Hoje em dia me identifico como uma mulher trans, travesti. Até penso em relação a não binariedade porque, sendo pessoas trans, eu não acredito que existe uma binariedade, sabe? Então nem sei exatamente onde eu tô nesse lugar. Inclusive às vezes até prefiro que me chamem de travesti porque acho que faz sentido, é a forma como me veem na rua.




Esse rolê todo de transição, de identificação principalmente, eu sinto que rolou desde sempre. Sei que isso é mó bobeira de dizer, mas eu lembro de na infância achar, sentir que fazia sentido a ideia de mulheridade, sabe? Desse ser mulher, de olhar pras mulheres na minha vida e falar “é isso, eu quero ser isso”. Porque não parecia, na infância principalmente, que existia alguma diferença entre o que eu posso e o que não posso ser - até o momento em que comecei a ter problemas com familiares. Meu pai foi o pior, que deixou claro “você não pode andar desse jeito, você não pode fazer isso, não pode fazer aquilo” e aí começaram essas questões de ficar me podando. Em algum momento deixa de ser só uma resposta externa, de alguém estar me podando, e toma um lugar de eu estar tomando cuidado pra não fazer essas coisas por saber que era errado. Eu sinto que levei isso por muitos anos… Eu tô com 23 anos e eu nem sei com quantos anos comecei a transicionar, mas lembro que antes de começar a transição eu me sentia muito cumprindo um papel, de "tenho que ficar com determinada pessoa pra provar que sou homem", "tenho que fazer isso pra provar que sou homem". Sempre existiu um incômodo muito grande. Às vezes até com coisas bobas, tipo essa ideia de roupas femininas, eu olhar e ficar “nossa, é só muito perfeito, mas eu não posso fazer isso”. Essas coisas que desde sempre eu tava tendo que podar, em algum momento só se tornaram muito naturais.

Por muito tempo esqueci que existia outra realidade, até que comecei a ver pessoas trans no rolê, comecei a conhecer pessoas trans. E aí foi tipo “nossa dá pra ser, dá pra existir aqui”. E eu lembro de ter ficado com um pouco de receio de me aproximar delas porque eu sabia desse lance da identificação, existia muito interesse em tá ali, mas existia muito medo também de de repente mudar minha vida toda. Toda uma pressão. Eu senti que precisei tomar um esforço bem consciente de falar “tá, eu quero estar com essas pessoas”. Porque realmente, aconteceu assim: eu marquei de encontrar com uma amiga minha num barzinho e fiquei tipo “amiga, a gente tem que fazer um trabalho juntas e só quero que envolva pessoas trans, porque eu quero conhecer pessoas trans”. E ela ficou “porra, sim, vambora”. Esse trabalho não rolou, mas ela me apresentou muita gente. Acabou também que eu participei de umas oficinas com pessoas trans. E essa busca de estar cada vez mais próxima de pessoas trans criou tanto uma rede de afeto quanto tipo, sei lá, uma possibilidade de existência. É aquilo de que existem muitas histórias completamente diferentes e todas elas são conectadas, se cruzando por pequenos pontos, mesmo que seja só "estamos transicionando".





Acho que foi em 2018 que eu de fato me assumi uma pessoa trans, que eu olhei no espelho e falei “é isso, não tem como ser outra coisa”. Mas demorei pra conseguir me dizer mulher, também porque sentia que tinha essa pressão de um lugar que não era meu e também de reconhecer que mesmo pras mulheres cis o lance de mulheridade é um lugar podre, é uma obrigação podre. E eu tinha medo de tá assumindo algo que ninguém devia tá merecendo. Mas aí foi também de perceber que gênero não é sobre essas pressões sociais, é muito mais sobre você do que… sabe? Essas pressões obviamente existem, elas me atravessam todos os dias, tanto na ideia de mulheridade quanto só sendo reconhecida como travesti - se é que tem uma diferença aí no meio. Mas de perceber que no final das contas a gente vai passar por um monte de merda. E eu fiquei só tipo “foda se, eu quero ser eu, preciso ser real ao que acredito e ao que sou”. Foi assim, tô aí inclusive aprendendo a transicionar. Eu acho que é sempre um processo, não acaba. Até de tá todo dia falando que sou uma pessoa trans pra 300 pessoas porque tem que ficar explicando. A gente tá sempre transicionando, né?

