo. Se eu tenho o que tenho hoje é por ela.

Hoje em dia eu percebo o quanto eu aceitava a situação que eu passava, aceitava por entender que eu não merecia mais que aquilo. Hoje em dia, também, eu percebo que tive relacionamentos tóxicos que sempre me colocaram pra baixo e que vivendo tua relação, ali no meio, tu acaba não percebendo que é tóxico, que tu tá sendo diminuído, quando tu tá imerso naquilo, quando tu te entrega aquilo. Hoje consigo perceber que passei muitos anos da minha vida sendo diminuído em relacionamentos tóxicos com pessoas que me viam mais como… Como eu posso dizer? Como fetiche e não como a pessoa que eu sou. Então tem essa questão também de se relacionar com pessoas que tem um fetiche em ti, é bem complicado, mas acho que entender que você merece mais, que você pode mais é um caminho. Nada é fácil, por isso que eu digo e bato na tecla: tem que fazer terapia hormonal com acompanhamento, tem. Precisa de acompanhamento psicológico, muito. Não só quem é trans, acho que todo mundo precisaria de acompanhamento psicológico porque a gente precisa entender que ninguém é maior ou melhor que a gente, que a gente pode chegar em determinados lugares com caminhos diferentes, talvez pra mim seja um pouco mais fácil do que pra ti, ou talvez pra você seja mais fácil do que pra mim, mas a gente pode chegar no mesmo lugar por caminhos diferentes e a gente merece, a gente tem que ir em busca disso. 


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]



Minha família no começo me falaram aquilo de “ah, tu quer se matar, se mata sozinho” e depois eu fui… Eu fui insistente, eu deixei muito aberto no começo. Quando eu me assumi trans pra minha família eu deixei muito aberto pra tipo “meu nome a partir de agora vai ser esse, o modo como vocês vão me chamar vai ser esse”, mas não forcei, sabe? Não cheguei a “eu quero que vocês façam isso”, porque imagina, eram vinte e poucos anos me chamando por um nome, me tratando de um jeito totalmente diferente, não é da noite pro dia que isso ia acontecer. Bizarro achar que ia acontecer da noite pro dia ainda mais com pessoas mais velhas, tipo a minha vó, que foi quem me criou. Então eu deixei muito aberto. Minha avó até hoje ela erra um pouco mas não é algo que me afete, ela erra e ela mesma se conserta. Minha relação com a minha mãe mudou muito depois do Noah, a gente tá muito mais próximo depois que veio a notícia de que o Noah viria ao mundo. A gente nunca se deu muito bem, era sempre muito tensa a nossa relação mas agora tá incrível, acho que consigo entender ela também depois dessa paternidade… Acho que a gente começa a entender os lados. 

Lá no começo sempre é tenso. Eu tive que sair do armário duas vezes, da primeira vez a minha avó ficou acho que dois meses sem falar comigo, ela me olhava e chorava, chegou a falar que preferia uma neta puta do que sapatão. Da segunda vez foi muito mais fácil, ela aceitou muito mais tranquilo. Não conseguia no começo me tratar no masculino mas foi muito mais tranquila essa transição. Na segunda vez a minha madrinha, que foi uma das pessoas que me criaram também, que na vida dela ela sempre quis ter a menininha de rosa, de vestidinho, tentou comigo, veio a frustração, aí engravidou com quase quarenta anos, achou que era uma menina, quando descobriu que era um menino entrou em depressão e tudo mais. Na cabeça dela, ela sempre quis aquela menininha pra criar como dondoca e nunca conseguiu. Quando eu me assumi trans aí vem essa frustração de novo, mas hoje em dia acho que o tempo ajuda a cicatrizar algumas coisas e faz a gente entender. Tudo que saia na TV ou enfim, de matéria, eu imprimia e mostrava pra eles “olha, é assim que acontece, eu não tô sozinho”, porque eu acho que, pela minha família pelo menos, não era não entender, eles tinham medo do que podia acontecer comigo na rua - acho que é mais ou menos esse o ponto, sabe? Então eu entendi que eles tinham o tempo deles de passar por essa fase de luto, digamos assim, e hoje o tratamento é incrível. Hoje a gente chega lá, eu e a Deise, não é nem mais "oi" pra nós, é o Noah, pegam o Noah e saem. Tem toda essa questão também, o Noah é um anjinho na vida da gente, mudou muito a relação da gente com as pessoas, o que tava bom, super melhorou, o que tava mais ou menos, melhorou. O Noah é a outra transição que eu tive, é outro ponto de partida na minha vida. É por etapas assim: pré-t e agora pré-pai, pós-pai. Transição de pai. A vida muda muito. 

Gostaria que o mundo fosse diferente pra ele, sabe? Eu acho que essa geração de crianças agora vai crescer um pouco mais liberal, com a mente um pouco mais aberta; acho que em questão de gênero vai ser meio fluido, questão de sexualidade também, vai ser normal, natural. Eu queria um mundo diferente, um mundo com menos preconceito, menos racismo, menos homofobia… Um mundo mais legal, mas acho que vai demorar um pouco ainda. Talvez ele seja um dos que lute contra tudo que a gente ainda luta, né? 