No último ano pensei muito sobre como eu me entendi, em questão de gênero, desde a infância. Comecei a tentar relembrar coisas. Aí justamente eu lembro dessa história que foi quando eu vi algum anime - nessa época eu desenhava mais do que eu falava. E aí nesse anime tinha um personagem, ele fazia alguma coisa que ele virava mulher. E eu fiquei completamente em choque, achei aquilo lindo. Fiquei muito feliz com essa ideia e desenhei isso e mostrei pra minha família. Meu pai brigou muito comigo, me colocou uma pressão bem grande falando “você quer ser mulher então a gente vai ter que fazer isso, não sei o que”... Enfim, me bateu até, queria me botar de castigo. Eu acho que esse é o primeiro ponto em que eu realmente olhei... Porque não fazia muito sentido no momento em que vi o anime, que achei aquilo interessante, numa ideia tipo "ah, tá, eu quero ser mulher então". Nem era assim, essa ideia de gênero nem tava existindo, era só um fascínio que aconteceu e eu não tava entendendo porque. Tanto que se eu tivesse entendido a pressão que aquilo tinha no mundo talvez eu nem tivesse falado com meus pais.

Acho que esse foi o primeiro momento em que fiquei “tá, ser mulher é uma coisa errada”. E eu lembro dessa ideia ficar meio confusa porque eu não sabia se, por exemplo, eu ser mulher seria um problema ou se ser mulher como um todo já era uma questão por si só. Lembro de familiares reclamando comigo, especificamente brigando comigo, pela forma como eu andava, pela forma que eu falava. Sempre existiu um incômodo que eu não conseguia nem compreender, porque era só “estou fazendo isso porque é a forma que eu existo no mundo, não é que eu to tentando ser alguma coisa, é que estou tentando só ser”. Não sei exatamente pontos específicos em que as coisas aconteceram, desses estalos, do que é certo e do que é errado, mas sei que  eu sinto só que fui podada em muitos e muitos momentos. Sinto que até hoje tô desgarrando desses lugares inclusive. Tentando… 






Eu parei de falar com meus pais recentemente, cortei qualquer laço com eles porque eles não sabem que eu sou trans pra falar a verdade. Sabem mas não sabem… Eles já sacaram que tem uma coisa acontecendo mas não… A gente não consegue ter um relacionamento bom. Tirando eles eu tenho um relacionamento mais ok com uma prima, mas que também é muito limitado porque nenhum familiar meu sabe de fato que tô transicionando. Sinto que também não rola muito interesse em saber, então… Sempre quis ter mais essa relação família como uma coisa próxima porque acho muito interessante as pessoas que tem isso, acho que é um nível de intimidade, sei lá, que me interessa. Mas acho que eu não tenho, sinto que não existe na minha vida essa relação familiar como uma coisa real.

Até considero minha rede de apoio uma família, de uma forma bem doida, bem confusa, porque é muita gente que só tá junta por bobeira. Dizendo de uma forma meio idiota assim, porque na verdade ninguém ali tem um laço… não que não exista um laço, mas ninguém tem uma obrigação de estar ali. São só pessoas trans e pessoas que estão afim de estar juntas, que se gostam, que passa até desse lugar da gente ser trans… Começa neste lugar mas não fica nele, fica só de pessoas que se amam. Cada vez mais eu sinto que tô construindo esse lugar porque sinto que passa até desse… eu não penso tanto como uma família, como… não sei, eu penso só numa intimidade muito doida, porque não tem amarra nenhuma, não tem obrigação com a outra pessoa, do porque tu estar ali. Sinto que é só uma relação muito íntima, muito… talvez seja exatamente tudo que tô falando sobre família. (risos)

Nossa, nem sei explicar, é só muito esse lugar de intimidade, de realmente... eu não tenho porque não falar tal coisa, não tenho… sabe? Não existe muita vergonha, é só a gente se falando. Eu tava com umas amigas num bar e a gente tava gritando, falando mil coisas, um monte de putaria, um monte de coisa que a gente fez, fazendo umas fofocas. E tava todo mundo do bar olhando pra gente tipo “que que essas malucas tão falando?”. Claramente existe uma vergonha muito grande de todo mundo que tá em volta, e tudo ok, não tem nada de errado com isso. É só que, é isso, quando a gente se junta passa desse lugar da gente estar vivendo esse medo - porque a gente já vive esse medo o tempo todo. Ser trans é difícil, viu? O tempo todo… Mas quando a gente se une, é como se tivesse se criando um mundinho só nosso em que ser trans é só um pequeno parâmetro que tá ali no meio.

Eu penso até na questão dos opostos. Que a gente precisa sempre ter aquele lugar de tipo "negativo e positivo", "cis e trans" como coisas muito distantes. E é aí que a gente começa a ver pela diferença das coisas. Eu sinto que começa a aparecer aquele destaque, quando tô na rua eu sinto que as pessoas tão me vendo e eu não sou uma pessoa, eu sou uma travesti. Não existe essa proximidade, um olhar normal. É um olhar pra travesti, é medo, é desgosto, é nojo. E é daí que vem inclusive as pessoas falando coisas na rua. Mas quando tô só com pessoas trans, justamente nessas redes de afeto que eu tento construir, isso para de ser uma questão, porque a gente não tá mais olhando pra diferença, a gente tá se olhando. Não tem porque a gente tá batendo cabeça sabe? Sei lá, só não tem mais motivo de vergonha de fazer nada, é só a gente poder existir aqui.



[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]




Eu sinto que ser trans no Rio de Janeiro é bem confuso, sinto que pode ser bem violento. Claro que rola, mas tipo, eu não vejo tanto isso de agressão ou coisas tipo violência física, mas sinto que o Rio de Janeiro é bem hostil, é difícil eu passar na rua e não terem pessoas me encarando, soltando pequenas gracinhas e isso desde antes de estar transicionando, sabe? É só qualquer diferença, o Rio lida de uma forma bem ruim. Não sei, eu não penso tanto sobre isso porque o Rio já é um costume muito grande, mas quando vou pra outros lugares eu me vejo com mais liberdade, também talvez por estar em outros lugares…

Eu sinto que pra cá, pra zona sul, acaba tendo mais gente que força a barra pra aceitar a diferença e todo esse babado. Talvez na zona norte, por mais que não seja tanto essa galera que fica forçando a barra pra fingir que tá aceitando as coisas, o pessoal às vezes acaba olhando mais até, falando mais, com mais lugar. Mas também sinto que eu tenho mais pessoas da ZN próximas na minha vida do que a galera da ZS. Porque acho que rola um pouco mais de verdade nas coisas que são ditas, sabe? Porque é isso que tô falando, se a galera tá fingindo as coisas, elas não vão tá nunca te respeitando no final das contas. Porque se a galera de lá tá falando merda e eu bater um papo com elas, eu sinto que elas vão sacar o que tá rolando.