Esperamos educá-lo da maneira mais correta possível pra esse mundão aí. Complicado pensar nisso, muito complicado. Ainda mais em um mundo pós pandemia que é o que vai pegar.






Já sofri muito com isso e até chegar a entender que eu não vou ser um cara magro nunca na minha vida por causa da minha estrutura óssea demorou muito. E aí vem a Deise de novo, a Deise que me ajuda a entender isso, a entender que o meu corpo é bonito do jeito que ele é. Por que seguir um padrão? Por que botar uma meta na minha cabeça de chegar, sei lá, em um corpo extremamente definido, extremamente magro, se eu não vou conseguir chegar naquele ponto porque minha estrutura óssea não permite? Por que me frustrar com base no que os outros pensam de padrão de beleza? Então eu tô nessa fase de transição também, de entender que o meu corpo é bonito do jeito que ele é e tudo bem, e quem não gostar que… né? 

É um padrão né? Por isso acho que tem essa questão de quebrar padrões, que é nessa parte de transição, de gostar do meu corpo, isso também é interessante. Tu vê muito padrão - vamos falar de pessoas que todo mundo conhece: o Transdiário: é branco, é magro, é malhado. O outro Luca: é branco, olho claro, não é acima do peso. O Paulo: é branco, tem a barba incrível, é magro. Então é muito padrão né? O Thamy: é branco, vem de família que tem dinheiro, tem uma casa incrível. Entende? Então é meio que… Por isso que esse projeto eu acho incrível, porque mostra que outras pessoas também podem chegar lá, sabe? Eu não vim de família rica, eu sou preto, meu corpo é acima do peso e tudo bem. Mas consegui conquistar as coisas, talvez não na mesma intensidade que as pessoas de instagram, de youtube mostram, talvez não na mesma proporção financeiramente falando, mas eu conquistei. Eu tenho minha casa, minha família, eu tenho amor, que é o que mais importa, tenho emprego e é isso que importa. Às vezes a gente vai em busca do muito alto mas não pega os degraus nesse meio termo, quer dar um passo muito grande onde a perna não alcança, a gente acaba se frustrando e acaba voltando. Então é um passo por vez, hoje em dia eu consigo entender isso. Lá no começo eu não entendia, eu queria o auge, queria tudo de uma hora pra outra e queria que caísse do céu. Hoje em dia eu consigo entender, é passinho por vez, é degrau. A gente não pode parar no primeiro não.

Hoje me orgulho muito. Do que eu tenho hoje, muito. E sei que não consegui sozinho, mas o meu esforço valeu muito a pena.



Eu acho que o recado que eu posso passar é de não desistir. Ter perseverança, perseverança faz com que a gente chegue onde a gente quer chegar. É como eu falei, é uma escada, é um degrau por vez; e não desistir no primeiro não, porque "não" é o que a gente mais vai encontrar na frente, pessoas querendo derrubar a gente é o que mais vai ter no caminho. É uma luta, uma luta diária. Então é de não desistir. 








Zion Raphael Alves
1992

Em transição tem 7 anos, casado tem quase 2 anos e com um baby lindo (Noah) de 8 meses. Barbeiro (proprietário de uma barbearia) e chefe de bar/bartender em um Beer Garden em Caxias do Sul. Amante das rodas de conversa sobre vivências em especial as do meio LGBTQIA+

Homem trans
Ele/dele

7 anos em hormonização
@zion.of


*ensaio realizado em Caxias do Sul (RS) em agosto de 2021
Projeto financiado pelo edital decorrente do Termo de Compromisso Consensual⁣ celebrado pela PRDC-RS/MPF em decorrência do fechamento antecipado da exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira"
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Esse projeto foi idealizado por Gabz, transmasculino não-binário e multiartista. O Ser Trans é um projeto que retrata e também abre espaço para que pessoas trans, travestis e não-bináries possam ser protagonistas da sua própria história. Buscamos representatividade na frente e atrás das câmeras. Esse trabalho começou por urgência. Ser Trans conta também com a colaboração de Lau Graef, artista transmasculino, estudante de artes visuais e ativista autônomo; e Luka Machado, travesti, atriz, artista visual e ativista. 
Ser Trans é produzido de forma autônoma por pessoas trans e todo o conteúdo é oferecido de forma gratuita. Você pode ajudar a manter o projeto compartilhando com amigues e fazendo um pix para sertransproj@gmail.com - Qualquer Valor é bem-vindo. Para ter acesso exclusivo antecipado a todo o conteúdo, assine o Catarse do projeto. Saiba mais no link abaixo. Obrigado por apoiar um projeto feito por pessoas trans <3

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Autorretrato de Gabz  revelado por Eloá Souto, digitalizado por Lab:Lab

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