Nunca aconteceu de rolar algo sério na rua além de umas gracinhas. Tá, já teve alguns carros que pararam, mas eu só segui e não deu nada, por sorte. Eu só lembro de casos, de coisas mais sérias, em que realmente discuti com alguém - e todas elas inclusive eram pessoas que eram desse tipo, que tavam forçando a barra pra fingir que tavam me aceitando ali de alguma forma, como se elas tivessem que me aceitar, como se fosse uma grande obrigação, assim… Enfim, uma hora as pessoas acabam mostrando quem elas são. Mesmo estando próximas, vendo o que eu tô vivendo aqui, elas pensam o que elas tem que pensar e uma hora elas acabam expondo aquilo de alguma forma. Mas nenhum caso foi, de fato, algo que me gerou problemas ou alguma coisa do tipo, foi só discussões que eu fiquei tipo “cara, faz o que você quiser da sua vida só não chega perto de mim”.

Eu sinto que antes eu tava só cumprindo com um papel, um personagem. Agora eu vejo que tem algumas pressões que vão surgindo sobre o que é ser mulher e como eu preciso parecer, o que eu preciso fazer, como preciso andar… Existem algumas pressões bem marcadas sobre feminilidade, eu sempre boto a frente de “não, eu sou travesti e é isso mesmo”. O rolê de ser uma pessoa trans, por si só, eu nunca vou ser aceita, eu nunca vou ter esse espaço garantido. Então, eu sinto que tô num lugar de estar descobrindo quem eu sou pra além de quem eu sou socialmente, quem eu sou sendo lida na rua, sendo o que é esperado de mim. Mas de estar criando uma realidade que eu acho que é isso que a transição é, no final das contas. A gente só tá abrindo portas. Penso que é muito mais plural. Ao mesmo tempo que é só um lugar que não é lido de fato socialmente - transicionar é quase que não existir pra justiça, pra esse mundo todo que a gente vive. Mas ao mesmo tempo, penso em conseguir forças nesse lugar, já não tenho mais nenhuma obrigação pra cumprir, não tenho porque me preocupar com isso.




Caindo nisso assim, de como eu comecei. Eu fiquei bastante tempo só pesquisando na internet mesmo, porque era o lugar que eu podia na época, já que eu não conhecia outras pessoas trans pra ter essa troca. Então eu ficava pesquisando mil coisas e eu tava sempre com medo de… Enfim, sempre vendo um monte de menina que tá tendo um monte de problema por estar tomando vários remédios e tal. E reconhecer também que esses remédios não são feitos pros nossos corpos. Fiquei pesquisando por muito tempo e isso foi só me gerando mais medo, até o ponto em que fiquei “tá, não vou me hormonizar porque vai dar alguma merda aí no meio”. Mas aí eu comecei a conhecer umas meninas que se hormonizavam e eu fui entendendo que não era tão assim. Tem muita gente dando informações erradas, muita gente que não tá se importando tanto porque só quer que o quadril marque e quer essas coisas muito rápido. E tem como fazer isso, mas é muito perigoso. Enfim, conversando com essas amigas elas foram me mostrando que dava pra fazer isso, que algumas tinham endócrinos que ajudavam elas. Mas eu ainda demorei bastante, porque eu queria muito ter certeza do que eu estava fazendo, antes até de estar indo pra um médico pedir ajuda, sabe? Até que eu cruzei com uma pessoa que me explicou exatamente tudo, que ela era tão louca quanto eu de ficar buscando essas informações. A gente começou a trocar bastante, ela me passou tudo de informação possível e eu falei “tá, eu quero começar, vou procurar um médico”. E não encontrei. Inclusive tendo plano, ligando pro médico, ligando pra endócrino… Os médicos só rindo da minha cara, falando “que!? pessoa trans? que isso? que cê tá falando?”. Literalmente liguei pra lista inteira do meu plano e nenhum médico atendia pessoas trans, alguns nem sabiam o que era isso.

E aí no mês do meu aniversário, foi dia primeiro de outubro do ano passado, eu comprei tudo de uma só vez e falei “eu vou começar! preciso começar”. Porque eu tinha certeza também que se eu ficasse só esperando pra, sei lá, aparecer um médico ali… Eu acho muito importante um endócrino, mas se eu ficasse só esperando isso acontecer… Eu senti que já tava me sufocando não estar me hormonizando, porque era o que eu queria há tanto tempo e tava me sendo negado por uma idiotice, não era por minha conta, não era uma questão minha. Não era porque eu tinha algum problema de saúde e não poderia começar. Aí eu comecei. Vou fazer cinco meses agora. 

Falando de como tá sendo esse processo de ter estrogênio no meu corpo: tá sendo uma doideira. Porque eu sinto que tô realmente na puberdade, eu sou… sabe? Uma menininha de filme mais antigo que fica do lado do telefone esperando o boy ligar e tá chorona pra cacete. Eu me sinto assim o tempo todo, gente! Eu inclusive chorei porque uma mulher numa série que eu tava assistindo ficou grávida e eu só chorei e fiquei tipo “eu preciso ter um bebê” (risos). Eu era uma pessoa que não conseguia chorar de jeito nenhum e agora acho que choro todos os dias desde que comecei a hormonizar. É aquilo também, às vezes é engraçado, até choro dando uma risada tipo “o que que tá acontecendo?”. Mas às vezes também é meio foda. Lembro que na minha segunda semana de hormonização eu tinha que fazer uma prova online e eu tava fazendo comida e, sei lá, eu tava resolvendo algum problema ao mesmo tempo que tava acontecendo tudo isso. E foi a primeira vez que eu vi que pequenos gatilhos de ansiedade eram o babado pra hormonização. Porque... rola o tempo todo agora, né? Essa TPM eterna de estar se hormonizando. Ah, então, meu mouse parou de funcionar enquanto eu tava fazendo a prova e esse foi o ponto principal. Porque eu comecei a chorar e eu tava quente, sentia o corpo todo com raiva. E eu fiquei “o que tá acontecendo?”, porque eu conseguia resolver as coisas mas eu só não conseguia sair desse lugar de querer que o mundo acabe. Aí foi a primeira vez que vi que essa TPM tava existindo - eu nem sei se dá pra chamar isso de TPM, mas eu chamo. É muito essa vibe de que o tempo todo uma pequena coisinha bate muito mais forte na minha cabeça. E eu penso até que os hormônios me fizeram ver o mundo de outra forma. Porque ao mesmo tempo eles também me deram muita certeza de coisas que já aconteciam, sabe? Eu sempre fui uma pessoa muito emotiva mas não conseguia chorar. E agora consigo botar pra fora. Então sinto que já tava ali e agora eu só lido de uma forma que eu queria tá lidando aquele tempo todo. Nem sempre, né, tô de boa de ficar chorando o tempo todo. Mas sinto que tem outros aspectos, eu tô vendo o mundo realmente de outra maneira. Me sinto até mais feliz, andando na rua, olhando pras coisas e ficando “nossa como você é lindo!”. Parece que realmente… é isso, só vejo as coisas de outra maneira e não sei se dá pra explicar muito sobre isso. Não sei, não pensava muito antes em relação a testosterona e de repente as coisas só tão acontecendo, sabe?





Agora também me cadastrei no Ambulatório Trans de Niterói e vou fazer acompanhamento porque, cinco meses… Tô morrendo de medo de tá com algum problema. Tem Ambulatório Trans aqui no Rio também, é até da Fiocruz. Acho até que eles chegam a dar os hormônios. É um trabalho bem foda, mas tem uma fila enorme. Aí eu só fiquei “cara, não. Tô pra fazer cinco meses de hormonização, eu preciso de algo meio urgente". E esse de niterói eu liguei no início do mês e marquei pro dia 24, foi agora, acabei de fazer a primeira consulta que foi só fazer o cadastro e me passaram os exames pra fazer.

Já que colocam a gente como doente mental, então é isso: cuida da gente. É uma obrigação do governo de fato. É aquilo né? Eu penso muito que é sobre esse não-lugar, a gente tem que tirar força dele, de falar “tá bom, você tá falando isso então vou me aproveitar desse rolê”. Fico até feliz que vejo alguns boys que operam e entram com processo judicial contra o plano pra conseguir a grana de volta, porque é pra ser uma obrigação mesmo “você tem que me dar, você tá me falando que eu que sou o problema, vamo lá pra chegar na solução”. A gente tem que se aproveitar, tem que ser esperto, abusar desses direitos falsos que eles jogam pra gente, sabe? (risos)
Acho que ser trans é sobre um lugar de oportunidades… oportunidades não... talvez seja. É como se abrisse um leque de opções. Eu sempre boto nesse lugar de não-lugar porque sinto que é uma ideia que no final das contas deveria cair pra todo mundo - apesar de que cai pra gente de uma forma muito nociva, sabe? Porque esse não-lugar é também sobre você falar “realmente, eu não tenho obrigação de nada, eu posso existir no mundo sendo a pessoa que eu sou, sendo a realidade que eu sou". Porque existir no mundo enquanto um todo, independente de ser trans ou não - mas principalmente sendo trans - é sobre a possibilidade de você transitar e você ser o que você quer ser, sabe?

É que eu fico pensando que tem tantas pessoas trans que conheço e todas elas tem histórias tão específicas, tão particulares, são mil recortes. Porque ser trans é uma pequena questão. Se a gente for considerar, tá, existem recortes de raça, existem recortes dentro do próprio gênero: sendo homem trans, mulher trans, travesti, não bináries. São tantas coisas existindo dentro de um nomezinho só. Como se aquilo ali pudesse comportar todo mundo. Se não me engano foi a Linn da Quebrada que falou uma vez sobre representatividade e que ela não se via nesse lugar de estar representando alguém, estar representando pessoas trans. Porque sim, ela tá representando porque ela é uma pessoa trans que tá aparecendo na mídia, tá trabalhando, faz música, é perfeita. Mas no final das contas a única pessoa que ela tá representando é ela mesma, porque ela não tem como representar a realidade de mais ninguém. E é sobre isso. Penso que a nossa força vem muito daí, dessa diferença. Sinto que a gente se une por essa diferença, sabe? Não é óbvio. Ser trans não é óbvio, acho que é esse o negócio. 


[Fotografia Analógica - Revelada e digitalizada por Lab:Lab]



Eu faço um monte de coisa e de repente acho que não tô fazendo nada, mas nesse momento tô me formando em publicidade, tô no último período, já entreguei TCC. Agora tô cursando outra faculdade, Produção Cultural, mas possivelmente vou trancar porque não quero fazer essa faculdade. Possivelmente não vou querer terminar ela então não sei se vai fazer sentido continuar. Mas, enfim, está acontecendo. Eu fiz estágio em publicidade desde o início do curso e em algum momento comecei a tatuar. E me encontrei muito na tatuagem porque acho que realmente é algo que me deixa muito feliz - foi um encontro sem querer que deu muito certo. Além disso, eu pinto muito, só que nunca exponho as coisas porque ainda não senti que tá na hora, mas em algum momento vai acontecer. É isso, não sei muito falar de mim, acho que não paro pra pensar tanto. Libriana também, né? Não gosto muito de entender nada. (risos)
Trabalhando em publicidade - eu trabalhei bastante em agência - eu via… É meio doido, o pessoal de publicidade força a barra pra se dizer muito moderno, muito “eu tô aqui" - uma galera, sabe, GLS (risos) - mas dentro das agências o que mais ouvi foi desrespeito. Não necessariamente comigo porque eu terminei de trabalhar em agência começando a transicionar. Então nunca foi direcionado pra mim porque acho que eles nem sabiam o que tava rolando ali. Mas já ouvi muita coisa de agência transfóbica, lgbtqfóbica total. Pessoas que só se fingem muito, sabe.

E dentro da Universidade, eu sempre achei que, pelo menos na minha faculdade eles tem uma grande questão em entender as coisas. Inclusive  eu teria que entrar com um grande processo pra conseguir usar o nome social, porque eles pedem identidade social pra poder fazer isso, sendo que é um direito você poder fazer sem identidade, não é obrigação. Mas eles pedem e não tão nem aí. E eu só também não quis, nesse sentido de ok, estar no papel ali meu nome certo e tal. Não quis me dar esse trabalho porque sei lá, preguiça. Mas as pessoas da minha universidade, professores, todo mundo sacou. Eu nunca precisei me assumir pra ninguém, eles só viram, só acompanharam minha transição, até porque né? Quatro anos aí. Mas não tive problemas, só aqueles olhares de vez em quando, alguém solta um negocinho ou outro, mas realmente acho que nunca tive um problema. Mesmo em relação a esses olhares, eu fico pensando “ai, acontece todo dia” eu tô só nem aí mais. 
Hoje em dia trabalhando como tatuadora eu penso que é isso, só tem eu aqui nesse ambiente de trabalho, então o respeito tem que existir antes de qualquer coisa. Eu já cheguei a tatuar pessoas que vieram me chamando no masculino e eu fiquei só “cara, o que você tá fazendo aqui?! Se ler minha bio, meu nome já tá lá, meus pronomes. Vamos se respeitar ou se não você vai levantar e vai embora”. Mas foi, assim, pessoas que eu precisei dar esse primeiro toque e elas sacaram. Eu só sinto que eu não quero nem tá perto de uma pessoa que não vai me respeitar, mesmo sendo trabalho. Tudo bem, eu sei que isso é um grande privilégio que eu tenho, de poder negar estar ali com uma pessoa. Mas isso foi algo que, depois de ter estado em ambientes de trabalho que eram muito podres, com pessoas que eu via que não tinham o menor interesse em viver no mundo real, eu fiquei “não, essa é uma cobrança que eu me coloco, aqui eu vou ser respeitada. Isso aqui é meu, algo que eu to criando”. E mesmo se eu sair, se eu parar de trabalhar com tatuagem, é algo que eu com certeza vou cobrar, porque não dá. Cara, eu penso que a gente trabalha muito, a gente passa muito tempo por dia no ambiente de trabalho e acaba que em algum momento nossas vidas se tornam muito pautadas em uma vida pessoal, que é tipo aquilo que a gente tá com amigues e tal, e trabalho. A gente já passa por um monte de merda o tempo todo, estando na rua, indo no médico e sendo chamado pelo nome errado e não sei o que… Se você passa seu dia todo ali naquele trabalho que também vai ser nocivo fazendo uma parada - depende também se você tá fazendo uma coisa que gosta ou não -, mas se é uma parada que é pra você sobreviver, sabe? Você vai ter que lidar com aquilo também? Qual o ponto? Tem algum momento em que a gente pode só existir? 

Eu cobro muito essa posição de estar em um lugar que me respeite e que me veja, sabe? Mas sei que é um privilégio de estar trabalhando sozinha, porque já vi ambiente de trabalho que… inclusive, quando comecei a transicionar, eu cheguei a mandar currículo pra alguns lugares com o nome social e nunca recebi resposta. Desde que comecei a transicionar, nunca recebi resposta de nenhuma agência. Tudo bem que não queria mais trabalhar com isso, mas em algum momento cogitei, porque não tinha muito o que fazer. Inclusive, quando a gente ficou em lockdown na pandemia, que eu não podia tatuar, eu tava mandando currículo porque era a única coisa que parecia fazer sentido. E eu não recebi resposta de ninguém, literalmente ninguém. Não recebi nenhuma resposta porque sempre botei nome social lá, explicando e tal. E tenho portfólio, tenho trabalho e tal e só nunca rolou.

Trabalhando em agência eu também trabalhei com fotografia. Mas sinto que fotografia pra mim sempre foi uma relação mais carinhosa de, não sei, quase como um hobby. Porque eu nunca sinto que tô trabalhando enquanto estou trabalhando com fotografia. Sempre sinto que é só divertido, sabe? Mas hoje em dia nem fotografo tanto assim, até quero voltar em algum momento, mas tô aceitando que os trabalhos vão e voltam. Trabalhar com artes é isso, no final de contas tudo vai se somar. Sempre vejo assim, meus trabalhos conversam um com o outro em diferentes plataformas.



Inclusive, até cheguei a ver hoje mesmo, um boy trans que trabalhava na Globo falando que dentro da Globo não consegue usar o nome dele, não deram nenhuma opção. E ele não é retificado, aí usam o nome morto e ele não tem o que fazer. Na Globo. Aí fazem uma novela “A força do querer” falando de pessoas trans, e aí? 







Penso muito sobre isso que a gente tava falando sobre redes de afeto, sobre estar próxima de pessoas trans. É tipo a coisa mais importante da minha transição e eu sinto que todas as pessoas com quem converso acabam dizendo a mesma coisa. E eu só queria ter tido isso antes, esse lugar de me abrir pra conhecer pessoas trans. Enfim, rolou esse medo também de início, né. Também é compreensível, as coisas acontecem no tempo em que elas tem que acontecer. Construir esses laços é muito importante e a gente acaba descobrindo que não é um problema, sabe? Ser trans. Eu acho que a gente acaba carregando muita culpa por conta de todos esses problemas que a gente vai recebendo - tipo ficar ouvindo besteira na rua. Todas essas coisas que a gente passa acabam refletindo na gente como culpa, como dor, quando não são dores nossas, não são coisas que a gente devia tá carregando, não fala sobre a gente, não representa quem a gente é, não mesmo. Penso nisso, acho que esse recado é a coisa que mais importou na minha vida, que é “esteja com pessoas trans”. Não só também de estar no mesmo ambiente, mas desenvolver emocionalmente, romanticamente… Pessoas trans estão aí pra mudar esse mundo, é esse o babado.

Acho que algo importante a se pensar é paciência. Porque não dá pra gente apressar essa transição. É até perigoso muitas vezes essa pressa. Eu entendo que quando a gente chega no lugar que a gente tá se reconhecendo e a gente fala “finalmente tô vendo que existe uma possibilidade” a gente já quer chegar logo lá. A gente já cria uma expectativa muito grande de que existe um “lá” quando na verdade é muito mais um processo. A gente tá aqui descobrindo. De novo voltando pra esse não-lugar, a gente tá abrindo as portas pra essas possibilidades acontecerem. 






Principalmente, estejam com pessoas trans, porque a conversa funciona de outra maneira. Esse lugar da paciência funciona de outra forma quando você tá com essas pessoas, porque você começa a ver que elas também já passaram por um monte de coisas e estão passando um monte de coisas e elas também tão vendo que… Em algum momento a gente acaba tendo que ver que essa paciência tem que rolar. Então é isso: paciência e esteja com pessoas trans.










Yu Frazão
1997.

Estudante de publicidade e propaganda, atua como tatuadora e artista visual.
Travesti.
Ela/dela.

5 meses em hormonização.
@yuyuyyyyuyuyu


*ensaio realizado no Rio de Janeiro (RJ) em fevereiro de 2021.  
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Esse projeto é feito por mim, Gabz. Sou uma pessoa trans não-binária e busco não só retratar mas também abrir um espaço onde outras pessoas trans possam contar suas histórias, pra dar suporte pra nossa própria comunidade. Depois de muito sofrer com a carência de referências de narrativas trans que me contemplassem percebi que essas pessoas existem e sempre existiram, porém por motivos CIStêmicos as poucas vezes que temos oportunidade de contar quem somos acaba sendo através da lente de pessoas que não sabem como é a nossa vivência. Comecei esse projeto por urgência.
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*foto revelada por Eloá Souto, digitalizada por Lab:Lab

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